quarta-feira, 8 de setembro de 2010

“Não são vítimas. São malfeitores.”

Foi a respeito do caso “Casa Pia”, que a minha amiga se saiu com uma expressão imprópria de pessoas educadas no esmero das boas maneiras, como logo lhe fiz sentir, na indignação compreensível pelos motivos anteriormente aduzidos de esmero educacional:
- Realmente, uma pessoa tem que se animar, mas não sei com quê. Só apetece dizer “bardamerda”. Acho que não convém, mas, na impotência em que estamos, perante tanto “poderio” que não olha a meios, alivia-se a alma.
- Essa lembra mesmo a posição do Maquiavel no seu “Príncipe”, como defensor do monarca de tal modo absoluto, que “não olha a meios para atingir os fins”.
- Tantos que a usaram e usam, mesmo sem serem monarcas, ora, ora !… A História é um chorrilho desses, o século passado foi um alfobre de ditadorzecos e este nosso século também vai bem guarnecido, não há que estranhar.
- Sim, e os que mais defendem a democracia, hoje, são os que menos olham aos meios para obter os fins. E os fins polarizam-se em torno deles e dos amigalhaços. É essa a essência da democracia: a centralização dos poderes em torno dos amigalhaços ou aderentes do partido. As noções de Honra, Pátria e Família são arcaísmos. Hoje impera o desprezo por valores de que se tinha a mente impregnada, no tempo em que não se contestavam as palavras “Moral”, “Justiça”, “Honra”, como o próprio “Malhadinhas” não deixa de assinalar, assarapantado com a revolução já no seu próprio tempo, para a qual tanto contribuiu o progresso, que muito mais hoje em dia se faz sentir, com a própria entrada triunfal dos magalhães nas escolas:

Voltou-se tudo; de meu tempo, também, homem de palavra era como se trouxesse sempre consigo um alforge de libras. Ajustava o que queria e levantava o que queria de proprietários e de tendeiros. Palavra era palavra, mais ouro de lei que uma peça de D. João. Assinava-se de cruz e muito judeu seria aquele que negasse os dois rabiscos lavrados de seu punho, porque não era só negar dois rabiscos, mas o grande sinal de lisura e de verdade que Jesus Cristo deixou aos homens ao morrer num madeiro para nos remir e salvar. Vão lá agora com essas !...”

M
as a minha amiga não vai em prosas aquilinianas, particularmente agora que anda à procura de animação e não a encontra, porque não faz como eu, que tento fugir às dores noticiarísticas à hora dos programas cómicos, dos de José Hermano Saraiva nos seus encantadores percursos histórico-geográficos imbuídos de carinho pátrio, dos filmes clássicos ou dos policiais oferecidos pelos meus filhos, que há muito já me traçaram o perfil, pouco adepto das confusões surrealísticas das modernidades criativas.
E assim, para disfarçar, a minha amiga acrescentou à sua expressão ofensiva da boa moral:
- Ontem estava a dar uma notícia, uma boa notícia: aquela fábrica que esteve para fechar recebeu uma boa encomenda de carros e vai empregar muita gente. Só que, acaba essa notícia, e logo outra se segue que diz que vai fechar outra fábrica. Tudo p’rá rua! Daquelas coisas tremendas que sempre me custou ouvir.
- Nos custa ouvir, creio que não há ninguém que não sofra com este panorama do desemprego sempre aumentando no nosso país. Uma pessoa sem trabalho sente-se tão infeliz como uma pessoa doente. Aliás, é uma doença, a falta de trabalho, que não só destrói as pessoas como a nação inteira, que fica cada vez mais exangue.
- E já viu como se processa o processo Casa Pia? As defesas dos condenados, a notoriedade mediática, os discursos dos que aparentemente foram incriminados justamente, e que se defendem tão bem, tão bem, que os que foram suas vítimas – e provou-se o quanto sofreram essas crianças – passaram de vítimas a carrascos. Não são mais vítimas, são malfeitores.
- E tudo isso, graças ao poder real - e até mesmo divino - da palavra. Oral ou escrita agora, porque nos tempos bíblicos, bastou a oral: “ In principio erat verbum”, foi S. João que assim iniciou o seu Evangelho, referindo-se à palavra de Deus. Mas, quem for senhor da palavra, mesmo hoje, tem também o mundo nas mãos, por muito maculadas que estejam. Ou a seus pés, que deve ser sinónimo.

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