sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Chá


O estômago e os pés disputavam-se sobre as respectivas forças. A cada passo, os pés informavam serem de tal modo superiores àquele na questão do vigor, que eram eles quem carregava o próprio estômago. Este deu-lhes a seguinte resposta: “- Enfim, Senhores pés, se eu aí não estiver para vos alimentar, vós não podereis transportar seja o que for!” É o que acontece com os exércitos: sem a inteligência dos seus chefes, a superioridade do número não vale nada.”

Eis a fábula do Esopo – “O estômago e os pés” que traduzi para a minha amiga, como intróito ao comentário sobre uma crítica recebida num texto que li na Internet a respeito da falta de compostura na actual designação dos chefes, por bloguistas ou outros comentaristas, embora o autor do texto considerasse que antigamente, na primeira República ainda fora pior o desbragamento da linguagem, do que nos tempos hodiernos.
Nós ambas acusámos o toque, sobretudo a minha amiga que foi quem usou o hipocorístico designativo de “Zezinho” aplicado ao nosso Presidente, coisa que eu também censurei na altura, confesso, já tenho dito que não fui habituada a essas desconsiderações, tal como o Damazinho Salcede, que a ninguém as admitia, e até costumo ser punhos de renda nos meus designativos, para aplicar uma imagem dos preciosismos clássicos, mas deixei-me convencer da justeza da expressão, depois de ponderadas as razões e por isso a postei no texto do meu blogue.
Realmente, ponderámos que chefes não temos de grande valia, mas creio que o erro está na nossa massa demográfica, em todos nós, portanto, que somos de estilo rasteiro, provinciano, como o nosso Presidente, que teve origem modesta, segundo diz, embora tenha cavado a pulso o seu percurso de excelência, gabando-se, apesar da modéstia que afirma ter, de ter contribuído para que a nação – os pés da fábula – não tenha soçobrado ainda, como teria acontecido, não fora ele o Presidente – o estômago da fábula – dos pés que somos.
Admirámos o optimismo do Presidente, no seu discurso de candidatura, revimos os gerais motivos actuais de queixa sobre a inacção do Presidente, e não vimos nenhum motivo para ele embandeirar em arco sobre o que fez para evitar o estado das nossas misérias, achando que, pelo contrário, nada fez a não ser referir bastas vezes a sua preocupação, deixando, pelo contrário, destruir a ortografia portuguesa, a Escola portuguesa, os diferentes ramos da Economia portuguesa, participando no estado da corrupção portuguesa, com os vários vencimentos que se diz que aufere, não dando um passo para limpar a pequena casa do seu país.
Creio que estamos mais que justificadas, a democracia tornou-nos a palavra mais solta, é certo, embora eu me lembre de que na ditadura também ousei ser ousada em minha escrita objectiva. Não condenávamos os chefes, pelo menos frontalmente – houve quem chamasse a um deles “Dinossauro Excelentíssimo”, mas só depois do chefe fora de cena - mas os chefes também tinham diverso carisma. E amavam a Pátria, e tinham outros ideais, que agora achamos prosaicos, porque a prosa dos chefes idealistas de agora se cifra mais nas cifras pessoais e dos amigos funcionais.
Nem vale a pena prosseguir, nestes apertos em que vivemos, e em que vivem, sobretudo, os que foram despedidos dos seus empregos ou os que receiam vir a perdê-los, todos os que se sentem coarctados na acção que julgavam desempenhar como cidadãos do seu país.
Etc., etc., não vale a pena prosseguir, vou antes traduzir a fábula de Esopo, para me divertir um pouco.
E à minha amiga a vou dedicar, para se divertir a seguir:

«O estômago e os pés»
«O estômago com os pés contendia
Porque estes se vangloriavam
Do seu poder sobre aquele
Já que eles é que o transportavam
Com a necessária galhardia,
Jamais reclamando
Nem se enxofrando
Embora sentissem na pele
O esforço tão forte
Desse transporte,
Tantas vezes sem norte.
É claro que o estômago não se deixou vencer
E respondeu, a esclarecer:
“- Nada vos fico a dever
Porque não fora eu a dar-vos de comer
E aí ficaríeis parados no tempo,
Sem vos poderdes mexer.”

A moral da fábula aplica-a Esopo
Às tropas do seu tempo:
Havia nelas chefes a mandar.
Sem esses, lá se iam as vitórias ao ar
Pois, sem orientação,
Os múltiplos soldados dispersariam…
Mas também, é certo, não seriam
A carne para canhão
Que habitualmente são.

O que eu acho curioso
Sem que isso me dê gozo,
É a analogia dos tempos de outrora
Com os de agora
No que toca à questão dos chefes
Que Esopo, na sua alegoria,
Atribui ao estômago
E não à cabeça,
Que comandar deveria.
O estômago a mandar,
Eis uma observação
De grande universalidade,
Pois, vinda da ancestralidade,
Chega impune à actualidade.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Augúrios

Não sei por que razão
Se foi Esopo inspirar,
Como exemplificação
De uma figura detestada,
Embora só pela deusa
Da grega sabedoria,
Na gralha de bico aberto,
A coaxar.
Afinal, é esse o seu falar
Embora sem grande acerto,
E com pouca harmonia.
Mas gostos são relativos
Não podemos generalizar
Nos motivos,
Valha-me a Virgem Maria.
Tanto mais,
Que gralhas há muitas,
Tal como os chapéus,
Ó céus.
Leiamos então,
Com atenção
A fábula de Esopo
Na tradução:

«A gralha e o cão
Uma gralha que pretendia
A Atena, sacrificar,
Para esse banquete resolveu,
Com a necessária cortesia,
Um cão convidar
Um dia.
“- Para que te metes em tanta despesa
Com esses sacrifícios, tão inúteis
Como fúteis?”
- O cão lhe perguntou, com esperteza,
Se não até com tristeza.
E continuou:
“Com efeito, a deusa tem por ti
Um ódio tão feroz
Que, como um algoz,
Aos teus áugures exclui
O crédito desejado.
“- Ora essa!”
A gralha lhe respondeu
Com enfado:
“Por isso mesmo eu lhe sacrifico”,
Sei que ela me detesta
E espero apaziguá-la
Com a minha festa
A favor dela.”
De igual forma, muita gente
Pouco influente
Não hesita, por receios ancestrais,
Em cobrir de benefícios
Os seus inimigos figadais.»

