domingo, 31 de janeiro de 2010

Uma Página (de grelha) -1

TÓPICOS DA HISTÓRIA CULTURAL PORTUGUESA - 2
Época Medieval

OS FACTOS HISTÓRICOS; SOCIAIS

1211: As primeiras cortes portuguesas – com o Clero e a Nobreza (Em Coimbra).
Publicação de leis - a mais antiga legislação portuguesa.

4- D. Sancho II, o Capelo (1223/1248):
Conquistas no Alentejo e Algarve.
Santo António de Lisboa: Fernando de Bulhão (1195/ 1231), morto em Pádua..
1245: Deposição do Rei, entrega do Reino ao Conde de Bolonha (Tema de sátira).
1248: Morte em Toledo (O gesto de lealdade de Martim de Freitas, alcaide do castelo de Coimbra).

5- D. Afonso III, o Bolonhês (1248/1278):
Desenvolvimento económico do país. Aumento do número de feiras.
Estabilidade governativa.
1254: Cortes de Leiria (com o Terceiro Estado pela 1ª vez)
1257: Conquista do Algarve. Novo título do rei: “Rei de Portugal e do Algarve”.
1276: Papa português João XXI (Pedro Julião ou Pedro Hispano)
Preceptores de D. Dinis: Dr. Domingos Jardo, bispo de Évora; Ayméric d’Ébrard, prelado de Coimbra.
Concessão de forais a vários concelhos.

6- D. Dinis, o Lavrador (1279/1325):
Desenvolvimento do comércio e artesanato. Criação de feiras francas.
Plantação de pinhais.
Construção de uma frota mercante. Contratação do almirante genovês Micer Peçanha..
Corte Régia: Centro de cultura.
1290: Fundação dos “Estudos Gerais” em Lisboa.
1293: Criação da “Bolsa dos Mercadores”
1297: Tratado de Alcanizes, firmado entre D. Dinis e Fernando IV de Castela sobre a demarcação das fronteiras com a Espanha.
1308: Transferência dos “Estudos Gerais” para Coimbra.
Criada a “Ordem de Cristo” em substituição da dos “Templários”.
Os filhos bastardos: D. Pedro Conde de Barcelos e Afonso Sanches.
As lutas internas com o filho legítimo.
A Rainha Santa Isabel.

7-D. Afonso IV, o Bravo (1325/1357):
1340: Batalha do Salado, em auxílio a Afonso XI de Castela, contra os Mouros.
1348: A peste negra.
O caso “Inês de Castro”.
Expedição às Canárias
Concessão de forais. Nomeação de “Juízes de fora” para maior imparcialidade da justiça.

8- D. Pedro I, o Justiceiro (1357/1367 ):
1361: Nas “cortes de Elvas” institui o Beneplácito Régio: legalização das decisões papais só após aprovação real.
Nacionalização das Ordens Militares.
1363: D. João, seu filho bastardo, nomeado “Mestre de Avis” .

CULTURA

O modelo místico do amor na “Demanda do Santo Graal”.

A novela peninsular de cavalaria:
O problema da autoria do “Amadis de Gaula”.

3- Prosa de edificação:

Moral:
Fabulários / Bestiários: “O Livro de Esopo”.

Religiosa:
Hagiografias. (Literatura apologética e mística – séc. XVI):
Visão de Túndalo”, “Orto do Esposo”, “Boosco Deleitoso”, “Lenda dos Santos”, “Barlaam e Josaphat”, “Vida de Santo Amaro”.


Contexto histórico da época de Fernão Lopes

Declínio da estrutura social de tipo agrário.
Burguesia das cidades beneficiada pelo comércio exterior.
Movimento das Universidades.
Fortalecimento do poder real.
Início da expansão ultramarina.
Resistência ao Castelhano na crise de 1383/1385 (narrada na “Crónica de D. João I” de Fernão Lopes ) ou à regência de D. Leonor, apoiada pela nobreza (1439/1448) - resistência apoiada na burguesia e arraia-miúda / Terceiro Estado (vivida por Fernão Lopes) - (donde, a justificação dos traços de visualismo, dinamismo e subjectividade contidos na “Crónica de D. João I”). A Nova Nobreza, chefiada pelo Infante D. Pedro, assume papel dirigente.


ARTE

Sé do Porto (XII. Alter. XVII e XVIII. Pinturas murais por Nasoni). Claustro gót., XIV. Azulejos.
Sé de Évora (XII) – rom.-gót. Claustro: XIV.
Mosteiro de S. Cruz de Coimbra (XII): Seu papel cultural. Igreja alterada, s. XVI - Boitaca.
Sé de Viseu, séc. XI, românico, alterações posteriores: estil. ogival, renascentista e barroco, frontispício actual s. XVII, entre duas torres românicas. Célebre a “Abóbada dos Nós”, XVI.
Igreja matriz de Barcelos (XIII).
Convento dos Lóios (fundado por Ayméric d’Ébrard.
Palácio de Leiria (gótico-flamejante).
Sé da Guarda (XIV, concl. XVI p/ Boitaca).
Mosteiro de Santa-Clara-a-Velha (gót.). Fundado por Afonso Sanches.

MÚSICA:

(Associada a todas as manifestações da vida religiosa e civil):

1- Música religiosa:
O Canto Gregoriano Monódico.
Ars Nova” polifonia religiosa (início século XIV).

2- Música profana:
(Inspirada na arte da dança).

Instrumentos Musicais
(dos Trovadores e Jograis):
Cordas:
Harpa, saltério, lira, viola de arco, alaúde, sanfona.
Sopro:
Trombetas, gaita de foles, cornetas, trompa.
Percussão:
Tamborim, címbalo. Castanholas.

sábado, 30 de janeiro de 2010

A propósito de um comentário

O comentário de um comentarista equiparando a libertação de Angola do jugo português ao de Portugal do jugo castelhano – “Acha que Angola era dos Portugueses, Sra Berta? Nessa ordem de ideias Portugal devia ser dos espanhóis, não acha? Será que o povo de Angola alguma vez chamou os Portugueses ou foram os Portugueses que invadiram Angola com as suas descobertas?”- fez-me responder da seguinte forma, que reponho: “É verdade, sr. Conde, Angola, Moçambique, Goa, Damão Diu, Cabo Verde, S. Tomé e Príncipe, Timor, Brasil e outras mais terras, os Portugueses aí chegaram, até a zona do “Mapa Cor de Rosa” (não sei se sabe o que é) lhes pertenceu. Foram condado no tempo do Rei de Leão, mas tiveram um conde que quis ser rei e foi, após várias lutas contra Leão, e após um Tratado de Zamora de 1143, só reconhecida a independência do Reino Português, todavia, em 1179, através da Bula “Manifestus Probatum” do Papa Alexandre III. Como vê, foram um povo valente, que realmente esteve para ser castelhano por alturas de 1383-1385, mas não chegou a ser. Foi-o de 1580-1640 e deixou de o ser. Houve sempre Homens com H maiúsculo que souberam defender o seu território, além de terem descoberto terras por esse mundo fora. Um povo valente. Até chegarmos a uma actualidade em que meia dúzia de homenzinhos o conseguiram espatifar, a coberto de ideologias de aparente solidariedade universal, mas que se viu serem antes ideologias de solidariedade para consigo e os amigalhaços. Vivemos na era dos amigalhaços. Angola de que fala e outras terras de que não falou não precisaram de muito esforço para a sua independência. Ela foi-lhes oferecida pelos amigalhaços.”
Com efeito, o comentário do sr. Paulo Conde, consegue, contrariamente ao que se propõe, valorizar a Nação Portuguesa, ao referir que "foram os Portugueses que invadiram Angola com as suas descobertas.”
Isso me lembrou um trabalho feito em tempos, que achava útil para as nossas escolas, mas que nenhuma das duas editoras a que recorri, aceitou publicar. Chama-se “TÓPICOS DA HISTÓRIA CULTURAL PORTUGUESA”, de que cito o “Prefácio” e a página inicil, dentre a trintena que o compõe, na ilusória pretensão de interessar ainda alguns Homens e Mulheres ( com maúsculas), frequentadores deste “Portugalclub” e do meu blog também. Mas o quadro tripartido do plano gráfico – História / Literatura / Arte – da composição, segundo um esquema de correspondência, de leitura na horizontal e na vertical, tive que o desdobrar, numa leitura só na vertical. Claro que o sr. Paulo Conde, que quer ser poupado a lições de história, como acabei de ler no seu novo comentário, está dispensado de o fazer, que não percebeu a mensagem.

Prefácio de “TÓPICOS DA HISTÓRIA CULTURAL PORTUGUESA”:

“O lugar comum de que “um país sem memória corre o risco de perder a sua identidade”, serve de motivo a este trabalho, ao considerarmos quanto se torna imprescindível um empenhamento dos cidadãos no sentido de uma maior conscientificação que reponha valores, actualmente desprezados num desinteresse e desleixo progressivos, como cenário preferencial nas nossas escolas e de consequências já bem manifestas nos organismos da nossa representatividade, quer sejam as deficiências linguísticas a cada passo comprovadas, quer as deficiências de comportamento a cada passo em evidência, nos estádios de futebol como em quaisquer outros locais da nossa eloquência indisciplinada.
Tal como Martin Luther King, também nós temos um sonho: o de contribuir para uma real liberdade que se defina pela razão, o respeito e a seriedade de pensamento, e isso só é possível num propósito de trabalho escolar como ponto de partida de formação cultural e cívica.
Daí, o motivo deste livro, percurso sintético e diacrónico pela História política e cultural do nosso País, como instrumento auxiliar do ensino na aquisição e compreensão globais de valores a ele referentes, e motivador do interesse dos estudantes pelo aprofundamento de dados nele apenas indiciados, proporcionando um melhor enquadramento temporal, e interessando, por isso, a várias disciplinas do seu curriculum escolar.
Viagem no tempo, viagem nos espaços da nossa afirmação como nação, viagem de amor é ela, de solidariedade para com os professores no seu insane trabalho de frustrações contínuas, mau grado o seu empenhamento formativo, pelo desejo implícito de motivar professores e alunos para explorações “in loco” no que toca a Arte, ou para pesquisa de temas no que toca à História e Geografia pátrias.
Percurso limitado nas referências que aponta, o seu objectivo maior é, pois, o de apelar para o interesse dos estudantes, motivando-os para a busca enriquecedora, nas análises ou estudos que lhes pode proporcionar uma bibliografia adequada, uma visita de estudo, a audição de um concerto, uma peça de teatro, um sarau de poesia...
Quadro mnemónico de leitura rápida, quer no plano vertical quer no plano horizontal, ele constitui igualmente um desafio ao espírito de emulação daqueles, como convite à pesquisa de dados que o completem, não só relativos à história passada, como à história política e cultural que eles vão vivendo dia-a-dia e que os próprios meios de comunicação lhes vão continuamente fornecendo.


OS FACTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS, POLÍTICOS, CULTURAIS

O CONDADO PORTUCALENSE: (s. XI /XII).

Doado por Afonso VI de Leão a D. Henrique de Borgonha e a D. Teresa, sua filha. Afonso Henriques (de 1128 a 1143).

O REINO DE PORTUGAL:

I DINASTIA (1143/1385):

1-D. Afonso Henriques, o Conquistador. (1128/1185):
- Cerco de Guimarães, por Afonso VII de Leão. Egas Moniz, aio de Afonso Henriques, fiador da promessa de vassalagem. Resgate da sua palavra em Toledo.
- 1128: Batalha de S. Mamede contra D. Teresa. Governo do Condado por Afonso Henriques.
- As lutas pela independência com Afonso VII e Fernando II, reis de Castela: Cerneja, Valdevez.
- 1143: Tratado de Zamora: o Cardeal Guido de Vico, legado do Papa Inocêncio II, tenta conciliar os dois primos – Afonso VII de Leão e Afonso Henriques. Mas só em 1179 é que o Papa Alexandre III, reconhece a independência do reino português pela Bula “Manifestis Probatum”.
- Conquistas aos Mouros : Papel dos Cruzados na Reconquista. Cavaleiros ilustres: Martim Monis (Conquista de. Lisboa), Gonçalo Mendes da Maia (Alcácer do Sal e Beja); Giraldo Giraldes (Évora), D. Fuas Roupinho (batalha naval no cabo Espichel).
- Fundação de Mosteiros (o de “Alcobaça” o mais importante pelo seu papel cultural e económico).
- Criação de aulas conventuais- Mosteiro de Santa Cruz
- Formação de novas classes sociais: Pequenos proprietários rurais e Burguesia mercantil.
- Ordens religiosas militares: Dos Templários; dos Hospitalários..
- Os primeiros forais.

