domingo, 26 de setembro de 2010

O rabecão

Mais uma vez o Esopo
Tem toda a razão,
Ao mostrar
Como é velha a sentença
Do povo sabichão,
“Quem te manda a ti, sapateiro,
Tocar rabecão?”…
Embora a flauta
Do lobo da sua fábula
Tenha uma elegância
E uma vibração
Que não tem a rabeca
Do nosso remendão…
O que não é admiração!

«O cabrito e o lobo que tocava flauta»
«Um cabrito que se afastara do rebanho,
Por um lobo delambido
Foi perseguido.
Olhou para ele e disse, com ar meigo
E casto:
- Ó lobo! Eu não tenho nenhuma dúvida
De que te vou servir de repasto!
Mas uma morte ignominiosa é tristeza.
Toca flauta para que eu possa dançar
Antes de, em beleza,
Acabar.
Enquanto o lobo a flauta tocava
E o cabrito dançava,
Pelo ruído alertados,
Os cães, enfurecidos,
Acorreram mesmo na hora
E puseram o lobo a andar
Dali para fora.
Ao voltar a cabeça,
O lobo delambido,
Cheio de pesar,
Disse ao cabrito arguto
E muito atrevido:
“ – Pelo meu destino
Sou bem responsável
Por não ser fino
Ou arteiro.
Não passo dum carniceiro
E quis armar em flautista
Admirável!
O castigo mereço,
Imperdoável
E sem desconto,
Pois me portei como um tonto
Ou um menino sem tino,
Diria até, masoquista!

Assim acontece,
Frequentemente,
Àqueles que,
Sem terem em conta
As circunstâncias,
Da vida presente,
Se vêem privados
Sem tom nem som
Mesmo daquilo
Que têm na mão.»

E aqui está mais uma
De aplicação
Aos nossos tempos
De muita bruma
Na nação,
Na indigestão
De muitos
E na fome do pobre,
Embora o pobre agora
Seja mais ajudado
Do que o desempregado,
Por devermos mostrar
Na habitual bondade
– Digo, hipocrisia -
Que a democracia
Está em primeiro lugar.
De cabeça perdida
E sem comedimento,
O nosso Primeiro
Já faz queixas lá fora
Às grandes potências
Do que aqui se passa.
Que atrevimento
E que falta de classe!
Como se importasse
Aos outros povos
Aquilo que somos
E o que fazemos!
Somos sapateiros,
Remendões, embora,
Que nos vamos amanhando,
E atamancando,
Com muita penúria
Mas não de tolice,
Lançando sempre mão
De qualquer rabecão.

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