Penso que a gralha pertencia
À lusofonia,
Mas não tenho a certeza.
Porque tal natureza
De cumular de benefícios
Os superiores,
Amigos ou inimigos,
Mesmo com sacrifícios,
Para obter deles favores,
É coisa antiga,
Própria da literatura
Que a imitou da Mãe Natura.
Não vou , pois, fazer fraca figura.
Não vou explorá-la.
Vou mesmo ignorá-la,
Essa coisa de servir
De sacrificar
De prendas trocar…
Não vá uma Atena segura
O crédito dos meus áugures banir.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Veritas, sine vino

A minha amiga detestou que eu lhe tivesse ontem deturpado o pensamento, quando pus na sua boca o “coitado, ninguém se lembra que está a concorrer”, como referente ao actual Presidente. Tratava-se, antes, do presidente da AMI, como ela bem frisara, disse, não se tratava do nosso presidente presente - (e futuro, já que todos lhe auguram a vitória, mesmo inglória). Foi por isso que eu atribuí a este a referência da minha amiga, do que peço desculpa e reponho a verdade, que a verdade é para se dizer, e o erro para se emendar, tanto mais que ela achou, com ironia, que uma tal interpretação não abonava os meus créditos intelectuais, o que me esmoreceu.
Quem não tem visibilidade é, pois, na opinião da minha amiga, Fernando Nobre, por muito bons sentimentos que aparente, e não Cavaco, que ela acha que tem – visibilidade – (a esposa também a revelando, na indiscrição dos seus jeitos mimosos de gentil familiaridade), apesar do termo Zezinho que lhe aplicou e que eu logo corroborei, porque sempre me apeteceu enterrar a cabeça na areia, quando, entrevistado, o nosso Cavaco se não descose com notícias, nem se compromete nunca, achando que não lhe compete adiantar-se em considerações ou informações, vê-se que tem um mundo de questões a que não acha conclusões, mas o papel dele não é o de contribuir para as nossas trepidações, preferindo seguir seguro o seu roteiro de ambições, nulo de complicações, referindo apenas as suas preocupações para ganhar as boas intenções das populações.
A minha mãe aproveitou, entretanto, o sol deste dia soalheiro, para cantarolar as velhas cantigas de tempos imemoriais, e, ao transcrevê-las, dedico-as à minha amiga como forma de ultrapassar o contencioso interpretativo:
Já lá vai o sol abaixo
Metido num pucarinho
Já lá vai o brilho todo
Das moças de Cambarinho.
- Mas também pode ser de Vilarinho - explicou a minha mãe, quer por uma questão de harmonia poética, quer por conhecimento das mazelas sociais daquelas terras da sua infância.
Já lá vai o sol abaixo
Metido numa panela
Já lá vai o brilho todo
Das moças de Lourizela.
- Mas também pode ser das de Paradela, insistiu, feliz.

Tout va bien qui finit bien”.

São agora 8H 30 nocturnas, Cavaco Silva lança a sua candidatura às Presidenciais. Ouvi há pouco a seguinte frase, bem inserida no seu discurso elaborado da maneira correcta e virtuosa de sempre: “Continuarei a falar a verdade aos Portugueses”.
Já lá vem o sol acima”… a dar-nos a visibilidade de sempre: dos melhores nas causas piores. Podemos descansar.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Tem que ser Zezinho?

- Não há um homem enérgico para Presidente. Tem que ser Zezinho? Mas coitado, ninguém se lembra de que ele está a concorrer…
- Ai, isso é que lembra! Lembrou-o o Marcelo, na sua cusquice de privilegiado ao acesso dos segredos presidenciais. Uma falta de gosto própria da infância dos seres. E dos povos como o nosso, que não sairemos nunca dela, com perdão da cacofonia.
A minha amiga não avançou nesse escândalo que já discutíramos antes, com a cara rubicunda de vergonha – embora, é certo, apenas metaforicamente, que o tempo do rubor já lá vai, não por sermos menos virtuosas, mas por defeito do sangue animal, que se adultera com a idade, sobretudo o humano. Desta vez ela estava mais inclinada para as próximas eleições, e não via com optimismo nenhuma das candidaturas presidenciais:
- Eles não querem outra coisa - acho que se referia ao actual presidente – vê-se que a mulher está mesmo contente. Muito carinhosa em público. O Alegre, acho que é um triste, os outros têm as suas falanges próprias, condenadas à derrota. Ao menos os brasileiros têm gente que fala, impõe-se.
- Podem falar, de acordo com a vastidão das suas áreas territoriais, económicas, populacionais, têm por onde escolher. Embora também se queixem de idênticas governações de escândalo, como aqui.

A propósito, citei um e-mail que recebi, sobre o que diferencia os países pobres dos países ricos: “não são as riquezas, os climas, os solos… São os princípios.” O nosso país não pode gerar bons presidentes, porque sendo um povo e um país com idênticas capacidades dos mais, não seguimos os princípios fundamentais que fazem as boas nações.
Transcrevo os princípios, com os meus agradecimentos ao Edu, que mos enviou:
“A diferença entre os países pobres e os ricos está na atitude das pessoas, moldada no decorrer dos anos, pela educação e cultura, atitude que assenta nos seguintes princípios básicos:
1º: A Ética.
2º - A Integridade.
3º - A Responsabilidade.
4º- O Respeito pelas Leis.
5º - O Respeito pelos Direitos dos demais Cidadãos.
6º - O Amor pelo Trabalho.
7º - O Esforço para Economizar e Investir.
8º - O Desejo de Superar.
9º - A Pontualidade
.
São nove, não dez, os mandamentos, e não poderão reduzir-se aos dois da lei divina, cada um ocupando o seu espaço próprio na formação educativa de cada ser humano.
Não somos povo que siga nenhum desses princípios, preferimos o deixa andar implícito nas mazelas do nosso fado, ou a esperteza saloia profusamente explícita nas mazelas da nossa imoralidade, fomos habituados a confundir servilismo, com respeito – da parte dos da gleba - respeito, com autoritarismo - da parte dos do mando. Daí que educação real nunca existiu, ao nível da massa populacional, com excepções honrosas, é claro, e não existirá nunca, por falta de lastro.
Por isso, os do mando têm que ser ou Zezinhos ou saloios espertalhões.
À nous, de les suivre
Mas poderemos, sempre, optar pelos preceitos.