2- D. Sancho I, o Povoador (1185/1211):
- 1189: Conquista de Silves., reconquistada posteriormente pelos Mouros.
- Povoamento de Reino (Vinda de colonos estrangeiros).
- Jograis: Bonamis e Acompaniado.

3- D. Afonso II, o Gordo (1211/1223):
- 1212: Batalha de Navas de Tolosa.
- 1217: Reconquista de Alcácer do Sal.
- Guerra Civil: “A Questão das Infantas”.
- A luta contra a tendência para o feudalismo e a defesa dos direitos da coroa – tendência para a centralização do poder - a lei da desamortizaçáo, os actos de inquirições, e confirmações.
......
LITERATURA

Caracterização Global da Época Medieval: Sociedade feudal, teocêntrica, espírito colectivo, filosofia cristã, dogmatismo escolástico.

I- A Poesia Trovadoresca (sécs. XII/XIV):
1- O Lirismo:
De origem peninsular:
“Cantigas de Amigo” .A graciosidade na expressão psicológica da alma feminina juvenil.
De origem provençal: “Cantigas de Amor”: O amor cortês, e a espiritualidade do retrato feminino (a “senhor”), na origem da “coita” amorosa.
2- A sátira:
“Cantigas de Escárnio e Maldizer” e a sua importância como documento social e político...

II- A Prosa Anónima (sécs XIV/XV):

1-Histórica:
Cronicões: “Crónica Geral de Espanha”, 1344.
Nobiliários: “O Livro de Linhagens” do Conde de Barcelos D. Pedro.

2- Prosa de Ficção:
Traduções, adaptações:
A matéria greco-romana: A Guerra de Tróia, Eneias.
O Ciclo Carolíngio: “La Chanson de Roland”.
A matéria da Bretanha:
O amor cortês nos episódios da “Távola Redonda”.
........

ARTE

Idade Média - (Séc. IX-XV):
Alguns traços: Simplicidade, rigidez hierática, falta de perspectiva, primitivismo.
Pintura: religiosa
Escultura: religiosa.
Arquitectura: Estilo românico (arco de volta inteira) e gótico (arco em ogiva; vitrais).

CARACTERÍSTICAS DA ARQUITECTURA:
(Militar e religiosa)
Austeridade do estilo maciço e guerreiro românico.
Riqueza, diversidade e elegância do gótico.

Arquitectura:
Castelo de Guimarães (berço de D. Af. Henr. (?) - séc. X, 8 torres quadrang., torre de menagem 27 m alt
Castelo de Almourol dos mais belos do país, mandado edificar por D. Gualdim Pais, 1171, numa ilha do Tejo. Importante na Reconquista.
Castelo de S. Jorge, em Lisboa e o seu enquadramento ambiental.
Sé Catedral de Braga (séc.. XII, alter. post. c/ estilo gótico-manuelino – por João de Castilho, Nicolau Chanterenne.
Abadia beneditina do Mosteiro de Alcobaça (o papel cultural dos Monges de Cister). (Voto de Af. H. pela tomada de Santarém). Alterado posteriormente.
Mosteiro de Lorvão (“O Livro das Aves” e “Apocalipse dito de Lorvão”, documentos. da iluminura românica.
Mosteiro e Igreja de S. João de Tarouca.
Sé de Lisboa, edif. p/ Af. Henr. sobre alicerces de mesquita moura, 1150, (a mais antiga basílica de Lisboa), arq. Rogério. Infl. anglo-saxónica. Primeiro bispo: inglês Gilberto. Fachada principal com as suas duas torres simétricas (românico tardio). Claustro p/ D. Dinis. Reconstruída no reinado de Afonso IV, no estilo gótico tardio. Túmulos de Af. IV e D. Beatriz no coro. Relíquias de S. Vicente numa capela.
Sé Velha de Coimbra – s. XII, român., arq. Rogério. Alter. post,.
Sé de Silves: XII, reconstr, XIII (gót).
Sé de Faro: XIII, grs. alterações post. O belo Órgão dos séc. XVII/XVIII
Igreja de Marvila (construída pelos Templários, XII; alter. poster., XVI)
.........

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Visões unilaterais

- Já se deu o primeiro caso. O ano começou com a sua violência tão grande, tão grande... Ela tinha uns miúdos com ela, que assistiram a tudo. Foi em Almada, o homem matou-a mesmo à frente das crianças, um dos rapazinhos teve que fugir para não ser morto também, porque gritou. O homem deu um tiro nele, a seguir, funcionou assim.
- Ainda bem que deu o tiro nele. Morreu?
- Não morreu.
- Foi pena! – exclamo compungida.
- Não, deve morrer mas em sofrimento, deve pagar. Ai, eu tenho tanta pena dos miúdos! Deviam ser muito agarrados à mãe. É outro drama, para os pais do rapaz, um homem que faz isto. Era uma rapariga bonita, com belíssimo aspecto. E ele também. Mas não interessa o nível social. O homem foi largado e não aceita, qualquer que seja o nível. O ser humano é a coisa mais incrível. Não há bicho pior. Porquê? Porquê? Porquê? Se ele até vai aprendendo, conforme vai convivendo... Depois os psicólogos vêm explicar que o orgulho ferido é o pior. Até podia ter um rebate de consciência - “eu não posso fazer isto.” Mas faz. As mulheres não têm safa. Mesmo que elas se queixem à polícia, a polícia não dá protecção. Não há safa para estas mulheres. Devia haver uma comunicação com a polícia, um telefone para ligar, carregando um botão, como os idosos da Assistência social. Elas não têm protecção nenhuma, nenhuma. Há organizações – A.P.A.V. – que fazem alguma coisa por elas. Podem pedir asilo e eles não sabem onde elas estão. Mas têm que ir trabalhar e eles descobrem. Não têm safa.
- Mas também é horrível, terem que sair das suas casas, com os filhos...
-Há seres humanos fabulosos, e depois há estes. Ontem vi uma rapariga portuguesa, nova. Ganhou um prémio. Vive no Dubai.
- Já sei, é a hospedeira do ar...
-A ida para o Dubai mudou-lhe a vida. Já vai em 600 crianças do Bangladesh as que ela protege. Perguntaram-lhe como conseguia. Respondeu: “Eu peço dinheiro a toda a gente. Se não puderem, que façam publicidade.” O Bangladesh é pior do que o Haiti. Vai uma rapariga para o Dubai, como hospedeira de bordo e depara-se-lhe a miséria de tanta gente. Resolve seguir as pisadas da Madre Teresa. Está a actuar há cinco anos e já tem obra. Já pôs aquelas raparigas com aulas de dança e música, e com algum orgulho em si. É muito jeitosa. É portuguesa. Nota-se que há já uma pronunciazinha. Talvez do inglês.
- E continua a trabalhar?
- Continua a trabalhar. Mas a vida dela está virada. Com este prémio tornou-se conhecida. Mas disse que não é isso que interessa. O que interessa são aqueles filhos que ela tem. O Projecto dela chama-se “Dhaka Project”. A gente não faz ideia do que aquilo era. Será que vão abrir os olhos?
A minha amiga falou quase continuamente. Nem deu para responder que eu achava que não iam. O mundo não se interessa por raquitismos, salvo quando são mediáticos, fruto de grandes catástrofes, que nos sensibilizam para ficarmos bem na foto. As misérias haitianas estavam ignoradas, antes do sismo. Há muitas mais por esse mundo. Mas são precisos sismos para o mundo solidário se aperceber e interferir.
Quando vim para casa ouvi o Parlamento sobre o Orçamento. Os ataques do costume, os contra-ataques do costume, as omissões do costume do Governo a respeito da obra do Governo. Obra adiada, alguma obra feita, promessas de obras que os sensatos põem em causa, acabando por dar o seu aval... Mas não se fala em industrialização, em emprego, em rentabilidade, em trabalho, a não ser no que está nos projectos grandiosos. Fala-se em obra social, numa visão sempre unilateral. Como a visão da minha amiga sobre este mundo dos porquês.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Jardim vai explodir

Falávamos no sacrossanto Orçamento, nas mesas redondas, entrevistas, etc, que só falavam disso também, no Orçamento que passou ontem, já a hora tardia, no negativismo geral, descontado o optimismo amedrontado dos governantes, na opinião acentuada de que tudo vai continuar mais na mesma e pior ainda. Porque o Ministro das Finanças não prometia investimentos sérios, rentáveis, mas o folclore de investimentos farfalhudos, de apoios sem cobrança, parcos subsídios, magalhães para distrair, aeroportos e TGVês para mais tarde recordar. Cobrança faz-se aos mesmos de sempre, àqueles de quem geralmente se serve o Governo para tapar os défices da nossa improdutividade, congelamentos de vencimentos, etc, mas nunca os pagamentos de extorsões e fraudes, fiscais ou outras, porque os das fraudes poderão repontar, despedindo ainda mais das suas empresas, ou pondo-se a cavar para outros paraísos, já servidos nas suas ambições. A bola de neve a deslizar cada vez mais inflada, a caminho do seu precipício...
E foi então que a minha amiga comentou:
- Então o Governo não quer dar dinheiro ao Jardim? O Jardim vai explodir.
- Acho que já deu muito, respondo eu, poupada.
- Temos que ouvir melhor a história. A Madeira não quer ficar independente? O turismo devia chegar. Tem todo o ano, explicou a minha amiga que em tempos chegou à Madeira.
- Mas só turismo, parece-me insuficiente para se ser independente. E tanto assim, que precisa do dinheiro da nossa dívida externa...
- Mas justiça lhe seja feita, ele tem turismo, turismo não falta ao Jardim.
- À Madeira
, reponho eu, eficiente.
A minha amiga prossegue, impávida:
- Turismo bom, de primeira. Hotéis de cinco estrelas é coisa que não falta. E estradas por todo o lado, abriram estradas através das rochas. Já não há dificuldade em circular. Isso está feito. É certo que parece que há muito pobrezinho, dizem que há uma camada de pobres onde os pedófilos também vão proteger as criancinhas. Mas pode ser que esteja diferente agora. Não é só na Madeira. Onde há pobres, os pedófilos entram. Porque há muitos pedófilos ricos.
- Nós também podíamos desenvolver mais o turismo, parece que foi essa a ideia, na redução da nossa produtividade agrícola, piscícola, pecuária, arborícola, etc, quando entámos na União.
- Mas porque é que nunca, jamais, apesar do sol brilhante, que o temos, no Algarve, além de hotéis de cinco estrelas também, nunca, jamais conseguimos desenvolver um turismo como se propuseram?
- Os motivos devem ser os mesmos de sempre. Quem se apanha com dinheiro para o desenvolvimento, abotoa-se com ele, sem prestar contas. Aqui não se prestam contas. Só os que têm mesmo que as prestar, os dependentes do Estado, com os seus impostos ou com os congelamentos impostos. Veja o que se passou com várias Universidades privadas, veja o que se passa com alguns Bancos, com algumas empresas... Nem vale a pena repetir. É a mesmice, de que Eça falou. O defeito é de todos nós, que não mudamos. Os responsáveis são os nossos genes, diz-se, não sei quais são eles, que nos fazem andar parados. Ou em fuga.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

“Patriotismo voltado para fora”

