sábado, 16 de outubro de 2010

Enchamos o poço

Recebi um e-mail contendo exaltado comentário sobre “A Lei 2105 de 1960”, uma Lei (“publicada no “Diário do Governo” de 6 de Junho, com a assinatura de Américo Tomaz, Presidente da República, e de A. Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, e segundo a qual “quem quer que ocupasse lugares de responsabilidade pública não podia ganhar mais do que um Ministro”). Posteriormente, “Em 13 de Dezembro de 1974, catorze anos depois da lei “fascista”, o Governo de Vasco Gonçalves, pelo Decreto-Lei 446/74 limitou os vencimentos dos gestores públicos e semi-públicos ao salário máximo de 1,5 vezes o vencimento de um Secretário de Estado.”
As suas informações colheu-as o subscritor - “Dias Tramados” - na obra “Salazar e os Milionários” de Pedro Jorge de Castro, publicada pela Quetzal em 2009:
“Essa lei destinou-se a disciplinar e moralizar as remunerações recebidas pelos gestores do Estado, fosse em que tipo de estabelecimentos fosse. Eram abrangidos os organismos estatais, as empresas concessionárias de serviços públicos onde o Estado tivesse participação accionista, ou ainda aquelas que usufruíssem de financiamentos públicos ou "que explorassem actividades em regime de exclusivo". Não escapava nada onde houvesse investimento do dinheiro dos contribuintes.
Naturalmente que o subscritor do texto tece considerandos expressivos de ironia sobre a diferença relativa aos tempos hodiernos, de que transcrevo os parágrafos seguintes:
“Ao lermos hoje esta legislação, parece que nos mudámos, não de país mas de planeta, pois tudo isto se passou no tempo do "fascismo" (Lei 2105/60) e do "comunismo" (Dec.-Lei 446/74). Agora, está tudo muito melhor, sobretudo para esses “reis da fartazana” que são os gestores estatais dos nossos dias: é que, mudando-se os tempos mudaram-se as vontades e, onde o sector do Estado pesava 17% do PIB, no auge da guerra colonial, com todas as suas brutais despesas, pesa agora 50%. E, como todos sabemos, é preciso gente muito competente e soberanamente bem paga para gerir os nossos dinheirinhos.
Tão bem paga é essa gente que o homem que preside aos destinos da TAP, Fernando Pinto, que é o campeão dos salários de empresas públicas em Portugal (se fosse no Brasil, de onde veio, o problema não era nosso) ganha a monstruosidade de 420.000 euros por mês, um "pouco" mais que Henrique Granadeiro, o presidente da PT, o qual aufere a módica quantia de 365.000 mensais.
Aliás, estes dois são apenas o topo de uma imensa corte de gente que come e dorme à sombra do orçamento e do sacrifício dos contribuintes, como se pode ver pela lista divulgada recentemente por um jornal semanário, onde vêm nomes sonantes da nossa praça, dignos representantes do despautério e da pouca-vergonha a que chegou a vida pública portuguesa.
Assim - e seguindo sempre a linha do que foi publicado - conhecem-se 14 gestores públicos que ganham mais de 100.000 euros por mês, dos quais 10 vencem mais de 200.000. O ex-governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, o mesmo que estima à centésima o valor do défice português, embora nunca tenha acertado no seu valor real, ganhava 250.000 euros/mês, antes de ir para o exílio dourado de Vice-Presidente do Banco Central Europeu.
Entretanto, para poupar uns 400 milhões nas deficitárias contas do Estado, o governo não hesita em cortar benefícios fiscais a pessoas que ganham por mês um centésimo, ou mesmo 200 e 300 vezes menos que os homens (porque, curiosamente, são todos homens...) da lista dourada que o "Sol" deu à luz há pouco tempo.
Acabemos de vez com este desbragamento, este verdadeiro insulto à dignidade de quem trabalha para conseguir atingir a meta de pagar as contas no fim do mês.”

Vivemos uma época sombria, numa chiadeira de roldana e nora enferrujadas, tentando extrair do poço a água que nos dessedentasse, mas é tempo de seca, o poço não dá mais água. Temos que devolver a que recebemos do exterior, que matou, de facto, a sede a muita gente, e continua, mas serviu também para a construção de estruturas imprescindíveis, num país de miséria, desde sempre educado na miséria do subdesenvolvimento social, no desinteresse por uma formação de igualdade social. Assim tivesse servido também, essa “água” exterior, para desenvolver indústrias e não nos fosse imposta a morte dos campos e das pescas, que a tal água que veio de fora exigiu, como condição da sua aparente generosidade.
A nossa miséria social sempre assentou na exploração, no elitismo, na aldrabice, na esperteza de uns, na apatia de um povo que nunca se preparou intelectualmente, por falta de condições económicas, sempre, mas também por desinteresse em se elevar conscientemente, habituado a vergar, a obedecer – “Se tu soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida” – escreveu Salazar.
E todos criticam Salazar, mas o facto é que a sociedade continua a ser feita por idênticas normas de mando e obediência, só que o mando agora é mais despudorado, por lhe faltar o equilíbrio de uma Justiça que foi riscada do nosso mundo, que cada vez permite mais traficâncias, trafulhices, trapaças e desvergonhas. E lata, somos o povo da lata.
E atrevem-se a vir, com a sua voz soturna, agourar desgraças para a qual eles próprios contribuíram, como fez ainda hoje o governador – ex – do Banco de Portugal, Victor Constâncio, que tem o arrojo de descer do seu mundo - de água – exterior, para onde foi embarcado, e aparecer na televisão denunciando, agourando, tristemente, soturnamente. Interiormente, rebolando-se de gozo, Tartufo com pinta.
É preciso encher o poço, o nosso Governo manda, para resolvermos a crise. Obedeçamos, como devemos gostar, foi Salazar que disse. Obedeçamos, como Sócrates impõe. Não melifluamente, como esse outro Tartufo banqueiro, mas risonhamente, como o tal aprendiz de feiticeiro, que Disney imortalizou.
Enchamos o poço, como de costume. É preciso salvar a nação.

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