sábado, 23 de outubro de 2010

Vida mundana

É Saint-Preux, o enamorado de Julie – la Nouvelle Héloise, do título do romance epistolar de Rousseau – que, ausente da amada por motivo da oposição do pai desta a tais amores, socialmente reprováveis dada a condição inferior daquele, entre as várias cartas que com ela troca, descreve, de Paris, a hipocrisia dos costumes mundanos, além dos truques de propaganda ideológica, a que Rousseau teria assistido, já nos alvores da Revolução Francesa.
Traduzo o excerto (carta XIV da II parte), por me parecer de uma actualidade sem falhas, exceptuados os adereços ou as vestimentas relativamente aos dos salões de agora:

“Mas no fundo, que pensas tu que se aprende com estas conversas tão encantadoras? a julgar saudavelmente as coisas do mundo? a bem usar da sociedade? a ao menos conhecer as pessoas com quem vivemos? Nada disso, minha Júlia. Aí se aprende a advogar com arte a causa da mentira, a abalar, à força da filosofia, todos os princípios da virtude, a colorir de sofismas subtis as paixões e os preconceitos, a dar ao erro um certo estilo em voga, segundo as máximas do dia. Não é necessário conhecer o carácter das pessoas, mas tão só os seus interesses, para adivinhar pouco mais ou menos o que elas dirão de cada assunto. Quando um homem fala, é por assim dizer o seu fato, e não ele, que tem um sentimento, que ele mudará sem preocupação, tantas vezes como de estado. Dê-se-lhe alternadamente uma longa peruca, um fato de ordenança e uma cruz peitoral, ouvi-lo-eis sucessivamente pregar com igual zelo as leis, o despotismo e a inquisição. Há uma razão comum para a toga, outra para a finança, outra para a espada. Cada uma delas prova muito bem que as outras são más, consequência fácil de tirar para as três. Assim, ninguém diz nunca o que pensa, mas o que lhe convém fazer pensar a outro alguém, e o zelo aparente da verdade não é nas gentes mais do que a máscara do interesse.
Julgareis que as pessoas isoladas, que vivem na independência têm, pelo menos, um espírito próprio; nada disso; são outras máquinas que não pensam, e que se faz pensar aos bochechos. Basta informarmo-nos das suas sociedades, das suas parcerias, dos seus amigos, das mulheres que eles vêem, dos autores que conhecem; daí se pode inferir antecipadamente o seu pensamento futuro sobre um livro prestes a aparecer e que eles não leram; sobre uma peça de teatro prestes a ser representada e que eles não viram; sobre um ou outro autor que não conhecem, sobre tal ou tal sistema de que não fazem a mais pequena ideia; e como o relógio de sala só tem corda para vinte e quatro horas, todas estas pessoas vão procurar nas suas sociedades o que pensarão no dia seguinte.
Há, pois, um pequeno número de homens e de mulheres que pensam por todos os outros, e para os quais todos os outros falam e agem, e como cada um pensa no seu interesse próprio, ninguém no bem comum, e os interesses particulares são sempre opostos entre si, há um choque perpétuo de brigas e de cabalas, um fluxo e um refluxo de preconceitos, de opiniões contrárias, onde os mais acalorados, animados pelos outros, quase nunca sabem do que se trata. Cada parceria tem as suas regras, os seus julgamentos, os seus princípios, que não são admitidos nas outras. O homem honrado duma casa é um patife na casa vizinha; o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude têm apenas uma existência local e circunscrita. Quem quer que goste de se mostrar e frequenta várias sociedades deve ser mais flexível do que Alcibíades, mudar de princípios como de sociedades, modificar a cada passo o seu espírito, e medir as suas máximas à toesa; é preciso que em cada visita se liberte, ao entrar, da sua alma, no caso de ter alguma; que obtenha outra com as cores da casa, como um lacaio toma uma libré; que a deponha ao sair, se quiser, até nova troca.”

Uma sátira de um espírito brilhante de séculos atrás, que vale a pena reler, embora a ninguém incomode nem ninguém nela se reconheça.
De resto, creio que dificilmente nos reconheceríamos, por não frequentarmos os mesmos círculos da sociedade francesa, mesmo da dos séculos recuados, os nossos círculos mais limitados às questões práticas das carteiras, das jóias, trajes ou das amigas, no caso das conversações femininas, dos futebóis, dinheiros ou o que venha por acréscimo, no caso das conversações masculinas, umas e outras pouco votadas a discussões mais intelectuais, embora de cinismos idênticos, que são pontos comuns aos “o tempora o mores” de todos os tempos.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

“Eles sabem o que fazem”

Foi a respeito das margarinas. Ouvi Passos Coelho falar em margarinas, julguei que se tratasse de Margaridas, como produto de rentabilidade mais propícia a regateio, mas o meu marido confirmou as margarinas e fiquei ciente do valor destas, visto que estavam a ser discutidas. Parece que Sócrates as queria encarecer, Passos Coelho achou que, como artefacto indispensável à população isso não seria justo, não sei se Passos Coelho as usa nos seus refogados e por isso se achou no dever de lhes reduzir o preço, como condição da sua aceitação do próximo Orçamento para a Nação, juntamente com outros produtos, que todos se me varreram da memória, actualmente em mau estado de conservação – a memória, não as margarinas - à excepção destas últimas, que lambareira como sou, uso às vezes nos bolos, e por isso se me fixou no espírito.
Mas eu de facto julgava que a sonoridade do silêncio de Passos Coelho em relação à sua adesão ao OE tinha a ver com uma caixa de surpresas com que iria maravilhar a população e multiplicar os seus votantes nas próximas eleições. Julguei que iria propor como condição sine qua non para tal adesão, que os que roubaram, ou não pagaram os impostos, fossem obrigados a pagá-los e a repor com juros o que roubaram. Os ordenados de afronta fossem obrigados a descer, os múltiplos vencimentos de alguns fossem reduzidos a um só – o maior deles - enfim, as trafulhices fossem desmascaradas e condenadas, a verdade das contas obrigada a ser esclarecida pelo governo, os campos e pescas fossem repostos num outrora mais obreiro, a Educação fosse tornada mais responsável, a Justiça mais justiceira, a seriedade fosse imposta onde ela faltasse.
Mas falou em margarinas, eu ainda pensei que fora troca com Margaridas, já expliquei porquê, e o meu marido considerou que os telhados de vidro são muitos, que eles sabem o que fazem, que ninguém se atreve a exigir tanto de um governo habituado a não saber fazer contas e a impor as contas erradas a um povo que também não estudou a tabuada.
Porque mesmo que esse que se vê que também quer o palanque não tenha ainda os tais telhados, o seu sonho é pertencer aos que os têm. Por isso se fica nas margarinas – peannuts para os mais poliglotas – e faz alarde com elas para justificar a adesão ao Orçamento para a Nação.
O povo tudo fará para continuar a amparar os tais telhados que, para todos os efeitos, reflectem bem o sol do nosso bonito clima soalheiro que nos abriga, sem nos obrigar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Em forma de parábola