Foi na RTP Norte que hoje ouvi a distinção entre “amor pátrio” e “patriotismo”, numa entrevista feita a Artur Santos Silva que foi quem fez a referência à distinção. Mas não chegou a distinguir, efectivamente, pois do que ele falou logo a seguir, como presidente da “Comissão Oficial do Centenário da República”, foi do “patriotismo voltado para dentro” que era o de antigamente, ao que parece – não exemplificou – e “patriotismo voltado para fora” que é o dos nossos tempos e sobretudo dele, que constitui um bom exemplo disso. Com efeito, não só é bisneto de um grande revolucionário republicano da Revolução nortenha de 31 de Janeiro de 1891 contra a Monarquia, mas é também dono de cabedais importantes, os quais certamente lhe permitirão viajar lá para onde tem o patriotismo voltado, e por isso lhe foi ofertado o encargo das Comemorações do centenário do 5 de Outubro que vão custar ao Estado dez milhões de euros, alguns dos quais transitarão para a conta bancária de SS. Este, aliás, parece que foi fundador do BPI, para melhor investir internamente com reflexos pessoais no seu patriotismo exterior e os dez milhões são coisa de nada se pensarmos na importância da República para o bem-estar do nosso povo, como disse ainda SS, que disso é prova cabal, por entre muitos mais exemplos cabais das nossas provas pátrias.
De resto, nem prestei mais atenção à entrevista, feita com muita educação e delicadeza, porque logo a seguir surgiu a referência ao Orçamento, nos nossos noticiários repetitivos, à sua aprovação ou não. Mas já está tudo decidido pelo sim, de uma forma, pois, "confortável para todos" - disse o Dr. António Vitorino ontem à Judite de Sousa a respeito dessa aprovação - confortável não só para o Governo que se vê aprovado, como para os que se abstêm – contribuindo, deste modo, para aprovar o Governo, mas, virtuosamente, ressalvando as suas próprias consciências e seriedade patrióticas que mandariam escrupulosamente não aprovar. E foi o Dr. António Vitorino que falou, com satisfação, no sim para todos confortável.
Até telefonei sobre isso à minha amiga, e ficámos ambas muito confortadas, pois que, entretanto, ouvimos dizer que também iríamos comparticipar no conforto de todos, com o défice nos nossos vencimentos, para cobrirmos patrioticamente o défice externo, e ajudarmos às despesas dos festejos do centenário republicano tão eficazmente representado.
O nosso patriotismo ficou assim bem assinalado com o nosso contentamento real, sem raízes na realeza, é certo, mas resultante do nosso honrado espírito de colaboração nas medidas patrióticas de pagamento das dívidas, eu, aliás, ingénua como sou - e não é para me gabar que o assinalo - ainda com mais firmeza de convicção do que a minha amiga muitas vezes refractária a esta coisa de medidas.
Ficou, no entanto, um pouco obstruída a nossa satisfação, por não termos podido decidir, por falta de explicação, se era uma questão de "patriotismo" o que nos movia, com maior ou menor firmeza, se de "amor pátrio", e se, qualquer que ele fosse, estaria mais voltado "para fora" se mais "para dentro". Porque, “entre les deux, notre coeur balançait”, sem bem sabermos do que falávamos, já que SS preferiu usar esses chavões definidores para justificar facilmente os resultados positivos das suas ideologias económicas, alargadas, generosamente - a minha amiga falou em demagogia - a todo o espaço social português, por via de ser um espaço republicano.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

«A Corte do Leão»

«Sua Majestade Leoa um dia desejou conhecer
De que povo o Céu o tinha feito senhor.
Mandou então, por deputados,
Convocar vassalos de toda a feição,
Enviando para todos os lados
Uma escritura circular que carimbou
Com o carimbo real,
Como era sua obrigação.
Atestava a escritura
Que o Rei convocava
Para, durante um mês, uma corte plenária,
Cuja abertura
Consistiria
Em enorme festim seguido de um festival
Com um espectáculo bufão.
Por este rasgo de magnificência
O Príncipe a cada cortesão
Demonstrava o seu poderio
E mesmo a sua potência.
Convidou-os para o seu Louvre.
Que Louvre! Um verdadeiro ossário
Cujo cheiro
Atingiu primeiro
O nariz das gentes. O Urso, pesadão,
Tapou as narinas com má criação.
O seu esgar desagradou. O Monarca irritado
Logo o despachou para Plutão
A fazer de enjoado.
O Macaco aprovou muito esta severidade
E excessivamente lisonjeiro
Continuou a louvar – a cólera primeiro,
E a garra do Príncipe, e o seu antro
E sobretudo o cheiro.
Não houve âmbar, não houve flor
Que lhe não parecesse alho, em comparação
Com o infecto odor,
Para ele, delicioso
E mesmo saboroso,
E até formoso,
Se quisermos utilizar
A sinestesia
Como elemento de figuração
Da sua algaravia.
A sua tola lisonja não deixou de ser punida
Imediatamente,
Que este Senhor Rei Leão
Era parente de Calígula
Provavelmente.
A Raposa estava por ali perto
E logo o Rei Senhor
Lhe perguntou:
- E tu que sentes? Que cheiras?
Diz-mo sem disfarçar.
Mas a outra se excusou
Com a sua forte constipação,
Não podendo senão alegar
Que o cheiro lhe estava a faltar.
E assim se desenvencilhou.

Isto serve-vos de lição:
Não sejais na corte
Se quiserdes agradar,
Nem insípido adulador
Nem falador
De tola sinceridade.
E tratai de responder
Com a ambiguidade
Da falsidade:
Nem sim nem não
À provocação.»

Está visto
Que La Fontaine sabia disto.
Na nossa corte, contudo,
Os ursos são em menor quantidade,
Que não há rei que ature
Tamanha sinceridade.
Os lisonjeiros é natural
Que abundem,
Mesmo que cheire mal
No reino da Dinamarca.
Mas, ao contrário do macaco da fábula
Que foi castigado,
Têm constante lugar na nossa rábula
Ou na comédia diária
Do nosso reino.
Não vamos esclarecer, é melhor.
Quanto à raposa ambígua
E manhosa
Há em toda a parte e não só na corte.

domingo, 24 de janeiro de 2010

“O que a gente aprende não esquece”

Estava a dormir no sofá, mas acordou e começou na sua ladainha de quadras que pouco depois começou a cantar. Neste momento, canta – cansadamente, mas com prazer, porque está sol e é domingo - e repete, umas que já lhe ouvi, outras que escuto pela primeira vez: E mistura os cânticos com as lágrimas do seu passado, sempre presente, cada vez mais presente. De vez em quando pára para reflexão, de letra e tom.
-Ó mamã, mas quando é que ouviste isso, que nunca te ouvi antes?
- Eu era muito pequenina. O que a gente aprende não esquece.
E assim as transcrevo, pois fazem parte do passado cultural da minha mãe, que todo ele regressa à baila, em evocações cada vez mais centenárias:

Anda o sol atrás da lua
A lua atrás do luar
Minha alma atrás da tua
Sem a poder encontrar.

Ó luar da meia noite
Guarda-te lá para o verão
Que estes rapazes de agora
Querem escuro, luar não.

Quando eu era solteirinha
Usava fitas e laços.
Agora que sou casada
Tenho o meu filho nos braços.

Algum dia eu já fui
Raminho de andar na mão.
Agora sou a vassoira
Com que tu varres o chão.

Ó minha mãe da minha alma
Ó pai do meu coração
Por muitos anos que eu viva
Não lhes pago a criação.

Minha mãe p’ra me casar
Prometeu-me três ovelhas
Uma manca e outra cega
E outra musga das orelhas.

Meu amor disse que vinha
Quando a lua viesse,
A lua já vai tão alta
Meu amor não aparece.

Por aquela rua abaixo
Vai um gato rebéubéu
Que lhe cortaram o rabo
Para a fita do chapéu.

- “Era uma prima do Zé Carrazedo que cantava isto, ainda me lembro, tinha uns cinco anos:

Ó criada vai lá abaixo
Abrir a porta ao patrão
Vem depressa para cima
Para abanar o fogão.

Varre, varre, varre,
Linda vassoirinha
Só tu és minha
E eu sou o teu amor.
Varre, varre
Linda vassoirinha
Abana abana
Meu abanador.

A graciosidade dos temas - dos amores desprezados, das marotices amorosas, das experiências vividas, da ternura filial - envoltos na capa dos astros que iluminam a Terra, quanta coisa bonita que ignorava, juntamente com o adjectivo “musgo”, aplicado ao gado lanígero de orelhas minúsculas que ficou na tradição popular.
“O que a gente aprendeu não esquece”, disse a minha evocativa mãe.
Não é tão verdade assim, mas gostaria que a juventude de agora fosse das que aprendem bem. Para não esquecerem mais. É preciso aprender bem.

“Os lobos e as ovelhas”

«Após mil e mais anos de guerra declarada,
A paz entre Lobos e Ovelhas foi projectada.
Tratava-se, aparentemente, de uma medida acertada
Para qualquer das duas partes,
Porque, se é certo que os Lobos comiam muito animal desgarrado,
Os Pastores, com a sua pele, faziam um vestuário mais adequado.
Nunca liberdade houve, nem a respeito de pastagens,
Nem nas carnificinas, por seu lado.
Eles não podiam dos seus bens gozar
Senão tremendo.
Concluiu-se, pois, a paz: oferecem-se reféns;
Os Lobos, os seus Lobinhos; e as Ovelhas, os seus cães.
A permuta sendo feita nas formas convenientes
E regulada por comissários competentes,
Ao fim de algum tempo os senhores Lobinhos
Fizeram-se lobos perfeitos e desejosos de carnificina,
Apanham-se numa altura em que, do curral,
Os Senhores Pastores, imprevidentes,
Estavam ausentes,
Iniciaram a chacina,
Estrangulando metade dos cordeiros mais gordinhos,
Tinham avisado os seus familiares secretamente.
Os Cães, que, na sua boa fé repousavam, em segurança,
Enquanto dormiam, foram estrangulados sem tardança.
Tudo feito tão rapidamente
Que a morte, por estes mal foi sentida,
Felizmente.
Tudo despedaçado; nem um só escapou com vida.»

Embora esta fábula não venha, talvez, a propósito
Do que se passa connosco,
Que até somos um povo pacífico
La Fontaine, se a criou,
Ou se em alguém ainda mais antigo se inspirou,
Vem provar à evidência
A sua competência
Na ciência antropológica,
Porque uma fábula tem aplicação prática,
Aplica-se ao homem
De hoje e de ontem.
De amanhã também:
Os lobos acabam por sempre imperar,
Mesmo que às vezes pareçam vergar
Em acordos de ôs fechados
Com a dóceis ovelhinhas de mé més abertos
A balar.
Dos acordos fechados com os lobos
Convém duvidar.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Fabulário inextinguível

Transcrevo um texto de Alberto Gonçalves, sociólogo, publicado no DN de 17/1:

«País Alegre, triste país »

«Manuel Alegre quer ajudar-nos a “mudar a vida”. Naturalmente, este modesto desígnio apenas se atinge se elegermos um presidente com “capacidade de invenção” e “poder de inspiração”, isto é, ele próprio. Além disso, Alegre considera-se um “patriota e um cidadão” que, o que pode dar jeito, “se identifica com as raízes profundas da nossa história e da nossa cultura”. Por acrescida sorte, a profundidade não o impede de ser “um cosmopolita”, ansioso por “um Portugal que valha a pena”. E conclui: “É esse Portugal que nos interpela. É esse combate que chama por nós.”
De cada vez que abre a boca, Manuel Alegre produz um compêndio do humor inadvertido, e o primeiro instinto é divertirmo-nos à respectiva custa. O segundo instinto é constatarmos que tamanho monumento à vacuidade não só se leva a sério, como é levado a sério pela quantidade de portugueses suficiente para tornar a sua candidatura às “presidenciais” possível e a sua vitória no mínimo plausível. Aí, passa a vontade de rir da figura e apetece chorar a espécie de país que a concebeu, um país sem noção do ridículo que nos interpele, nem combate ao embaraço que nos chame. Também eu gostaria de um Portugal que valesse a pena. Alegre é uma prova de que não vale.»

Este texto de um sociólogo
Por sinal também psicólogo
Mais uma vez me levou
A uma fábula procurar
Que o pudesse ilustrar.
Duas achei,
Mas mais talvez ainda achasse
Se quisesse. Que La Fontaine contém
Exemplos a par e passo
Das nossas vacuidades,
E das falsidades
Das aparências,
Das pesporrências,
Das salências,
Dos discursos de palavrório
Para pacóvio engolir
Sem pensar em descobrir
Que está a ser levado
Por quem o sabe enganar ,
E não só por esse,
Mas por quem o vai apoiar,
Desinteressado
Em bem governar
E só ocupado
Com a sua própria pessoa...
Vejamos então a fábula primeira ,
Tão conhecida e antiga,

«A montanha parideira »
«Uma montanha em trabalho de parto
Lançava um clamor tão infeliz
Que cada qual, acorrendo,
À gritaria lancinante
Foi imaginando
Que uma cidade maior do que Paris
Ia sair do seu pranto.
Pariu um rato.
Quando penso nesta fábula
De enredo tão sem tento
Imagino um autor que diz:
“Eu cantarei a guerra pelos Titãs feita
Ao Senhor dos Trovões”.
É muito prometer.
Mas que sai muitas vezes de tanto prometer?
Vento».

