quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Receita para um envelhecimento tranquilo

- Os prédios estão cheios de gente velha! Isto é um bairro de gente velha!
Via-se que era com desgosto que a minha amiga falava, sentada na esplanada, diante do seu garoto pouco claro. Eu é mais a bica calmante dos bocejos escancarantes da manhã, cujo primeiro gole detém instantaneamente bocejos e lágrimas do cansaço diário, diz-se que graças à cafeína milagreira. Mas ela continuou, atirando a cabeça em jeito dramático, abarcando os prédios e a senhora idosa que passava no largo de braço ao peito:
- Os das vivendas escapam. Mas é uma coisa horrível Ih! Pá! Ai!
Fiquei deprimida. De facto, o tempo passa que é um ver se te avias. E não nos podemos esquecer de ser cuidadosos a andar, que a calçada leva-nos facilmente ao malhanço, já o tenho dito, sem que isso tenha relevância, que somos conservadores nos buracos. Mas que há muitos velhos, há, los hay. E buracos, claro. Também.
Não quero deixar-me abater e retomo as notícias do meu país, mais de acordo com o nosso intelecto.
-O Cavaco interrompeu as férias e foi visitar o Ascensão Amboim, por via das presidenciais, começou ontem a candidatura… Não conhece o Ascensão Amboim? Não me diga, que eu caio já aqui para o lado. Tem um refúgio para crianças abandonadas, veja na Internet…
É muito crítica a minha amiga, com a falta de actualização nos conhecimentos. Pelo menos nos meus. Há dias foi a respeito do Casino do Estoril, que fez um estardalhaço idêntico, por eu ainda não ter ido ver as remodelações, presa que vou estando aos espaços das minhas limitações, que ela atribui mais à ausência de curiosidade. Por isso lhe mostrei a troca de correspondência internética, com o meu amigo Salles da Fonseca, prova de que, tal como o Hamlet, também eu acho que “há mais coisas entre o céu e a Terra, Horácio, do que sonha a nossa vã filosofia”. Foi a respeito de um poema da Glória de Santana que ele publicou no blog Elos Clube de Tavira, a que preside:
Se me quiseres conhecer
Se me quiseres conhecer,
Estuda com olhos de bem ver
Esse pedaço de pau preto
Que um desconhecido irmão maconde
De mãos inspiradas
Talhou e trabalhou em terras distantes lá do norte.

Ah! Essa sou eu: órbitas vazias
no desespero de possuir
a vida boca rasgada em ferida de angustia,
mãos enormes, espalmadas,
erguendo-se em jeito de quem implora e ameaça,
corpo tatuado feridas visíveis e invisíveis
pelos duros chicotes da escravatura…
torturada e magnífica altiva e mística,
África da cabeça aos pés,
– Ah, essa sou eu! Se quiseres compreender-me
Vem debruçar-te sobre a minha alma de África,
Nos gemidos dos negros no cais
Nos batuques frenéticos do muchopes
Na rebeldia dos machanganas
Na estranha melodia se evolando
Duma canção nativa noite dentro
E nada mais me perguntes,
Se é que me queres conhecer…
Que não sou mais que um búzio de carne
Onde a revolta de África congelou
Seu grito inchado de esperança.

Noémia de Souza / Moçambique 1958

Não resisti a comentar, no blog Elos Clube de Tavira:

Como todas estas sensibilidades parecem agora distantes, todas em redor das mesmas plangências, dos mesmos motivos de dor, de um patrioteirismo fértil em insinuações e imagens sentidas contra o opressor explorador! Será que eram absolutamente sinceras? O certo é que rendem mais fama e proventos!


O Dr. Salles aproveitou a deixa, para esclarecer, com bonomia aristocrática em comentário demonstrativo das verdades contidas no meu prosaico comentário:


Noémia de Souza nasceu na Catembe (para quem não conheça Lourenço Marques/Maputo, é assim como Cacilhas relativamente a Lisboa e Niterói relativamente ao Rio de Janeiro), e divagou pelo Brasil, França, etc. Mas quando chegou a hora da verdade, aconchegou-se em Portugal e morreu em Cascais.
Eles falam, falam, falam... mas afinal é a nós que voluntariamente entregam as almas.
Fazem assim muito bem e nós gostamos que assim seja!
Hoje, passados quase 40 anos das Independências, já perceberam que nós estávamos lá para viver deixando viver, o que não terá sido exactamente o que fez quem nos sucedeu no Poder.
Creio - apesar das alfinetadas desta literatura histórica - que a expressão africana lusófona não pode deixar de ser divulgada pois é inequívoca parte da Cultura Lusíada e o Elos propõe-se congregar não só os lusófonos passados e actuais mas também aqueles que já não falam português e que hão-de voltar a fazê-lo. Divulgar a obra dos que viveram em português, é um modo de nos aproximarmos.
Continuemos...


Enviei segundo comentário:

"Pois assim se fazem as cousas". Era o "refrão" aposto por "Pero Marques" à proposta da "Inês Pereira", às cavalitas do marido e dizendo: "Marido, cuco me levades! E mais duas lousas!" Nós somos os cucos. Prestáveis.

Concordou a minha amiga com os dizeres, na ponderação de uma sensatez sem ilusões, tal como a nossa, pois que o Dr. Salles ainda as tem. Por ser mais jovem. E assim me reabilitei a respeito da curiosidade ou da falta dela: Há mais coisas, há outras…
Mas em casa encontrei, em letras garrafais, na primeira página do caderno “Economia”, do Expresso, o seguinte título seguido da notícia sobre a construtora Leirislena:

“Estado investiu E936 mil em empresa que faliu dois meses depois”

Telefonei à minha amiga. E concordámos que as férias, embora quentes das chamas, tinham acabado. Regressáramos ao antes delas, estávamos no nosso elemento. Melhor seria deitarmos tudo para trás das costas.
Não, não há mais coisas entre o céu e a Terra, Horácio, por muito vã que seja a nossa filosofia.
Pelo menos por cá.
Deitemos para trás das costas…

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