Trata-se do texto “Fogo!” de Manuela Ferreira Leite, saído no caderno “ECONOMIA” do Expresso de 16 de Outubro.
“Naquele tempo existiam uns pirómanos que faziam arder tudo à sua volta em combustão lenta e assim a destruição progredia sem que a maioria das pessoas se apercebesse do que estava a acontecer. Mas chegou o dia em que um anticiclone, vindo de fora, com vento forte, ateou o fogo.
As labaredas, bem visíveis, alertaram as populações para o perigo eminente que as ameaçava e então gritaram por socorro.
Era aquele o momento propício para desmascarar os incendiários e livrarem-se finalmente deles?
Talvez, mas o drama é que o fogo não faz pausas e devoraria as vítimas muito antes do julgamento dos culpados.
A prioridade é, pois, apagar o fogo e salvar o que for possível.
Também esta operação implica prejuízos elevados para as populações, porque os meios de combate muitas vezes danificam os locais onde actuam, havendo a tendência para culpar os bombeiros pelos estragos sofridos.
Assim, o que é justo é que quem provocou o fogo, o apague, até porque qualquer bombeiro, seja qual for a corporação a que pertença, apagá-lo-á da mesma forma: ou com água, ou com neve carbónica ou com uma combinação das duas.
Vem isto a propósito do destino do próximo Orçamento.
Sinto que o PSD não deixará de colaborar na extinção do fogo, mas é nossa responsabilidade não deixar esquecer que este incêndio tem origem em fogo posto e que é, por este acto, que o Governo deverá ser julgado.”

Fez bem, Manuela Ferreira Leite em reconhecer, na sua parábola do fogo posto, quanto a responsabilidade dele não exclui ninguém dos sucessivos governos com que se atamancou a história do Portugal pós-abril. Mas o facto é que a si própria se incrimina, porque deles fez parte, e isso a mim me chocou, que sempre preservei a sua imagem por lhe reconhecer o mérito da honestidade e da lucidez.
Mas o seu texto é sobretudo expressivo da preocupação que a todos mina, pela fragilidade de um país que há muito arde, e que virou braseiro inextinguível, tentando com tal parábola servir de orientação a um Passos Coelho joguete dos malabarismos verbais e irónicos dos que dele dependem, mas mantendo caprichosamente o enigma sobre a posição que vai tomar na questão do Orçamento, em discursos sem conteúdo, e asnaticamente fundamentados, numa emoção pouco sadia, de um romanticismo exibicionista, a sugerir a teatralidade de Manuel de Sousa Coutinho incendiando o seu palácio de Almada, para nele não receber os inimigos da sua pátria, no drama de Garrett.
Não mudamos, sempre actores de gestos amplos e vozes sonoras, a racionalidade subvertida pela emotividade da indignação contra os outros, ou da valorização dos sentimentos próprios.
Manuela Ferreira Leite conclui o seu texto com a afirmação de que os responsáveis pelo fogo posto é que o devem apagar.
Se isso é verdade, não o é connosco, que os incendiários até nem são punidos pelo seu crime, numa campanha de silêncio em seu redor, que sempre nos perturbou a alma.
Mas também é verdade que ninguém acredita na alternativa de Passos Coelho como extintor.
É inteligente a parábola de Manuela Ferreira Leite.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Não mudam

Conheci a minha amiga cá, depois do 25 de Abril, mas ela conhecia o meu pseudónimo dos jornais de lá e congratulámo-nos com a descoberta. Tive que lhe oferecer os meus livros, que para isso servem, e num deles, em 79, porque perdera o primeiro, apus a seguinte dedicatória: “Um magnífico exemplo de virtudes… para o caixote”. Não gostou e um dia, anos depois, devolveu-me o livro para lhe alterar a dedicatória ou acrescentar outra. Docilmente, insisti:

“Se da dedicatória acima não gosta
Neste livro escrito há já tantos anos
Insisto, e não temo perder a aposta,
Que um caixote é pouco para os desenganos.

Catorze anos passaram, e nós aqui estamos,
Atentas ao leme dos nossos navios,
Olhando, aprendendo, colhendo, apontando,
Desmandos constantes, frequentes desvios.

E esses dizeres em pouco diferem
Daquelas virtudes que o livro contém,
Dizeres inúteis, inúteis virtudes
Que o mundo não ferem, nem mudam ninguém.”

Vem a referência a propósito de uma entrevista feita na Sic a Frei Fernando Ventura, que me chegou por e-mail, e que revi com o mesmo espanto com que a ela tinha assistido. Pelo desassombro crítico.
Algumas das ideias reconheci, que eu também já lembrara, tal como o fizeram outros cronistas que lera - o sebastianismo, o atraso social, aparentemente colmatado à pressa com as Novas Oportunidades que não passam de bluff, num país de fatalismo e de sebastianismo, por descrença do povo em si próprio, habituado à canga do servilismo e da servidão, um país de vaidades dos governantes e dos partidos, digladiando-se em jogos do poder, nunca em termos de honestidade governativa para “Bem da Nação”.
Uma voz severa e certeira, sob um sorriso aparentemente simpático, definindo-nos como eternos condenados a sermos os apanhadores do lixo dos outros povos.
Vale a pena ler ou ouvir a entrevista, mais uma voz severa entre tantas que dizem não haver já solução para nós, que chegamos aos cursos superiores com grande impreparação, e, porque foram desaparecidos os cursos técnicos, também sem preparação técnica, os ensinos profissionalizantes não passando igualmente de outro bluff.
Mas, tal como outras vozes severas ou irónicas que vão surgindo com maior ou menor frontalidade, pouco importa o que disse Frei Fernando Ventura, pouco importa o que se for dizendo.
Nação de preguiçosos mentais, povo sem memória e sem consciência de ter sido sempre pobremente educado – o seu atraso vai-se consumando na perenidade desses defeitos de que não toma consciência, cada vez mais arredado do sentido da seriedade, porque educado na facilidade – “facilitismo” – e na desordem da indisciplina, de uma afirmação insensata e perversa.
A tal dedicatória minha a um livro antigo, continua certa - “dizeres inúteis, inúteis virtudes, que os homens não ferem nem mudam ninguém.”