Eis a segunda fábula
Que serve para nos avisar,
Se nisso quisermos cuidar,
Que o parecer
As mais das vezes se distingue do ser,
Que o que parece mau ou demasiado importante
Muitas vezes não passa de coisa insignificante:

«O camelo e os paus flutuantes»
«O primeiro homem que um camelo avistou,
De tal criatura, assustado, se pisgou,
O segundo, dele se foi aproximando.
O terceiro já ousou,
Para o Dromedário, fazer uma arreata,
Desse modo esperando
Dar aprazível passeata.
Assim, ao que parecia terrível
O costume o tornou domesticável.
E já que estamos nesta temática
Vejamos outro exemplo da nossa prática:
Uns fulanos foram postados em emboscada
À beira-mar, e vendo, ao longe, na bruma
Uma certa aventesma pela distância transformada,
E pela espuma,
Não puderam deixar de referir
Que se tratava de um poderoso navio,
Para pouco depois lhes parecer
Um navio incendiário simplesmente;
Seguidamente,
A bote passou e mais adiante
Era apenas um fardo flutuante,
Paus dispersos nas ondas, finalmente.
Conheço pelo mundo muita gente
A quem isto se aplica facilmente:
De longe, são coisa importante,
De perto, coisa nenhuma ou pau flutuante.”

E é desta forma que o “País Alegre
Não passa dum “triste país
Se se deixar levar pelo que Alegre diz,
Ou pelo que de Alegre dizem
Os que em Alegre votam
E os olhos e ouvidos fecham
À banalidade e ao vento
Dos discursos de Alegre bento.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

“VAE VICTIS!”

Quando ouço as vozes do nosso optimismo – as do Dr. Mário Soares são uma delas, trazida constantemente à liça dos anúncios televisivos, não sei se a pedido do governo socialista que nele se apoia em recurso, não direi de extrema unção, mas de extrema finura para captar os extremamente fáceis de captar e de manipular, que somos nós como povo sintético em questão de mentalidades – transcrevendo Vasco da Graça Moura, escritor, que no seu artigo de 20 de Janeiro “A !8ª Autonomia” no “DNForum”, nos chama “uma sociedade invertebrada, inconsequente, irresponsável e de um analfabetismo político encarapaçado, uma sociedade cujo governo canceroso uma governação assim... (a governação deficiente de “piruetas”, de “derivas estridentes sobre temas secundários, de controlo subreptício e crescente da comunicação social, tudo com o objectivo de serem levantadas quantas nuvens de poeira sejam necessárias para iludir as questões...” ) – quando ouço, pois, vozes optimistas a mando da tal governação, não da extrema unção mas da extrema finura, sinto-me logo confiante na retoma e condeno esses que nos tomam por atrasados mentais, como o escritor Vasco Graça Moura que não faz parte.
Entro mesmo em confiantes malabarismos de projectos caseiros, por conta já desses optimismos encomendados, “porque eu quero ser feliz”, como disse Dulce Pontes, além de que também “a desdita não se diz” como a Dulce também disse, ao contrário do fado nacional que diz.
Mas o artigo de Vasco G. Moura deprimiu-me, apesar desse meu anseio de felicidade, ao mostrar que estamos a caminho de nos tornarmos a 18ª autonomia espanhola. Transcrevendo, do texto de Graça Moura: “Infelizmente, os iberistas de serviço verão a sua posição triunfar deste modo ínvio. Por obra e graça de desacreditada governação socialista, Portugal está a caminho de se tornar na 18ª autonomia espanhola, a mais periférica, a mais desinteressante, a mais pobre”.
Resta-me a esperança de que não nos queiram “nem de graça”, como eu também já disse e mais uma vez vou transcrever o que disse, que parece que adivinhava o que o escritor Vasco da Graça Moura ia dizer ontem. Mas pode ser que também ainda não seja desta que nos tornemos no que ele disse. Vejamos o que disse eu em “Anuário – Memórias Soltas” num texto de 1983, pedindo desculpa por estas transcrições pessoais de exóticas e poéticas advertências que foram inúteis na altura como o são agora, com retórica ou sem ela, que é o próprio da poesia, a sua inutilidade:

“É comprar, Senhores...”

«Os jornais deram há dias reportagem primorosa sobre a integração lusitana no bloco peninsular. Andamos baixos de escudos de forças de homens de crenças queremos ajuda alheia seja qual for o seu preço dai-nos vossa mão Senhores.

Já não temos que comer nem solas p’ra pôr de molho o gageiro sobe ao mastro e não topa terra firme nas areias portuguesas Sebastião não virá na manhã de nevoeiro as barras de ouro herdadas dos tempos da ditadura estão em vias de extinção nada temos p’ra deixar aos filhos do nosso amor dai-nos vossa mão Senhores não nos deixeis liquidar.

Os Espanhóis são mais ricos bem nos podem ajudar pelo prato de lentilhas como Jacob deu ao irmão damos-lhes a governança da nossa nau naufragada dai-nos lentilhas Senhores em troca da nossa barca.

Não era a primeira vez que Espanhóis nos governavam somos ineptos Senhores isso está mais que provado arriscai Senhores em nós valemos pouco dinheiro arriscai Senhores em nós o nosso preço é barato.

Temos desejo de ordem e de governos de força oito séculos de História é lirismo p’ra esquecer arriscai Senhores em nós bem nos podeis apoiar.

A vida é curta gozemo-la tendes as vossas pesetas ficar-vos-emos mui gratos se nos quiserdes comprar valemos pouco dinheiro o nosso escudo é barato dai-nos vossa mão senhores queremos continuar seja qual for vosso preço.

Ninguém nos quer? Oh! horror! Não nos quereis nem de graça? Seremos nós pobres párias de toda a parte excluídos? Arriscai Senhores em nós prometemos ser fiéis dai-nos depressa as lentilhas não nos deixeis afundar.

Dai-nos vossa mão Senhores...»

É então a hora agora?

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Presidenciais

Há quem esteja descontente
Com o nosso Presidente
Achando que não tem grande jeito
Para exigir mais preceito
A um governo que asneia
Volta e meia.
Então,
Como a nação tem tendência
Para agir com imprudência
- P’ra não falar na decência –
Decidiu-se escolher
Quem mais saiba utilizar
O discurso da saudade
Da paixão e da bondade
Que a todos nos vai safar,
Embora seja outro o intento
Dessas cantigas de vento,
P’ra meninos embalar.
Lembrei-me, pois, de avisar
Através doutra canção
- Uma fábula, exactamente –
De alguém com muito tento
Que com fábulas alimentou
Multidões e gerações
De gente que o interpretou
Como gente inteligente
E que a si as aplicou
Para melhor se corrigir
Consoante o caso citado.
Propus-me então traduzir
Ainda que livremente,
Para quem não sinta enfado
A fábula de La Fontaine
“As rãs que pedem um rei”
Apenas para esclarecer
Que nos devemos contentar
Por vezes com um mau senhor
Porque o que vem a seguir
Pode ser muito pior
Contra a lei e contra a grei:

«Queixando-se as rãs um dia
Da sua democracia,
Sem ninguém a comandar,
De tal modo reclamaram
E coaxaram
Que Júpiter as submeteu
Ao poder da monarquia.
Do céu lhes caiu um Rei pacífico
Que, todavia,
Tanto estrondo fez ao cair
Que aquele povo pantanoso
Receoso
Sob as águas se foi esconder
Nos juncos, nos canaviais
Nos buracos dos paúis,
Sem ousar o rosto fitar,
Durante um certo tempo,
Daquele que julgaram grão senhor
E apenas se lhes revelava
Temível Adamastor.
Depressa puderam verificar
Que o rei que assustava
Afinal não passava
De um totó bonacheirão.
Uma das rãs aventureira
Foi a primeira
A abandonar a sua toca:
Aproximou-se a tremer
Mas logo outra a seguiu
Outra e mais outra, e outras mais.
E esta tropa fandanga,
Já muito familiarmente,
Ao pescoço do Rei saltou
Que muito se assustou
Mas que as rãs aguentou
Resignadamente.
Júpiter de novo reclamado
Ficou meio atordoado:
“ Dê-nos, disse esta gente exigente,
Um rei mais valente
E não como este,
Sem pimenta nem sal.
Então,
O monarca dos Deuses
Um grou lhes mandou,
Que os trinca, que os esfola
Que os engole avidamente
Por princípio e não por mal.
E as rãs se queixaram de novo
Ao Jove, que lhes responde com a frieza
Da sua realeza:
-“Então? Então?
O vosso desejo é sujeitar-nos caprichosamente
À vossa imposição?
Antes de mais nada
Vocês deviam
O vosso governo ter guardado.
Não o tendo feito, deveriam ter aceitado
Que o vosso Rei primeiro fosse
Bonacheirão e doce.
Contentem-se agora
Com o Grou matador
Não venha por aí ainda outro pior.»


A fábula é perceptível,
Não vamos analisar,
Mas podemos concluir
Sobre a necessidade
De pensar esclarecidamente
Antes de um candidato escolher
Para presidente,
Não venha por aí um doutor
Impostor,
A botar faladura
Com falsa ternura
E a sua amargura
De antigamente,
Para melhor
Conquistar o presente.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Os paralelos da nossa imortalidade (Conclusão do texto anterior)

Transcrevi ontem parte de um texto de reportagem – “Carta de amor a um pai racista” - da jornalista Fernanda Câncio sobre a ex-jornalista, actual professora e bloguista editada, Isabela Figueiredo, que decidiu publicar as suas memórias colonialistas acusatórias, trazidas na bagagem das suas recordações familiares, de doze anos embarcados para cá, por um pai que a estremece mas maltrata os negros da sua alçada produtiva, pai que irá representar, nas memórias publicadas, e já depois de morto, o símbolo da sua pátria colonialista, exploradora, racista e opressora.
Já por esses tempos do seu embarque – ou ainda antes, que o meu retorno com os cinco filhos se fez em 74 – os meus trinta e nove anos tinham topado com idênticos espécimes, talentosos ou menos, que para se protegerem das fúrias dos naturais africanos, decidiam passar as fronteiras do país (“fronteira entre todas as lealdades” na expressiva expressão de Câncio) onde eles próprios também tinham ganho a sua vida, acusando os menos conformados com a mudança, e traindo orgulhosamente a Pátria dos seus antepassados.
Esta Isabela Figueiredo na companhia da sua entrevistadora Fernanda Câncio, também trai, em continuidade da semeadura por tantos lançada à terra. Trai o pai e trai a pátria, que àquele associa, em simbólica analogia de tirania racista, indiferente à obra lá deixada por racistas e não racistas, embora ela só realce os primeiros, como genéricos da sua designação simplificada.
Enquanto, pois, houver Portugal, ele poderá contar com gente parecida com Isabela e com Câncio, que, mesmo sem experiência “in loco”, acusam por ouvir dizer, ou para se darem a conhecer, ou para se defenderem, como outros antes delas o fizeram, heroínas e heróis da nossa continuidade, paralelos da nossa imortalidade. Cada vez mais generalizados, socialmente falando. Daí a nossa esperança de sobrevivência.
Eis o texto de “Pedras de Sal”, também contido em “Cravos Roxos”, com que exemplifico o que atrás referi sobre os paralelismos diacrónicos da nossa heroicidade. É sobre uma professora, igualzinha, na vocação, a Isabela Figueiredo. Creio que também na argumentação:

“Uma professora por vocação”

«Depreende-se que o não é por precisão. Chama-se Maria Manuela Pereira, apresentou, segundo o “Notícias” a assinatura reconhecida, para o caso de a não quererem reconhecer, com certeza por desconhecimento da sua vocação, e dirige uma Carta Aberta ao Inspector Alves Pereira. Como é aberta, todos nós pudemos avaliar-lhe o conteúdo, que o Notícias em 28 de Junho achou por bem patentear-nos, pois cabe dentro dos esquemas democrático-literários do reputado jornal.
A Srª D. Manuela, professora por vocação, diz que leu e releu o depoimento do Sr. Inspector acerca do êxodo dos professores. Como não o percebeu, apesar da muita leitura, expõe-lhe as suas dúvidas. E depois da exposição, conclui afirmando que já se lhe acabaram as dúvidas à medida que as foi expondo. Mas dentro das suas fracas possibilidades de “escrevente”, convida o Sr. Inspector a esclarecer-lhas uma vez mais.
Apreciei a humildade na referência às suas possibilidades, em que não acreditei, mas humildemente confesso também as minhas dúvidas e suplico à Srª D. Manuela Pereira que mas esclareça: se as suas dúvidas já tinham findado à medida que as foi expondo, por que motivo exige mais explicações do Sr Inspector? E para mais traçando-lhe o estilo, a pretexto de que é pessoa de falas directas, detestando explicações palavrosas sem qualquer conteúdo. Por isso, caprichosamente, as quer simples e sem subterfúgios. Fico ansiosa à espera de ler a resposta simples do Sr. Inspector.
Entretanto, permito-me analisar o conteúdo simples e sem subterfúgios da Carta Aberta.
Parece que na nossa (da Srª D. Manuela) querida Quelimane não há nenhum professor que seja apóstolo nem educador, nem mesmo se salvando os de vocação, como a Srª D. Maria Manuela Pereira.
Todos eles ou acumulam dois cargos docentes, ou dão explicações além das aulas, ou dão aulas além doutro trabalho público. Não nos informa a Srª D. Manuela em qual dos grupos se enquadra, lapso sem importância de maior. Por tal motivo, digamos, acumulativo, os professores nem são apóstolos nem educadores. Esta dedução deixa-me intrigada, pois não vejo em que uma acumulação possa impedir um apostolado, como se verifica diariamente entre os médicos, os advogados e outras classes livres, com a diferença de que nestes os resultados da acumulação são mais visíveis, embora idênticos os do apostolado.
Afirma em seguida a Srª D. Manuela que nunca a imprensa a ofendeu, embora não seja diferente da maioria – donde se depreende que o é da minoria. Tudo isso sem grande lógica, para apontar como responsável do boato a classe do professorado. Tantas responsabilidades já pendentes sobre tão onerada classe e ainda mais essa a pesar nela!
Parece que o Sr. Inspector embirrou com os termos “opressor”, “colonialista” e outros assim desagradáveis que, como português, lhe chamaram. A Srª D. Manuela diz-se estupefacta, pois aqueles a ela nunca, há cinco anos que lecciona. Ela mereceu outros – subversiva, comunista, revolucionária – nunca opressora nem colonialista. Eis-nos, pois, chegados, à coroa de glória da Srª D. Manuela: democrata, com muita honra é o que ela é, que um título é sempre um título e esse actualmente tem muita saída.
Também não admite a Srª D. Manuela a imposição da nossa cultura em Moçambique, não acha isso lícito e enerva-se, embora até se orgulhe da cultura portuguesa. Mas queria estudar as duas culturas paralelamente, a portuguesa e a moçambicana e não a deixaram. A Srª D. Manuela é uma digna descendente do Viriato que lutou com todas as veras para que a romanização não fosse um facto na Lusitânia. A Srª D. Manuela, digna descendente do lusitano, não desejaria o aportuguesamento em Moçambique, apesar de se orgulhar da cultura portuguesa, orgulho sem dúvida resultante da superioridade rácica surgida depois da dita romanização, mas de que se mostra representante muito contrariada e desejosa de retroceder em busca do primitivo mais fácil.
Quanto à obra material que os portugueses cá introduziram, considera a Srª D. Manuela iradamente que ela foi só para benefício dos exploradores portugueses. E afirma-se professora por vocação, a Srª D. Manuela! Nas horas vagas, provavelmente, por isso não deu pelos alunos portugueses que pululam nas escolas. Também não dá pelos doentes africanos que pululam nos hospitais. Nem por todos aqueles funcionários africanos que vão pululando pelos serviços públicos, em virtude dos cursos que os tornaram aptos para isso. Médicos e advogados africanos conhece alguns, com certeza, conquanto não pululem, nisso dou-lhe melancolicamente razão.
Entende, igualmente, depois de fazer rigoroso exame de consciência, que temos sido muito desumanos com os africanos, e convida-nos a fazer o mesmo exame. Pus-me logo a fazer o meu e não achei que fosse, mas não sei qual o resultado do exame do Sr. Inspector.
A minha Marta até já me disse que tem muito medo se houver a tal mudança de governo preconizada pela Srª D. Manuela e os outros democratas, a fim de se tratar tudo com maior humanidade e se desenvolver tudo com maior velocidade.
Quando esse governo vier, a Srª D. Manuela desempenhará nele um cargo de vocação que modificará os esquemas desumanos anteriores, tenho a certeza. E é essa certeza que me leva a não recear o futuro, como a minha Marta, e a não participar, como professora que sou, por curso e precisão, no êxodo dos outros professores.»


Não sei se a Srª D. Manuela ficou por lá onde defendeu os que amou ou se também participou no êxodo dos professores. Eu confesso que participei, em desmentido da promessa, com pejo o recordo.
Mas hoje, a hora é de Obama. Hora de Isabela Figueiredo aproveitar a deixa, lembrando massacres que parece não terem existido, em Moçambique, acusando o pai morto de tropelias em vida, que talvez ele não tenha cometido, mau grado os whiskies, perfeitamente desculpáveis, das suas farras – (isto é o que diz a minha amiga, desconfiada das memórias da criança de doze anos, que foi Isabela quando abandonou o seu solo pátrio, também em retorno paternalmente protegido) – para torná-lo, ao pai, símbolo da pátria racista, em homenagem globalizante, de ternura filial e patriótica.
Isabela Figueiredo já está a ter notoriedade, na venda do seu livro, nas entrevistas televisivas, nas reportagens jornalísticas, nas fotos do seu prazer. A Pátria, reconhecida, premeia.
A hora é de Isabela Figueiredo, e de todos os promotores do seu sucesso, que são muitos, hora de Fernanda Câncio, talvez também da Srª D. Manuela Pereira, como pessoas sensíveis à cor e à dor da cor, quando é diferente da sua própria. Há sempre pessoas sensíveis à dor da cor diferente, embora em expressão unívoca, em desprezo pela dor dos da própria cor.
Estamos na hora de Obama. Saber aproveitar é uma virtude.

domingo, 17 de janeiro de 2010

Para safar a pele

Levei hoje para a minha amiga um texto do DN Gente, de 9 de Janeiro que a minha irmã me mostrou, indignada com o conteúdo da mesma. A minha amiga também ficou indignada.
É de Fernanda Câncio, sobre Isabela Figueiredo, uma portuguesa nascida em Moçambique, que aos doze anos foi mandada para Portugal, por alturas da descolonização, confiada a familiares pouco compreensivos, ela própria parecendo hostilizar o ambiente metropolitano pouco receptivo. Como jornalista, sentiu-se manietada, é actualmente professora de português, ao que parece das injustiçadas pela política ministerial, mas finalmente encontrou a paz, feliz entre a miudagem que lecciona. Teve um blog “O Mundo Perfeito”, das memórias de África, tem um novo blogue “Novo Mundo”, parece que também perfeito. E tudo isso publicado na Angelus Novus. A reportagem apresenta ainda ternurentas fotos memorialistas da menina, e uma foto da Isabela adulta.
- Esta fulana Câncio publica isto, tem quase todas as pessoas que lá viveram contra ela – começou a minha amiga. Quanto a esta Isabela, tem que ser uma louca, uma tarada. Pode ter muita raiva ao pai e está a vingar-se.
Com efeito, o livro que publicou, “desfaz, segundo Câncio, o postal da África mitificada, doce, dos fins de tarde rosa, dos vestidos brancos, dos criados negros calados,naturalmente submissos” (na expressão de Isabela) e agradecidos a quem (na de Câncio) “se tratava muito bem” (Isabela). Não (Câncio).É terrível falar disto (escreveu Isabela) mas a verdade é que nós vivíamos num país onde se podia atropelar um negro e não ir para a prisão...”
- Mas isso ainda hoje acontece. Lá como cá. Basta que se prove que a culpa não foi do atropelante. A minha amiga conhece casos.
Continua Câncio:Sim, Isabela é capaz de ver e dizer isto, esta coisa arrepiante: houve uma espécie de justiça no massacre dos brancos. Mesmo se ela sabe que quando em Setembro de 1974 mataram famílias conhecidas à catanada, espalhando-lhes os restos pelas machambas, animais e pessoas, tudo o que era branco, à mistura, só por sorte inaudita ela e os pais não fizeram parte das contas”. (Isabela):Quando começaram os tiros escondemo-nos no corredor da casa, deitados no chão... ainda hoje me pergunto se foram os nossos vizinhos negros que nos protegeram.” (Câncio): “Os vizinhos negros com quem ela estava proibida de se dar, como o menino da casa ao lado com quem queria brincar, ele em cima da árvore, ela sobre a garagem, a conversar até a mãe os apanhar em flagrante...” (Isabela):As minhas memórias de infância estão cheias desses interditos. Nós não podíamos dar-nos com os pretos e tudo o que eu queria era dar-me com eles. Queria usar capulanas, andar descalça, aprender a língua... E tudo isso me era proibido.”
Neste ponto, apontámos a contradição do discurso com a foto da reportagem, das meninas de vestido branco, provavelmente da comunhão solene, onde Isabela está no meio de uma maioria de meninas negras.
Eu ainda considerei gravemente a possibilidade de ela preferir não as meninas pretas, que eram bastantes, pela foto se vê, mas os meninos pretos, por naturais instintos de adolescência em expansão.
E a minha amiga, acrescentou, sempre irada:
- Os meus filhos andaram na escola primária de Quelimane com uma maioria de rapazes negros, brincavam juntos, e um deles lanchava em nossa casa, trazido pelo meu mais velho.
Eu também falei da minha infância de pé muitas vezes descalço, com as meninas goesas e os meninos indianos da nossa rua, em correrias e brincadeiras, subidas às árvores da rua 5 de Outubro, de cujos galhos da época das podas camarárias o meu pai fazia andas para montarmos.
E é do pai que se fala agora, nos discursos de Câncio / Isabela, pai muito amado, mas muito bruto para “os seus muitos pretos(Isabela), que “agredia com palavras e porrada (Câncio) para as tardes de camarão grelhado e penalties com os outros homens em que aprendeu a linguagem do racismo, para as aldeias onde espancava um empregado faltoso”, (Isabela):um preto de merda”, “um preto cabrão”, enquanto aconselhava a filha “a ser independente, dona da sua vida”.
Segue-se o discurso evocativo sobre o pai amado, mas que vai incriminar, agora que morreu: “Saldar, a bem ou a mal, a dívida que pensava dever, não se importar de ser uma cabra, pária de sangue e de raça”, escreve" diz Câncio, que prossegue: “A pária que retrata no pai Portugal e a história do colonialismo...” “A “traidora” que caminha na fronteira entre todas as lealdades”, expõe Câncio de Isabela, muito incongruente na sua bondade de defesa das pessoas – embora só as que não foram massacradas – atacando o governo da descolonização, já esquecida do que um pouco atrás afirmara sobre os colonialistas racistas, merecedores de massacre: “É imperdoável que o governo da altura, sabendo o que se tinha passado noutras descolonizações, tenha deixado ali as pessoas. A descolonização foi muito mal feita – e podia não ter sido. As pessoas foram entregues”, conclui penalizada.
De qualquer maneira, safou-se Isabela, entregue pelo pai, preocupado em salvar a filha, aos hospedeiros aéreos, mais o cãozinho da foto. Para contar a história.
A minha amiga mostra repulsa e desprezo:
- E esta Câncio que não percebe nada de África, põe isto no jornal! E a outra! Imagine ela a transmitir estas mentiras aos miúdos! É duma atrasada mental!
- Ou oportunismo literário, para vender o livro.
-Ou isso! Veio aos doze anos para cá! O que sabe ela?
E a minha amiga refere que, nas viagens que fizeram a África, há uns anos, ela e o marido, foram recebidos pelos criados, o porteiro do Polana e outros negros amigos, com verdadeira alegria e desejo de que voltassem, “que os portugueses é que eram humanos”.
- É claro que disse verdades, más educações e prepotências sempre houve, em toda a parte. Mas o livro é uma bojarda.
- Conheço o género. Para safar a pele. Amanhã vou transcrever um texto de “Pedras de Sal”, sobre uma professora acusadora, tal como esta, muito progressista, muito individualista, muito insensata. Julgava que já tinham acabado estas figuras sinistras.
(Continua).