domingo, 17 de outubro de 2010

Relatórios, sim, mas de relações

- Ouvi na TV, a um rapazinho novo chamado Hugo, que nos países civilizados os governos apresentam ao fim de cada ano um relatório provando o que eles fizeram para melhorar o país. A maior parte tem que se esforçar para ficar lá. Nós aqui, os erros são enormíssimos e ninguém é mudado. Eles são todos primos uns dos outros.
- Por isso não há relatório. Mas acredito que seja antes por não saberem fazer bem as contas.
- Eu acho que o país tinha que se levantar em peso e vir exigir uma mudança radical. Se é preciso vir o FMI, então que venha. Que entre o FMI e quanto antes, diz o Medina Carreira, porque parecendo isso uma calamidade, ele diz que não, só parece. Os bancos mandam neles, os milionários mandam neles. Os banqueiros impõem as suas condições, onde é que vivemos?
- Ainda se houvesse produção suficiente, para a balança comercial…
- disse eu a medo, nas a minha amiga não me deu tempo a desenvolver a ideia e passou-me para as mãos um artigo do SEMANÁRIO com o título “Regalias e salários dos boys socialistas” e o subtítulo “Ex-secretários de Estado e ex-ministros com ordenados milionários em institutos públicos”, contendo ainda o perfil sorridente de Fernando Gomes com expressivo anúncio dos seus êxitos ascensionais. É tão obscenamente vergonhoso, que não posso passá-lo em branco e aqui o deponho:
“Na semana passada, o Governo anunciou as medidas de austeridade mais duras dos últimos anos: corte de 5% nos salários da função pública, redução dos apoios sociais, congelamento das pensões da função pública e aumento de impostos.
No dia 23 de Julho passado, o Governo anunciou mais uma nomeação para uma empresa pública: trata-se de Ana Tomaz, 35 anos, administradora da Estradas de Portugal, com um salário anual bruto de 151.200 euros, mais carro de serviço, combustível e telemóvel. Na véspera da nomeação, esta engenheira civil sem qualquer experiência de gestão, era adjunta do secretário de Estado das Obras Públicas.
Este é só um dos exemplos de figuras próximas do PS colocadas pelo Governo em institutos públicos, fundações, entidades reguladoras ou empresas do Estado , mesmo durante a crise. A SÁBADO foi ver onde estão e quanto ganham.
Por exemplo, o ex-secretário do Estado da Administração Interna e da Agricultura, Ascenso Simões, foi nomeado pelo Governo para vogal do Conselho de Administração da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos a 7 de Maio, onde ganha 13488 euros mensais. Ascenso Simões pertenceu à JS, foi vereador da Câmara de Vila Real e presidente da distrital do PS.
Já Fernando Gomes passou directamente da Assembleia da República para o Conselho de Administração da Galp, com um salário base de 349 mil euros, mais 30 mil de prémios, 88 mil em PPR e 62 mil em subsídios de renda de casa e deslocação, num total anual superior a 529 mil euros.”
Meros dados comprovativos da desvergonha que escorre das nossas figuras actualmente qualificadas.
Recorramos, uma vez mais, a Esopo, vejamos a sua fábula “A víbora e a raposa”:
Uma víbora descia um rio sobre um feixe de arbustos. Uma raposa que passava viu-a e exclamou: “Tal navio, tal piloto!”
A fábula visa o patife que se acha em má postura.”
Podemos, sempre, na tradução, procurar a via da versificação – mera prosa versificada - para maior diversão, nesta vida atropelada, e assim alegremente, esperar a solução:
“Sobre um feixe de arbustos, meio desconjuntado,
Num rio em muito mau estado,
Uma víbora ia descendo
Ansiando
Safar-se, nem que para isso atropelasse
Outros mortais que topasse.
Uma raposa passou e disse,
Com ar muito maroto:
“Tal navio, tal piloto”,
Mas podia bem ter trocado
Os termos da sua ilação:
-“Tal piloto, tal navio” -
Que ninguém se espantaria
Pois os dados da alegoria
Têm idêntico significado,
E idêntica aplicação,
- Quer à barca desconjuntada
Sempre mal pilotada,
Quer ao piloto perverso
Que virou a barca do avesso.”