sábado, 16 de janeiro de 2010

Alegre disponível

Ouvi hoje a expressão, mas muito já tenho ouvido, ao longo destes dias, não só sobre a disponibilidade de Alegre, mas sobre a disponibilidade, mesmo triste, de todos os da esquerda para aceitar Alegre.
De facto, não se estranha que o aceitem, porque Alegre tem aura, soube sempre aproveitar-se da aura, que lhe ficou do seu diálogo – monólogo – com o vento que passa, vento mudo aos seus apelos, segundo afirmou, daí monólogo, que Adriano Correia de Oliveira tão tristemente soube entoar, em balada que se tornou hino do povo triste.
Monólogo soturno, de desterrado que lutou pela liberdade do seu país, mesmo combatendo a atraiçoar esse país, que era seu. Outros o fizeram, ninguém se ralou com isso, que também lhes deu aura, e também ficaram disponíveis para as presidências, com todas as honrarias.
Manuel Alegre concorreu, nas últimas presidenciais, com Soares e Cavaco. Perdeu para Cavaco, ganhou a Soares. Regozijou-se por ter vencido Soares, entristeceu mais soturnamente por não ter ganho a Cavaco. Porque a sua disponibilidade vem de longa data, de deputado de convicções fortes, expressas em zelo de nobreza de alma, de defensor do povo atribulado. E sempre soturnamente expressas.
E agora vai ganhar, por ter o apoio de todos os da esquerda que como ele defendem os tristes, já não os da ditadura mas os da democracia. Alegre, que se sentava ao centro, adoptou a nova designação de socialista independente, para agarrar os eleitores de todos os espaços da sua independência. E sempre com a sua voz soturna, a sua voz de bardo romântico, o seu zelo de nobreza de alma, que segue os ditames sagrados do humanismo, pelo menos enquanto não sobe ao posto a que aspira.
E Sócrates dá-lhe apoio, em paridade de princípios – ambos humanistas, ambos cordialmente solidários, ambos entendendo-se bem, mesmo nas suas disparidades ocasionais.
Os da direita não acham ninguém para representar a Nação, desapoiam Cavaco, como desapoiam outros da sua esfera, vivem na indisponibilidade solidária, na intriga permanente, defensores do interesse pessoal, desprezadores do interesse nacional.
É preciso defender o interesse nacional, mesmo ficticiamente, a coberto do nosso próprio interesse.
A hora é do bardo.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Os poderes certos

Começámos pela catástrofe de Port-au-Prince:
- Finalmente apareceu o “prince”, disse a minha amiga, que sabia do palácio, em parte arrasado, e estranhava que não se falasse no presidente do país.
- Durante os primeiros dias, ninguém falou no presidente, continuou. Finalmente apareceu. Estava no aeroporto, sítio aberto para acolhimento de sinistrados. “Eu vim para ajudar”, disse ele. O meu palácio também está arruinado. Não tenho para onde ir. Ia para outra ilha, para não correr riscos inúteis. Só o ouvi dizer: “Temos que agradecer a ajuda ao mundo”.
- Realmente o mundo inteiro tem mandado ajuda. Até nós. Mas aquele horror é indescritível, não há ajuda que chegue. As pessoas não voltam aos seus escombros, ou seja, os das suas casas, fica tudo na rua, com medo das réplicas que tem havido. Há milhares de mortos, falta de médicos...
- O hospital que tinha cento e tal médicos está reduzido a vinte, presos os outros nos seus espaços, à procura dos familiares ou talvez até mortos... As ajudas, como vão ser prestadas no meio de tal caos?
- Os noticiários falam na necessidade de coordenação para as ajudas enviadas, falam muito em logística, gerir a logística. Têm razão, mas entretanto morre-se, sofre-se, é o horror dos horrores.
-Nada se sabia do Haiti. Sabia que a capital era Port-au-Prince?
A minha amiga descrê definitivamente dos meus saberes.
- Sim, das “Questions pour un Champion”. De vez em quando perguntam. E que era sítio de turismo.
- Para turista rico. E agora ouve-se dizer da miséria, do povo mais miserável das Américas, com a média de subsistência de um euro por dia, dois para os mais abonados. Como é possível, ocupado anteriormente por franceses, pela ONU... Viu aquela portuguesa que escapou por um buraco?
- Foi por um triz, também ouvi. E os catorze brasileiros da ONU, alguns já de regresso, que morreram!
- Ai, que pavor! Pessoas que ficaram ali horas, dias, com dores, dores, dores... Se aquele tremor de terra tivesse sido aqui, nós devíamos ter a mesma coisa, com tantos edifícios arruinados. Mas lá ainda pior! Até o palácio foi abaixo! E vê-se que é um país de gente nova. Aquilo é só fazer filhos! Não há governo nenhum que exija o controle da natalidade!?
- Fala-se em grande taxa de analfabetismo e em condições miseráveis das vidas.
- Há dias vi um programa sobre a Suazilândia. Parece que dentro de anos não vai haver lá um adulto. As crianças não têm pais, que morrem de Sida. Mostraram uma escola. Montes de crianças, tudo sem pais. Talvez sobre a professora.
- Também em Moçambique e em Angola...
- É. Ninguém pronuncia a palavra sida, nesses países. Morrem de repente. Ali também não é uma questão de cultura. As pessoas são avisadas. Mas não há dinheiro para preservativos. E os espaços são infinitos para o amor, com palhotas ou sem elas.
Achei que a minha amiga exagerava. Mudei de assunto.
- Ouviu mais alguma notícia sobre o caso Maddie?
- Então não leu a Isabel Stilwell no Destak de ontem?
Não tinha lido. Parece que defende a verdade do casal, ou seja, a que pede a condenação do ex-Director da Polícia Judiciária, Gonçalo Amaral, por ter responsabilizado – em livro – a família McCann, pela morte da filha, quando o processo fora arquivado por falta de provas.
Parece que foram indiferentes as razões de Amaral a Isabel Stilwell, que sabe da poda a respeito de justiças. Não importa que o processo tenha sido arquivado - a minha amiga acha que depressa demais - nem sob a influência dos altos poderes que o fizeram arquivar. A única verdade para a Stilwell é que Amaral não podia ter acusado, quando a Justiça silenciara, não é de lei..
Os motivos da Justiça foram ocultados com o vago “sem provas”. Os de Amaral foram ridicularizados na sua saliência “literária”. E esse é o verdadeiro crime. O de Amaral querendo saliência. E acusando, mostrando provas quando a Justiça as quisera omitir.
Isabel Stilwell está preocupada com o país onde se permitem acusações de crime, em processos arquivados. Mesmo que os casos não tenham sido deslindados judicialmente. E ainda por cima, por mera saliência literária. Ou aproveitamento mediático lucrativo. Embora todos precisemos de lucro, mesmo os McCann.
Amaral está tramado. Vê-se que Stilwell também tem muito poder. E que joga nos poderes certos.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Pequena Maddie

A minha amiga estendeu-me o “Destak” de hoje, quarta-feira, 13 de Janeiro de 2010, com o casal McCann, ambos lindos de morrer, autênticas estampas em passagem de modelos, sempre de mãos dadas, como há três anos, embora mais desprendidos no vestir nessa altura de primavera, tempo de praia e do seu luto.
A pequena Maddie desaparecera, nesse 3 de Maio de 2007, os dois irmãos dormindo, os pais jantando com amigos, avisada a televisão inglesa, antes de o ser a polícia portuguesa. Sofrimento, críticas aos pais descuidados, a fé na filha viva, os mistérios e os mitos em torno do rapto, os apelos comovidos dos pais, a devoção na igreja da aldeia algarvia da Luz e junto ao santo Padre, o recurso às entidades policiais, as más línguas da Internet negando a presença da menina, a crença popular numa mistificação dos pais para angariar fundos, a polícia constituindo arguidos os pais, por crença na sua responsabilidade na morte, o regresso a Inglaterra, os cães ingleses farejantes de pistas, a intervenção de gente grada inglesa, em cada ano que passa novos apelos do casal McCann, novos fundos para a sua fundação, talvez também para o seu vestuário, novas vindas à aldeia da Luz para novas demonstrações e pistas, e os diversos anúncios de uma menina com traços de Maddie levada por gente esquiva ou outra. E os comerciantes da aldeia da Luz queixando-se amargamente, pelo défice no turismo que o caso tão mediatizado provocara nos seus negócios.
Entretanto o ex-Director da Polícia Judiciária, Gonçalo Amaral, postas em causa as suas alegações condenatórias do casal McCann, escreve o livro “A Verdade da Mentira” sobre o estranho caso. Mas luta com gente de poder, ligada ao partido trabalhista inglês.
E é o bonito casal de mãos dadas sempre, que o Destak destaca, que vem defender a sua justiça inglesa contra a justiça portuguesa – ou de alguma da justiça portuguesa, porque se a nossa justiça sofre pressões dos poderosos do nosso poder, não deixará de sofrer as da Inglaterra, de poder mais poderoso ainda.
E a minha amiga contou da entrevista que leu, à mulher de Gonçalo Amaral, de saúde arruinada, os bens congelados, os filhos pequenos, a perspectiva de terem de pagar milhões à fundação McCann, caso percam o caso, no que a minha amiga crê.
- Meteram-se com gente poderosa, devia ter ficado mudo e quedo. Só os McCann conhecem o caso na sua verdade.
Eu nunca acreditei numa mistificação, na sua falsidade, figuras tão sóbrias, tão dignas, tão sérias, tão sempre de mãos dadas, contendo emoções no seu mútuo apoio, que os isolava dos outros, não sei se por desprezo pelos outros. Embora estranhasse o profundo sono dos dois irmãos de Maddie. E o aviso prioritário dos pais à televisão inglesa. De facto, nada daquilo me pareceu humano, tudo bem elaborado, a comoção contida dos seus apelos, que logo lhes proporcionou fundos financeiros, a beleza das suas figuras, das suas démarches, dos seus apelos cronometrados, figuras da tragédia grega, sóbrias e belas. E trágicas. Nunca acreditei que não fosse verdade.
Mas tanto a minha irmã como o meu filho mais velho sempre os condenaram. No abandono dos filhos, em vez de arranjarem uma babby sitter que velasse por eles enquanto se divertiam com os amigos, contando, para se justificarem, das suas idas frequentes ao quarto dos filhos.
A minha irmã perguntou-me hoje pela minha amiga, que é sua também. Expliquei-lhe do teor da nossa conversa, mostrei-lhe o Destak, com a foto de estampa.
- Cretinos! Não vão nada ganhar! O Gonçalo Amaral é que tem razão! O que eles querem é ganhar algum!
Geralmente acredito na minha irmã. Gostava que tivesse razão hoje. Por causa dos filhos de Gonçalo Amaral. E dos pais deles.
Mas há sempre duas justiças, como temos visto cá. E quem ganha sempre é a justiça dos fortes - não em carácter mas em poder.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