sábado, 16 de outubro de 2010

Enchamos o poço

Recebi um e-mail contendo exaltado comentário sobre “A Lei 2105 de 1960”, uma Lei (“publicada no “Diário do Governo” de 6 de Junho, com a assinatura de Américo Tomaz, Presidente da República, e de A. Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, e segundo a qual “quem quer que ocupasse lugares de responsabilidade pública não podia ganhar mais do que um Ministro”). Posteriormente, “Em 13 de Dezembro de 1974, catorze anos depois da lei “fascista”, o Governo de Vasco Gonçalves, pelo Decreto-Lei 446/74 limitou os vencimentos dos gestores públicos e semi-públicos ao salário máximo de 1,5 vezes o vencimento de um Secretário de Estado.”
As suas informações colheu-as o subscritor - “Dias Tramados” - na obra “Salazar e os Milionários” de Pedro Jorge de Castro, publicada pela Quetzal em 2009:
“Essa lei destinou-se a disciplinar e moralizar as remunerações recebidas pelos gestores do Estado, fosse em que tipo de estabelecimentos fosse. Eram abrangidos os organismos estatais, as empresas concessionárias de serviços públicos onde o Estado tivesse participação accionista, ou ainda aquelas que usufruíssem de financiamentos públicos ou "que explorassem actividades em regime de exclusivo". Não escapava nada onde houvesse investimento do dinheiro dos contribuintes.
Naturalmente que o subscritor do texto tece considerandos expressivos de ironia sobre a diferença relativa aos tempos hodiernos, de que transcrevo os parágrafos seguintes:
“Ao lermos hoje esta legislação, parece que nos mudámos, não de país mas de planeta, pois tudo isto se passou no tempo do "fascismo" (Lei 2105/60) e do "comunismo" (Dec.-Lei 446/74). Agora, está tudo muito melhor, sobretudo para esses “reis da fartazana” que são os gestores estatais dos nossos dias: é que, mudando-se os tempos mudaram-se as vontades e, onde o sector do Estado pesava 17% do PIB, no auge da guerra colonial, com todas as suas brutais despesas, pesa agora 50%. E, como todos sabemos, é preciso gente muito competente e soberanamente bem paga para gerir os nossos dinheirinhos.
Tão bem paga é essa gente que o homem que preside aos destinos da TAP, Fernando Pinto, que é o campeão dos salários de empresas públicas em Portugal (se fosse no Brasil, de onde veio, o problema não era nosso) ganha a monstruosidade de 420.000 euros por mês, um "pouco" mais que Henrique Granadeiro, o presidente da PT, o qual aufere a módica quantia de 365.000 mensais.
Aliás, estes dois são apenas o topo de uma imensa corte de gente que come e dorme à sombra do orçamento e do sacrifício dos contribuintes, como se pode ver pela lista divulgada recentemente por um jornal semanário, onde vêm nomes sonantes da nossa praça, dignos representantes do despautério e da pouca-vergonha a que chegou a vida pública portuguesa.
Assim - e seguindo sempre a linha do que foi publicado - conhecem-se 14 gestores públicos que ganham mais de 100.000 euros por mês, dos quais 10 vencem mais de 200.000. O ex-governador do Banco de Portugal, Vítor Constâncio, o mesmo que estima à centésima o valor do défice português, embora nunca tenha acertado no seu valor real, ganhava 250.000 euros/mês, antes de ir para o exílio dourado de Vice-Presidente do Banco Central Europeu.
Entretanto, para poupar uns 400 milhões nas deficitárias contas do Estado, o governo não hesita em cortar benefícios fiscais a pessoas que ganham por mês um centésimo, ou mesmo 200 e 300 vezes menos que os homens (porque, curiosamente, são todos homens...) da lista dourada que o "Sol" deu à luz há pouco tempo.
Acabemos de vez com este desbragamento, este verdadeiro insulto à dignidade de quem trabalha para conseguir atingir a meta de pagar as contas no fim do mês.”

Vivemos uma época sombria, numa chiadeira de roldana e nora enferrujadas, tentando extrair do poço a água que nos dessedentasse, mas é tempo de seca, o poço não dá mais água. Temos que devolver a que recebemos do exterior, que matou, de facto, a sede a muita gente, e continua, mas serviu também para a construção de estruturas imprescindíveis, num país de miséria, desde sempre educado na miséria do subdesenvolvimento social, no desinteresse por uma formação de igualdade social. Assim tivesse servido também, essa “água” exterior, para desenvolver indústrias e não nos fosse imposta a morte dos campos e das pescas, que a tal água que veio de fora exigiu, como condição da sua aparente generosidade.
A nossa miséria social sempre assentou na exploração, no elitismo, na aldrabice, na esperteza de uns, na apatia de um povo que nunca se preparou intelectualmente, por falta de condições económicas, sempre, mas também por desinteresse em se elevar conscientemente, habituado a vergar, a obedecer – “Se tu soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida” – escreveu Salazar.
E todos criticam Salazar, mas o facto é que a sociedade continua a ser feita por idênticas normas de mando e obediência, só que o mando agora é mais despudorado, por lhe faltar o equilíbrio de uma Justiça que foi riscada do nosso mundo, que cada vez permite mais traficâncias, trafulhices, trapaças e desvergonhas. E lata, somos o povo da lata.
E atrevem-se a vir, com a sua voz soturna, agourar desgraças para a qual eles próprios contribuíram, como fez ainda hoje o governador – ex – do Banco de Portugal, Victor Constâncio, que tem o arrojo de descer do seu mundo - de água – exterior, para onde foi embarcado, e aparecer na televisão denunciando, agourando, tristemente, soturnamente. Interiormente, rebolando-se de gozo, Tartufo com pinta.
É preciso encher o poço, o nosso Governo manda, para resolvermos a crise. Obedeçamos, como devemos gostar, foi Salazar que disse. Obedeçamos, como Sócrates impõe. Não melifluamente, como esse outro Tartufo banqueiro, mas risonhamente, como o tal aprendiz de feiticeiro, que Disney imortalizou.
Enchamos o poço, como de costume. É preciso salvar a nação.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

“Hoje é só mineiros”

- Não, hoje é só mineiros - considerou a minha amiga, indiferente a quaisquer outros subterrâneos das nossas lucubrações provenientes das transmissões mediáticas diárias, agudizadas em previsões mais catastróficas ainda, que a catástrofe sobre os trinta e três mineiros do Chile, em que todos se salvaram e para mais são reconhecidos como heróis nacionais, tal como outrora os “bourgeois de Calais” que o Rodin esculpiu. Mas estes até foram apresentar-se ao rei inglês, Eduardo VI, descalços, em camisa e com a corda ao pescoço, para salvar os habitantes da cidade, que o rei inglês queria render pela fome. Não chegaram a morrer, mas posteriormente tiveram uma estátua em Calais, o que não aconteceu com o nosso Egas Moniz que também foi com a família nos mesmos trajes humilhantes dos ricos burgueses franceses, para resgatar a palavra que jurara ao rei de Leão, e não lhe conheço nenhuma estátua tão célebre assim, não sei se por falta de Rodin, mas é também porque nem todos acreditam na história da hombridade de Egas Moniz, acham que tudo não passa de lenda, pois os nossos feitos como nação são muitas vezes atribuídos à lenda, também não sei se por termos inveja, já que os nossos feitos de agora são outros, não contêm tanta heroicidade, nem espírito de sacrifício para se honrar a palavra como o nosso Egas, ou para salvar uma cidade como os ricaços de Calais.
As palavras são como as cerejas.
- Mas como foi possível uma coisa daquelas, sem condições de segurança, a tantos metros de profundidade? – perguntei eu que mal tenho podido assistir às reportagens, devido aos muitos afazeres da domesticidade.
A minha amiga não é de cerimónias e largou com imponência:
- Deve ter havido grossa falcatrua. Faltam condições, não posso falar, vão ser averiguadas. Alguma coisa está errada, arriscar daquela maneira! … Aquilo afinal é ouro e cobre. - As coisas que a minha amiga descobre! – E, se fecha, é o ganha-pão daquela gente. Porque ali estavam aqueles. Cá fora estão muitos que trabalham ali.
- Mas foi um feito memorável, com a colaboração dos grandes, sempre os mais generosos e os mais capazes. A Alemanha, a NASA, o homem é um ser fantástico!
- Mas se não fossem os media não teria havido, talvez, um salvamento tão espectacular.
- E talvez sim, que as grandes potências gostam de mostrar o seu poder e a sua bondade.
- Oh! Sempre o seu poder! Nem sempre a sua bondade!
Decididamente a minha amiga hoje está para contrariar.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O coiso disse

- Então não diz nada? – perguntei, estranhando a mudez da minha amiga a respeito do como isto vai, que vai mal para todos e todos falam, falam, e é sempre a respeito do como vai isto que até nos causa depressão, tão aterrados que andamos, pois não acertamos com a solução, nem de resto ninguém está interessado em conhecê-la, que somos leigas convictas, mas também ninguém acerta porque os que poderiam acertar, não estão para tal porque isso implicaria perda de benesses e de amigos, fuga de capitais e dos respectivos possuidores deles, assim que lhes acenassem com quebra nas suas receitas, para fortalecimento das receitas da nação e pagamento da dívida monstruosa, que faz toda a gente, capaz de falar, falar em cenários diversos.
Mas a minha amiga foi muito sucinta, creio que por confiar mais na prolixidade dos capazes de ser prolixos. E disse:
- Eu tomei nota, o coiso disse, o sabichão do Rebelo de Sousa. O que é que ele foi fazer ao Maputo? O que ele disse é que vai ser um descalabro ainda pior se o outro, o Passos Coelho, não aceitar o orçamento do que se aceitar. Será o fim da macacada. O homem também não é parvo, vai aceitar claro.
- Ele talvez não seja parvo, mas a mim parece-me um garoto birrento que se julga alguém e por isso faz mistério das suas intenções a respeito das propostas do PS que só podem ser as que são, caso contrário aí vêm os tais cenários, bancarrota, os tentáculos do FMI, o colapso de que fala o sabichão, que está no Maputo com gosto, muito mano do Malangatana e isso é bonito, pode ser que dessa fraternidade até resulte outro qualquer cenário de safa. Não de safra, que não se trata disso, não somos gente de safra, somo-lo de safa, do desenrasca. Valha-nos a fraternidade do nosso sábio com o Malangatana. Deve ter havido um qualquer propósito de Marcelo ao falar na tal amizade de peito. Até faz lembrar as amizades daqueles do outro tempo – Soares, Almeida Santos… - que também iam buscar muitas dessas amizades como forma de convencer os desprevenidos da revolução, como nós fomos.
- Nem fale nesses tempos. Isso foi duro e também foi muito ingénuo, da nossa parte!
- Tem toda a razão. Isto, agora, não passa das sequências, e respectivas consequências.
- As evidências das imprevidências…
- Das indecências?...
- E tudo partiu das Excelências…
- E continua! Porque nos faltam Ciências. Além de outras competências.
- Valham-nos as Bem-Aventuranças!

Uma de abelhas

As abelhas são insectos trabalhadores,
Todos o sabem,
Que nos dão o mel e a cera
A partir do néctar das flores.
Às vezes também se enganam
No seu julgamento
Mostrando falta de gratidão
E de discernimento
Em relação aos benfeitores
Que lhes tratam da habitação
Embora, naturalmente,
Por interesse,
Para o mel e a cera venderem
Para sua benesse.
Vejamos a fábula comprovativa
Por Esopo contada,
Talvez da sua inventiva
Ou da inventiva oriental
Já que muito aí colheu
Da sua inspiração final:

«O apicultor
Na ausência dum apicultor,
Um homem penetrou
Na casa dele e roubou
Os favos e mais o mel
De que ele era produtor.
O apicultor regressou
Sem sequer suspeitar
O desastre cruel
Das suas colmeias vazias.
Ao pôr-se a investigar,
Ficou de alma fria
E acelerado coração,
Na raiva da constatação
Da enorme malfeitoria
Feita para sua desfeita.
Mas as abelhas, entrando
Das suas libações
Nos seus volteios pelas flores
Da pradaria,
Ao toparem o homem a espreitar
As colmeias vazias,
Trataram de o picar
Com os seus dardos ferinos,
Sem prévia investigação
Sobre quem fora o ladrão.
O pobre do apicultor sofredor
Dirigiu-lhes repreensões
Provenientes do seu desconcerto
Ante a injustiça do tratamento:
“- Infames bestazinhas!
Aquele que os vossos favos roubou
Deixaste-lo impune partir.
A mim, que sobre vós velo,
De picadas me ferrais
Sem pejo de me ferir
Até ao desespero?”

O mesmo acontece connosco,
- Pobres pecadores -
Que por ignorância
Ou desmazelo,
Não só não nos protegemos dos inimigos,
Como repelimos os amigos,
Que julgamos os verdadeiros
Construtores
Do nosso pesadelo.»

Nós somos as abelhas previdentes,
Lutando pelo dia a dia e juntando
Para o nosso futuro ou para a sobrevivência,
- Embora alguns conheçam melhor
Os caminhos da abundância
Para as libações do seu néctar.
Mas não sabemos reconhecer
O verdadeiro malfeitor
Que nos despoja do mel
Do nosso fervor trabalhador,
E até o idolatramos
E o benfeitor culpamos,
Sem nenhum pudor,
Se por acaso o topamos.
O mal é que já não acreditamos
Em nenhum benfeitor,
Fora ele Sebastião
Ou o próprio Salvador.
Estamos enterrados
Até às orelhas,
Afundados,
Definitivamente arrumados
Dizem as velhas,
Ou mesmo só os observadores
Sabedores
Que tanto nos assustam com as suas previsões,
Sem ilusões
Sobre benfeitores.
Todos, afinal, foram
Malfeitores
Que a colmeia destruíram,
E ainda não fugiram,
Salvo as excepções
Dos que já o puderam
Fazer,
Porque, sabedores,
Souberam
Como se faz
Para viverem em paz
Pela vida fora,
Seja qual for o regime
Que vigora.