“O Barão” de Branquinho da Fonseca

Quando li pela primeira vez “O Barão” de Branquinho da Fonseca – 1976 é a data da edição de bolso que então comprei e li - deixei-me fascinar pela atmosfera de estranha magia que me parecia fugir a qualquer esquema literário nacional a que estava habituada, de histórias com sequência narrativa e lógica de efabulação que não condizia com o que de repente ali encontrava. Lera alguns contos fantásticos de Edgar Allan Poe, de atmosferas sombrias situadas em épocas medievais, de castelos meio em ruínas em bosques sombrios, e em que os sons, as personagens, os ventos uivantes, as almas errantes, causavam o “frisson” de medo e horror, de um fantástico talvez predecessor de alguns policiais de sir Conan Doyle e que Eça de Queiroz tentou, em parte, imitar em “O Mistério da Estrada de Sintra”.
Pela introdução, de resto, clara, objectiva, irónica, que nos apresenta o narrador e os seus gostos refractários a viajar – de expressão propositadamente repetitiva - embora sabendo apreciar o “caminho da bela aventura”, numa página cheia de humor satírico, no seu prosaísmo desenfastiado sobre as dificuldades um tanto grotescas da vida de mediania burguesa - e o obrigam a viajar por profissão, página que não resisto a transcrever, pelo que contém de filosofia de vida e de sátira às misérias da labuta diária - situando o escritor na corrente neo-realista – não imaginava a surpresa da intriga bem irreal que iria encontrar a seguir.
Eis a introdução:
«Não gosto de viajar. Mas sou inspector das escolas de instrução primária e tenho obrigação de correr constantemente todo o País. Ando no caminho da bela aventura, da sensação nova e feliz, como um cavaleiro andante. Na verdade lembro-me de alguns momentos agradáveis, de que tenho saudades, e espero encontrar outros que me deixem novas saudades. É uma instabilidade de eterna juventude, com perspectivas e horizontes sempre novos. Mas não gosto de viajar. Talvez só por ser uma obrigação e as obrigações não darem prazer. Entusiasmo-me com a beleza das paisagens, que valem como pessoas, e tive já uma grande curiosidade pelos tipos rácicos, pelos costumes, e pela diferença de mentalidade do povo de região para região. Num país tão pequeno, é estranhável tal diversidade. Porém não sou etnógrafo, nem folclorista, nem estudioso de nenhum desses aspectos e logo me desinteresso. Seja pelo que for, não gosto de viajar. Já pensei em pedir a demissão. Mas é difícil arranjar outro emprego equivalente a este nos vencimentos. Ganho dois mil escudos e tenho passe nos combóios, além das ajudas de custo. Como vivo sozinho, é suficiente para as minhas necessidades. Fazer algumas economias e, durante o mês de licença que o Ministério me dá todos os anos, poderia ir ao estrangeiro. Mas não vou. Não posso. Durante esse mês quero estar quieto, parado, preciso de estar o mais parado possível. Acordar todas essas trinta manhãs no meu quarto! Ver durante trinta dias seguidos a mesma rua! Ir ao mesmo café, encontrar as mesmas pessoas!... Se soubessem como é bom! Como dá uma calma interior e como as ideias adquirem continuidade e nitidez! Para pensar bem é preciso estar quieto. Talvez depois também cansasse, mas a natureza exige certa monotonia. As árvores não podem mexer-se. E os animais só por necessidade física, de alimento ou de clima, devem sair da sua região. Acerca disto tenho ideias claras e uma experiência definitiva. É até, talvez, a única coisa sobre que tenho ideias firmes e uma experiência suficiente. Mas não vou filosofar; vou contar a minha viagem à serra do Barroso.»
É esta personagem secundária, mas simultaneamente bem viva na sua performance junto do Barão que tão originalmente retrata, o narrador do conto de Branquinho da Fonseca, certamente que um pouco auto-retrato do próprio autor. Por conhecimento recente, soube que Branquinho da Fonseca é tio – e padrinho - de Henrique Salles da Fonseca, e filho do escritor Tomás da Fonseca, avô daquele.
Ao tentar, pois, uma breve análise do conto fantástico “ O Barão”, pretendo com isso prestar uma simples homenagem a Salles da Fonseca que, no seu Blog “A Bem da Nação”, revela uma certa semelhança de carácter com esse narrador – seu tio - na forma directa, chã e explícita com que defende os seus pontos de vista, caracterizados pela integridade e simultaneamente coragem e desassombro de quem, conscientemente, não enfileira na desordem moral dos novos tempos.
O Barão, eis a personagem central do conto, figura um tanto irreal, que o narrador vem a conhecer nos seus percursos de Inspector das escolas, numa aldeia inominada do Barroso, onde é recebido pela professora que o apresentará ao Barão. Todas as personagens – salvo duas – a criada do Barão, Idalina, e o mestre da Tuna, sr. Alçada - são, aliás, retratadas sem nome próprio, o que contribui para a atmosfera de irrealidade do conto: o Eu narrador, a professora, o Barão, os criados, os homens da banda musical que vão tocar ao seu palácio, Ela, a mulher amada, a “Única”, talvez a responsável pela decadência daquele “Dom Quixote” desmantelado, qual Dulcineia merecedora da rosa que no final, segundo afirmará, ele conseguiu depor na sua janela.
Assim, o Barão dará guarida por uma noite ao Inspector, no seu solar “covil do famigerado Barão e seus criados” e onde “Em nossa volta, em toda aquela casa que eu adivinhava enorme, com largos corredores sem fim, entre salas mortas, pesava cada vez mais um silêncio que eu nunca tinha sentido: inquietante e ressoante como se a casa estivesse metida dentro de uma cisterna.” O Barão exige, em todo o caso mais dias de estada ao seu hóspede, desejoso de confidências e no desprezo fidalgo pelos compromissos profissionais do Inspector, acolhe-o na grande sala do seu palácio, numa mesa onde caberiam dezenas de pessoas, ocupada pela garrafa de vinho que vai beberricando, não compartilhada pelo hóspede esfomeado, confidenciando, um pouco ingenuamente, as suas vivências e impudências, ele próprio reconhecendo as suas tendências entre o Bem e o Mal, entre os prazeres da bestialidade e os ideais de pureza, ora de atitude afável, ora brutal, mas estranhamente dominado pela criada Idalina, que ele despreza mas que o subjuga, desprezo, de resto, por ela aparentemente compartilhado.
O jantar vem para o hóspede – “um galo assado entre batatas loiras” e como segundo prato, “uma travessa de carne de porco e ovos mexidos”, “E não ouvi mais nada do que o Barão dizia. Até que, já reconfortado, voltei a ouvi-lo com prazer.” O anfitrião sempre bebendo, sem comer - ceará mais tarde as suas alheiras assadas - após o passeio pelo casarão, mais confidências e vinhos que o Inspector desta vez compartilha, o ritual da Tuna “jogralesca”dos homens da aldeia por ele mandados chamar, tocando o Verde Gaio, em espectáculo medievalesco de feeria, comendo do pão e bebendo do vinho, passados em volta, para voltar a tocar o Tum-Tum, em que dançam os três e Idalina canta, em cena orgíaca de bebedeira sem tréguas, com o Barão sentindo-se purificado com a cascata de vinho branco do garrafão que despeja sobre a sua cabeça, já sem o espanto do convidado, “frangalho bêbedo sentado no chão a rir, a rir, a rir dele e de mim e de tudo; eu ria sem saber já de quê, caído ali para um canto como um boneco a que tivesse desandado a corda toda até ao fim. Mas vi-o crescer como um gigante e reparei que ele tinha na cara e no fato uns estranhos reflexos metálicos. Já não era o Barão, era o seu fantasma, um autómato de ferro e lata que me fazia calafrios de terror.”
O passeio caricato dos dois, ambos bêbedos, pela quinta, o Barão que abandona o amigo, este que regressa a casa cantando a “Marselhesa”, encontrado por Idalina e declarando-lhe o seu amor, ela fechando-o no quarto, donde é retirado quase asfixiado pelo fumo do incêndio causado pelo seu cigarro sobre a cama, aberta a porta com os pontapés do Barão que lhe salva a vida.
“- Deves-me a vida!
E o champanhe continuava a transbordar nas taças e a erguer-se em brindes a tudo o que nos lembrou, a todos os nossos desejos, sonhos, ambições, a todas as nossas saudades, desilusões, a todos os nossos amigos, a tudo quanto nos ocorreu naquele momento de sinceridade”.
As confidências são mútuas agora. E voltam a sair, às voltas pela casa e no jardim, o Barão procurando flores para as ofertar a Ela. Novo diálogo sobre a vida “sem amor e sem ódio” que não é “viver”, segundo o Barão. Estranhos ruídos que enfurecem o Barão, uma espécie de zanga entre ambos, a ternura do dono pelos cães Tejo e Mondego – estes, sim, com nome próprio, talvez por serem as figuras mais reais - os quais o dono prende, pela trela, a um arame que foi procurar, convidando o hóspede a guardá-los, enquanto desaparece na escuridão, com a sua rosa. O Inspector fica abespinhado com o Barão que o abandonara, tira o seu revólver, dá por si na berma da estrada, a troco de dinheiro consegue convencer o dono de um jumento a levá-lo ao solar do Barão, quando chega o Barão está deitado. Levara um tiro num ombro, tinha uma fractura do crânio. Mas conseguiu ciciar ao amigo que conseguira deixar a flor na janela da Amada.
Ao convite feito posteriormente pelo Barão em carta ao seu novo amigo para voltarem a encontrar-se no seu solar estranho, este responde, em termos evocativos, dirigidos ao Barão “in mente” que esse dia de loucura voltará a surgir nas suas vidas, para uma nova rosa a depor na “janela da tua Bela Adormecida”!...”
Um conto oscilando entre o real e o fantástico, numa atmosfera mediévica, de castelo sombrio, de acções e personagens disformes, mas dissertando sobre sentimentos e vivências, agindo sob o efeito da bebedeira, deixando, como imagem de graciosidade a marca do amor e da beleza na rosa que uma escalada difícil conseguiu apor na beira da janela, em metáfora simbólica desta história de “amor contrariado”, e em que o tiro ao Barão contribui para a irrealidade e a poeticidade do mistério policial não resolvido.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

As listas de espera

Foi sobre o novo estatuto matrimonial que iniciámos a conversa de hoje, sobre aquilo a que a minha amiga apelidou de “casamento dos famosos, casamento das famosas”. E justificou, que não é pessoa que deixe de explicar, sempre que surja a oportunidade de ser precisa explicação:
- O casamento é uma instituição já banalizada, banalizada ao nível mediático. Estávamos reduzidos aos casamentos dos príncipes e das princesas para criar charme nas nossas vidas. Mas agora vão aparecer esses, não de charme, mas de espectáculo gostoso.
- Mas ainda temos os casamentos do Santo António...
- Não, os do Santo António vão ser os dos homossexuais. Os outros vão para a lista de espera. É caso certo. O Sócrates está tão contente, tão contente, que vai convencer o amigo dele, o presidente da Câmara, António Costa, a combinar com o Santo António que agora o casamento é só para eles e só para elas. Os outros, mete-os na lista de espera. A gente está a brincar, mas com certeza é isso que vai acontecer.
- O meu marido, que vê as mesas redondas, ouviu numa delas, creio que com o João Pereira Coutinho, o Francisco José Viegas e mais não sei quem, que consideravam despropositados os argumentos dos intelectuais de esquerda, defendendo o casamento dos da mesma espécie, quando dantes até condenavam a instituição do matrimónio, para os de espécies diferentes. Não se entende tanta insistência. Só para criar bagunça.
- Eu digo que uma das razões fortes desses, a de poderem deixar as heranças aos parceiros, não é razão de peso. Podem sempre fazer testamento em vida. O que eles querem de facto é exibir-se. Porque lá o juntarem-se, ninguém tem nada com isso.
Pareceram-me de uma extrema nobreza as palavras de condescendência da minha amiga, em que eu alinho, não só atida ao provérbio “cada qual com seu igual”, mas dentro de uma linha de pensamento de magnanimidade humanista, como a do nosso PM que também a tem, segundo ele próprio expressou.
Mas a minha amiga trazia outra na manga – não usamos cartola ainda – que a muito custo mostrou, depois de muito instada pela minha curiosidade, que com as suas evasivas despertou.
-Mas não ponha isso aí, disse, mostrando-me, finalmente, a folha que recortara do “Correio da Manhã”, onde se dizia que a Clara Pinto Correia, ilustre bióloga, dá a cara pelos seus orgasmos, mostrando as fotos deles – dos orgasmos e da cara da Clara - tiradas pelo seu companheiro dos orgasmos, Pedro Palma.
Afinal, a notícia também vem no “Diário de Notícias”, não há que esconder o facto, que a bióloga Clara até há-de gostar que a citemos, e à foto mais querida deles, que vem no Notícias e foi excluída abusivamente do “Correio da Manhã” - aquela com a Clara de olhos abertos, fechados os olhos nas outras mais fotos.
Parece que estão expostas no Centro Cultural de Cascais e a minha amiga só cismava sobre a hipótese dos alunos da Clara irem lá ver, mas eu respondi que a televisão também mostra cenas dessas, já ninguém se rala e é sempre bom haver uma pessoa ilustre a exemplificar estas coisas da evolução dos costumes.
Eu, aliás, até em tempos já tinha feito um texto onde dava a entender estas mudanças sociais prováveis, tendo tido mesmo, nessa altura, que arrostar com a crítica entristecida do meu Pai, que achava que não devia meter o texto no meu livro “Cravos Roxos”. Mas meti. E vou transcrevê-lo, para mostrar como os meus dons de “Cassandra”, tão inutilmente divinatórios como os dela, já previam os orgasmos fotografados da Clara Pinto Correia:

“O Êxito das Palavras”
( in “Mais Pedras de Sal”, 2ª Parte do III Livro “Lusos 74”)