sábado, 9 de outubro de 2010

Segundo Ano

Dantes, chamava-se Segunda Classe.
Havia textos, como hoje, mas os livros eram um depósito de leitura e informação, que competia exclusivamente ao professor desbravar, já que os textos não eram acompanhados de questionários que apelassem ao raciocínio, e à maior ou menor competência de cada aluno para interpretar e desenvolver. Não havia tampouco imagens apelativas, como oferecem os livros de hoje.
Até mesmo o livro de História constava de uma sucessão dinástica de reis desenhados, com a bandeira nacional na capa. Quanto ao de Geografia, apresentava o mapa de Portugal, com as suas províncias, os seus distritos, as suas montanhas, os seus rios. Também havia o de Ciências Naturais para os rudimentos da vida. E aprendia-se a amar a pátria, através das suas figuras, das suas datas, dos factos que a exaltavam. 1419, e a descoberta da Madeira, que nos restou, mais os Açores, de tantos “mares nunca dantes navegados”, 1498, 1500… Para promover esses dados culturais, nomeámos, é certo, um magalhães, como coisa palpável, cujo nome soa aos confins da melancolia histórica, sem ninguém, é certo, explicar aos meninos porque se lhe deu esse nome.
E a gente aprendia, decorando. Aprendia fazendo cópias, ditados, correcção de erros, caligrafia segundo os métodos tradicionais. E decorava as tabuadas e as preposições, e os advérbios e a conjugação verbal. Um ensino repetitivo, condicionante de competências, tais as da oralidade, mas apurando as da escrita.
Falou-se em psitacismo, pôs-se a ridículo essa metodologia que assentava na repetição para a memorização da matéria e que assim eliminava radicalmente a inteligência e a criatividade.
Os livros apresentaram aspectos mais aliciantes, com imagens esclarecedoras das matérias veiculadas, com questionários facilitadores, de abertura intelectual.
E tudo isso começa no primeiro ano, no segundo ano… Compram-se os livros, mas preenchem-se as aulas com fichas, que os alunos que não sabem ler erram na totalidade, porque não aprenderam a ler e não percebem o que se lhes pede. Fichas aliciantes, com sopas de letras para nelas se descobrirem palavras, com palavras cruzadas, com questionários de interpretação, para a procura da resposta no livro, com apelo à inteligência, mas que, obviamente, exigem o domínio da leitura, relegando os alunos que a não têm, para a situação de perenemente atrasados, ou de incapacitados, ou com défice de atenção, necessitando do psicólogo e do terapeuta da fala para corrigir, ou da ritalina para ajudar à concentração, quando o que o aluno tem, de facto, é uma ignorância absurda de leitura, de escrita, de memorização de elementos que se irão prolongar pelo secundário.
São interessantes as fichas com que se ocupam os meninos – os que já sabem ler, porque tiveram quem os seguisse em casa - que descodificam as questões e as interpretam. Mas o livro de leitura aí está, por desbravar, tal como ficou o do primeiro ano. Por falta de cópias, de repetição, de memorização diárias. Tudo isso passou à história, que as fichas têm sopas de palavras, têm palavras cruzadas, que obrigam o aluno a pesquisar, aliciantemente, a pôr a cruzinha na resposta certa do questionário múltiplo, a divertir-se… Mas de facto, só aquele que já sabe ler ou escrever o pode fazer. Porque teve quem em casa o apoiasse, talvez através de um método de ensino mais tradicional, fazendo o menino ler e escrever e repetir.
O apelo à compreensão, o lúdico na base do ensinamento… Mas os alunos chegam à segunda fase do ensino básico, chegam ao ensino secundário, sem saber ler nem escrever, dizem os professores destes ensinos. Desmotivados, irrequietos, barulhentos, indisciplinados. Desinteressados.
Na poeira do seu percurso de vida, ficar-lhes-á, é certo, um magalhães para a desenvoltura mental, que lhes tirou o tempo para a leitura, para a escrita, para a repetição, para a memorização. Para a motivação.
Em vez disso, o estardalhaço, a apatia, a acefalia. O vazio.
Fica sempre a esperança nas excepções. Porque o retorno não é mais possível. Nem ninguém o deseja, agora que conquistámos a liberdade, como sinónimo de democracia.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

“Mais que diable allait-il faire dans cette galère ? »

É o senhor Géronte que, instado pelo criado Scapin, de “Les Fourberies de Scapin” de Molière, a entregar ao criado Scapin quinhentos escudos e com eles resgatar o filho de Géronte – Léandre – sob o falso pretexto de que este se achava prisioneiro numa galera turca, o que se verificaria ser redonda impostura do patife do criado, para extorquir, por meio de uma das suas hábeis velhacarias, essa soma, não para si, é certo, mas para o seu amo Léandre, (que nesse tempo os criados franceses eram coniventes com os amos jovens) e, ao que parece, e isso, sim, era verdadeiro, necessários para comprar a amada de Léandre – Zerbinette - a uma família de ciganos com quem esta vivia, dando-se o caso, mais tarde, de se vir a saber que Zerbinette de cigana nada tinha e até viria a ser, graças a uma pulseira reveladora, que crescera com a menina furtada aos quatro anos pelos ladrões dos ciganões, viria a ser descoberta como filha de Argante, o amigo de Géronte, (que até viajavam juntos), e pai de Octave, amigo de Léandre e apaixonado pela irmã deste, Hyacinthe, boa menina, com quem casara recentemente, sem conhecimento do pai Argante, também esburgado por Scapin, para poderem pisgar-se das iras daquele, e que se descobrira finalmente ser filha de Géronte e mana de Léandre… Ora, pois, Géronte, avarento como é, repudia, com todas as veras da sua alma indignada, a imposição de Scapin de lhe subtrair os quinhentos escudos, a cada passo juntando aos seus argumentos de repúdio a frase, em leitmotiv nervoso: “Mas que diabo ia ele fazer naquela galera?”, se bem que eu julgue que se fosse para safar o filho da forca ele não teria hesitado tanto.
Vem esta história da galera turca a servir de modelo alegórico ao nosso caso específico: Nós somos o Géronte avaro, agarrados aos trocos (puro pó), que, instado por um velhaco Scapin, a cada passo nos apontando o caminho do sequestro na galera do Turco fraudulento, respondemos com igual repúdio às imposições do nosso Scapin, tentando impedir o esbanjar do nosso dinheirinho, não, é certo, para salvar um qualquer Leandro apaixonado, mas todo um país embarcado na galera turca – europeia, mais actualizadamente – segundo o parecer do tal velhaco.
Não, não queremos ir na conversa. Mas, tal como o Géronte, seremos sovados pelo Scapin, num outro dos seus múltipos truques enganadores, e perderemos os dinheiritos - à força também, claro.
Sem conseguir nunca compreender o que diabo anda o país a fazer na tal galera.