A notícia coligi-a n’ “O DIA” de 5 de Fevereiro. Trata-se dos abusos e vigarices nos tratamentos sexuais, em oportuno artigo do Reader’s Digest de Fevereiro, segundo a informação em destaque no jornal. Mais se informa que os problemas comuns, tais como ejaculação prematura, impotência ou incapacidade de atingir o orgasmo, resolvidos normalmente se tratados por terapeutas sexuais qualificados, se o forem por charlatães e vigaristas, mais tramados ficarão os casais que a eles recorram, traumatizados pelas ditas deficiências.
Senti um prazer muito íntimo ao ler num diário, também lido pelas crianças, uma informação tão necessária para as pessoas com distúrbios sexuais inferiorizantes. E avalio quanto ela foi recebida com idêntico gozo íntimo, dada a confrontação vantajosa, por quem ejacule a tempo, com a potência devida e num orgasmo pleno de realização e de motivações para futuros êxitos. As próprias crianças, de almas vibráteis, a quem a Rádio e a Televisão oferecem programas infantis contendo encantadoras histórias de fadas e ingénuos desenhos animados, devem ter saboreado a notícia com sagaz curiosidade.
Tive ocasião de folhear numa livraria o Reader’s de Fevereiro – as deficiências económicas procedentes da descolonização não me permitem infelizmente adquirir as obras de mais nomeada – e pude observar que o reclame do artigo sexual também aparece na capa da revista.
Deduzi assim da importância universal do assunto e compreendi imediatamente o ponto de vista desenvolto de quem deu a notícia n’ “O DIA”. De facto, uma das gratas conquistas do nosso 25 de Abril, além da fraternidade, liberdade e igualdade – embora com os poderes populares em excedente, segundo gentil expressão do nosso popular Zeca Afonso – foi sem dúvida a simplicidade e a naturalidade sem falsos tabus nem preconceitos, implantados em todos os sectores, incluindo o da linguagem oral e gestual, e também a escrita – do caso em foco.
Aliás, já há muito me apercebera de quão válida fora, nesse sentido, a tarefa dos escritores “engagés” para imporem uma linguagem tão natural quanto possível, e a sua eficaz tentativa de vencerem esses tabus retrógrados, traduzindo literariamente os seus actos e sensações sexuais. Mas nenhum como o Urbano Tavares Rodrigues para revelar minudências de voluptuosidades que farão desmaiar de prazer as pessoas dadas aos desmaios e manifestando dessa forma requintes de sensibilidade de um Amadis.
Logo após a implantação do regime democrático, pude constatar que muitas das obras antes censuradas ditatorialmente continham termos desafectos aos pudores fascistas.
Foi o caso de um poema de Eugénio Lisboa – “Camoniana Fernandina” – após o “25 de Abril” extraído da gaveta pelo consagrado crítico literário moçambicano para o jornal “Notícias” de Lourenço Marques, como demonstração da violência literária tiranizante anterior a essa data.
Do poema mono-estrófico que, pelo título, deveria parafrasear Camões e Pessoa, apenas fixei um termo chocante para a minha sensibilidade de fascista que era então – mas já não sou, confesso sem falsa modéstia. Era o termo “fornicar” , o qual me proporcionou amplas perspectivas sobre o futuro das letras e da formação moral da sociedade portuguesa, de resto bem demonstrada já agora através de revistas pornográficas e dos filmes eróticos abundantes e dos jornais ideológicos também abuindantes, como “A MERDA”, consentidos pelo nosso governo, e apregoados estes últimos em frases ladinas por crianças vendedoras com um precoce sentido autocrítico bastante pessimista, inexistente no crítico literário supracitado. De facto, a uma delas captei, num comboio do Cais do Sodré, entre outras a frase: “Isto é uma grande MERDA!”, ao que uma passageira, com notável senso económico, necessário nestes tempos de carência, se apressou a interrogar com afável conivência, ante o sorriso dos demais passageiros: “Então e quanto custa essa MERDA?”
O único motivo de estranheza para mim consiste no facto de no ensino secundário – e até mesmo já no primário – ainda se não terem implantado eficientes cursos de educação sexual, com demonstrações “in loco” entre os mestres ou os alunos, para preparar melhor estes últimos sobre as funções naturais da vida vegetativa, afinal idêntica às dos animais sem tabus e dos quais a sociedade humana tende a aproximar-se numa cada vez mais ampla simpatia humanitarizante.
Por todas estas razões, poderemos calcular, como num futuro próximo os cumprimentos entre os amigos se apresentem aproximadamente neste teor:
- Então, pá, fornicaste bem esta noite?
Ou que o filho cuidadoso pela reputação extradomiciliária do pai em apuros, indague carinhosamente:
- Então, pai, ejaculaste a tempo? Não sentiste complexos de impotência? Quanto a mim, graças a Deus, pai, não tenho problemas. É cada orgasmo que até vejo estrelas!”





domingo, 10 de janeiro de 2010

Os calmantes da nossa impotência educativa

Às vezes, quando recordo com a minha amiga os tempos da nossa escola primária e da nossa escola secundária, em contestação contra os que a acusam de demasiada rigidez, é para lembrarmos o encantamento dessa fase, de inconsciência da vida que nos esperava. Lembramos os professores, bons e menos bons, os colegas, as brincadeiras no recreio, que, logo que acabavam os cinquenta minutos de aula, não podíamos perder, ocupando as respectivas posições para os jogos de basebol, os mortos, com o ringue, o caçador, os saltos à corda e o berlinde... Oh! O berlinde!
Em África, as aulas começavam às 7h 30, às vezes às 6h30 da manhã, para a ginástica com a Drª Deolinda Martins, acabavam às 12h20 e, duas vezes por semana, salvo erro, havia mais duas aulas à tarde. Lanchávamos bem, líamos, brincávamos, estudávamos, éramos disciplinados segundo as regras de então. As notas finais mostravam o nosso cumprimento, era necessário ter positiva em todas as disciplinas para se passar de ano.
Mais tarde, já professora no mesmo espaço africano, as modernas pedagogias aliadas às modernas técnicas de ensino, apontaram o rigor da disciplina antiga, defenderam mais autonomia para o aluno, foram retirando gradativamente a autoridade disciplinar ao professor, permitiram que os alunos acedessem ao ano seguinte reprovados numa disciplina, posteriormente em duas. O papel reservado à memória, pela interiorização de conhecimentos foi gradualmente abandonado, recorreu-se à compreensão e dedução pela imagem, por vezes os livros lembravam as bandas desenhadas, com cada vez menor recurso à palavra escrita, na escola primária o método global da imagem para a letra e o fonema substituiu o tradicional e mais racional método da leitura alfabética, silábica e frásica. A aritmética ignorou as tabuadas, adoptou a teoria dos conjuntos. E nunca mais os alunos tiveram problemas para resolver, problemas que os livros escolares da 4ª classe tão profusamente continham, nem a álgebra nos anos seguintes, em que tantas gerações de alunos resolviam os inúmeros problemas do Palma Fernandes, despertou mais as capacidades de compreensão dos alunos, incapazes de resolver contas sem ser por computador.
O 25 de Abril, na vizinhança do liberalizador “Maio de 68” francês, trouxe a explosão, com a destruição das regras – de disciplina, sobretudo – geradora do caos. O caos nas famílias, o caos nas escolas. Os professores passaram por isso, mas nunca como hoje, em que os professores têm uma sobrecarga de aulas e acompanhamentos, nas mesmas turmas de cerca de trinta alunos, como eram dantes, em que estes se comportavam bem.
Mas a notícia que vem no Diário de Notícias deste domingo, 10/1, é a prova flagrante da insensatez brutal instalada no nosso mundo de falsa bondade para com a criança, em que pais e professores são condicionados por leis atropeladoras do seu direito a uma repressão sensata, leis hipocritamente escamoteadoras da realidade social exigente e repressiva que a espera na vida activa.
Ela refere, em letras garrafais, que “CRIANÇAS TOMAM CADA VEZ MAIS MEDICAMENTOS PARA SE ACALMAREM”. E conta casos. O de três irmãos hiperactivos, com défice de atenção na escola que tomam comprimidos de “Ritalina”, o que os domou, tornando-se mais atentos na escola e mais sociáveis.
35.845 as embalagens de metilfenidato vendidas em 2004, 140.424, as vendidas em 2009, diz o esquema gráfico da notícia. Com efeitos secundários de febre, agressividade, alteração de humor, hipertensão arterial, perda de apetite, perda de cabelo, de sono, taquicardia, dores de estômago, erupções cutâneas.
É este o novo universo infantil.
E para se domarem as crianças, que uma palmada a tempo teria ensinado no momento próprio a respeitar regras de educação, dão-se-lhes medicamentos para a nova designação de má criação: hiperactividade, que os torna desatentos, insubordinados, preguiçosos, desinteressados, esquivos.
A medicação para a docilidade, para o cada vez maior embrutecimento. Para vivermos em paz. Demos calmantes aos nossos filhos hiperactivos. Em vez de regras de educação. Mostremos ao mundo que somos pais amoráveis, incapazes da tapona, enquanto, às escondidas, ou mesmo às claras, os vamos drogando para os domesticar.

sábado, 9 de janeiro de 2010

A lei

Falámos da lei do casamento gay – a nossa primeira lei do ano do centenário da nossa República diacronicamente tripartida - considerámos como estamos cada vez mais evoluídos pois parece que fomos o sexto país europeu a adoptá-la, o oitavo a nível mundial, e isso nos fez lembrar outras datas do nosso vanguardismo descobridor, festejámos assim a nossa emancipação dos tabus ancestrais, colocando-nos entre os vanguardistas esclarecidos da lei gay.
A minha amiga conteve a sua euforia. Achou que a partir de agora já ninguém segurará os nossos filhos na exibição cada vez mais sem resguardo das suas tendências amorosas.
Eu estou mais habituada, pois recordo que a partir do 25 de Abril de 74, na minha escola em Lourenço Marques, de repente, sem tir-te nem guar-te, comecei a topar com os casais de amorosos aos beijos e carícias das suas ternuras desfraldadas democraticamente. Os conselhos directivos já não tinham mão na compostura, que a instituição do regime democrático atribuiu todos os poderes em liberdade ao povo, e assim, nos intervalos, nos passeios da cerca da escola, a cada passo nos defrontávamos com os alunos e alunas em manifestações indiscretas do seu amor juvenil, o que nessa altura ainda me causava espanto, por tacanhez, acho eu agora, que estou mais conformada.
Na verdade, nas escolas de cá também a moda pegou, meninos e meninas adolescentes achavam que o recreio era sítio ideal para anunciarem ao mundo que o mundo tinha que respeitá-los na sua exibição, sem reciprocidade no respeito, todavia, dada a sua indiferença em relação aos espectadores do seu palco improvisado.
Mas agora é que vai haver variedade nos casais que se desunharão a acariciar-se nos diversos espaços, entre os quais os escolares – casais de sexos diferentes ou do mesmo sexo, que a lei do respeito anunciado em relação aos casais unisexo é para se cumprir, deve mesmo fazer parte dos objectivos de avaliação discente e sobretudo docente, em expansão universal dos afectos amorosos, que os pudores antigos – há quem lhes chame hipocrisias sociais da burguesia – mandavam reservar a outros recintos.
Mas o Sr. PM, entre outros que também o expuseram, expôs sobre o respeito humano e até se apelidou de humanista, devido, certamente ao seu conhecimento das “litterae humaniores”, isto é dos clássicos, entre os quais o “Satyricon” de Petrónio, e foi por esse motivo que a lei passou na assembleia.
A minha amiga repontou:
- Dá mesmo a impressão de que isto serviu para queimar tempo. Mas assim somos mais modernos.
- E cultos,
acrescento eu, sensibilizada pela referência do nosso PM ao seu humanismo, que tanto o aproxima, até na distinção do vestir, do “árbitro das elegâncias” Petrónio, escritor do tempo da decadência romana. Mas nisso de queimar tempo, o nosso PM vai continuar passeando-se: já foi a Paris - diferentemente do “Conquistador” dos “da Vinci” que foi ao Brasil, Praia e Bissau, Angola, Moçambique, Goa e Macau e até foi a Timor - tratou da lei gay, vai agora pelas terras portuguesas do continente, e não sei se do território insular, triunfante, retrai-se na questão do Orçamento, melindrosa, dizem os rancorosos. E vai ganhando dóceis votos de uma triunfal carreira abençoada, porque sancionadora de novas bênçãos.