domingo, 18 de julho de 2010

Encomium Moriae, 21 – “Pastores de Almas”

Quando Gil Vicente escreveu o seu "Auto da Barca do Inferno" em 1517, o “Auto da Barca da Glória” em 1519, o “Auto da Feira”, em 1527, “Romagem de Agravados” em 1533, tinha, naturalmente, conhecimento da obra de Erasmo, que, visando um ideal de pureza cristã, fez despoletar o movimento reformista na Europa de Quinhentos.
O sentido da sua crítica nestes vários Autos, de que o da Feira é, talvez, o de maior virulência satírica a uma Igreja faustosa, desviada do trilho da simplicidade primitiva, encontrou-o no modelo de pensamento teórico de Erasmo, nos seus “Colóquios”, no “Elogio da Loucura”.
A partir do capítulo LVII deste último livro, é sobre os altos cargos pontifícios e sobre a Igreja em si que se debruça a Loucura. Porque hoje é domingo, vou pôr ponto final na leitura da obra, que tanto aprofundamento merece, nos seus 68 capítulos, pelo impacto que provocou sempre, citando apenas breves excertos, seguidos de outros do nosso dramaturgo primeiro, para diversão própria, certamente, mas da minha amiga também, companheira generosa nas sugestões críticas da nossa bica palreira.

LXII- «Dignos rivais dos Príncipes, eis os Soberanos Pontífices, os cardeais e os bispos. Eles quase que os ultrapassam. Que um dentre eles, contudo reflicta, verá que a sua bela sobrepeliz, branca como a neve, é o emblema duma vida sem mácula; que a sua mitra de dois cornos unidos por um mesmo nó pressupõe o conhecimento igual e aprofundado do Novo e do Antigo Testamento; que as luvas com que cobre as mãos indicam que deve ser puro de toda a sujidade para administrar os sacramentos; que o seu bastão pastoral simboliza a vigilância sobre o seu rebanho; que a cruz levada diante dele significa a vitória sobre todas as paixões humanas. Se ele pensar nestas coisas e em muitas outras, não viverá ele na tristeza e na ansiedade? Hoje, pelo contrário, estes pastores não fazem nada mais do que bem alimentar-se. Deixam o cuidado do rebanho ao próprio Cristo, ou aos denominados frades – irmãos – ou aos seus vigários. Esquecem que o seu nome de bispo significa trabalho, vigilância, solicitude. Estas qualidades servem-lhes para deitar a mão sobre o dinheiro, porque é então que eles abrem os olhos.”

LVIII-Da mesma forma, os cardeais poderiam pensar que são os sucessores dos Apóstolos, que lhes impõem a continuação do seu apostolado....”

LIX-Se os Soberanos Pontífices, que estão no lugar de Cristo, se esforçassem por o imitar na sua pureza, os seus trabalhos, a sua sabedoria, a sua cruz e o seu desprezo da vida, se meditassem sobre o nome de Papa, que significa Pai, e sobre o título de Santíssimo que se lhes dá, não seriam os mais desgraçados dos homens?... Quantas vantagens perderiam, se a sabedoria, um dia, entrasse neles! E nem sequer a sabedoria, mas um só grão de sal, desse sal de que falou Cristo! Tantas riquezas, honras, troféus, ofícios, impostos, indulgências, tantos cavalos, mulas, guardas, e tantos prazeres, vedes bem que tráfico, que seara, que oceano de bens eu fiz manter em poucas palavras! Era preciso repor no seu lugar as vigílias, os jejuns, as lágrimas, as orações, os sermões, o estudo e a penitência, mil desconfortos abomináveis. Que aconteceria também aos escriturários das bulas, aos notários, advogados, promotores, secretários, almocreves, palafreneiros, gerentes de hotel....Esta multidão imensa a cargo da Santa Sé ... seria reduzida à indigência. Seria pois desumano, abominável e infinitamente detestável que os grandes chefes da Igreja, verdadeiras luzes do mundo, voltassem ao cajado e à sacola. ...”

Vejamos, pois, como diversão domingueira, alguns excertos do “Auto da Feira” de Gil Vicente:

Um Serafim enviado por Deus entra na “Feira da Virgem”, onde, segundo o Tempo, se vende “o temor de Deus”, e “as virtudes”, embora este seja céptico quanto ao resultado, “porque agora os mais sabedores / fazem as compras na feira do Demo, / e os mesmos diabos são seus corretores”.

Serafim: «À feira, à feira, igrejas, mosteiros, / pastores das almas, Papas adormidos; / comprai aqui panos, mudai os vestidos, / buscai as samarras dos outros primeiros / os antecessores. / Feirai o carão que trazeis dourado; / ó presidentes do crucificado, / lembrai-vos da vida dos santos pastores / do tempo passado...»

Na mesma peça, o Diabo desempenha um papel equiparável ao da trocista Loucura, respondendo ao Serafim:

Diabo:Se eu fosse tão mau rapaz, / que fizesse força a alguém, / era isso muito bem (ir vender longe) / mas cada um veja o que faz, / porque eu não forço ninguém. / Se me vem comprar qualquer / clérigo, ou leigo, ou frade / falsas manhas de viver, / muito por sua vontade; / senhor, que lhe hei-de fazer?
E se o que quer bispar / há mister hipocrisia, / e com ela quer caçar; / tendo eu tanta em porfia, / porque lha hei-de negar?
E se uma doce freira / vem à feira / por comprar algum unguento, / com que voe do convento; / senhor, inda que eu não queira, / lhe hei-de dar aviamento.»


Responde ainda o Diabo a uma Roma que vem “à feira direita / comprar paz, verdade e fé”:

Diabo: A verdade para quê? / cousa que não aproveita, / e aborrece, para que é? / Não trazeis bons fundamentos / para o que haveis mister; / e segundo são os tempos, / assim hão-de ser os tentos / para saberdes viver. / E pois agora à verdade / chamam Maria peçonha / e parvoíce à vergonha, / e aviso à ruindade; / peitai a quem vo-la ponha, / a ruindade, digo eu: / e aconselho-vos muito bem, / porque quem bondade tem / nunca o mundo será seu, / e mil canseiras lhe vêm.
Vender-vos-ei nesta feira / mentiras vinte e três mil, / todas de nova maneira, / cada uma tão subtil, que não vivais em canseiras; / mentiras para senhores, / mentiras para senhoras, / mentiras para os amores, / mentiras que a todas as horas / vos façam delas favores.
E como formos avindos / nos preços disto que digo, / vender-vos.ei como amigo / muitos enganos infindos / que aqui trago comigo. »

Roma: «Tudo isso tu vendias, / e tudo isso feirei / tanto que ainda venderei, / e outras sujas mercancias, / que por meu mal te comprei.
Porque a troco do amor / de Deus, te comprei mentira, / e a troco do temor / que tinha da sua ira, / me deste o seu desamor: / e a troco da fama minha / e santas prosperidades, / me deste mil torpidades; / e quantas virtudes tinha / te troquei pelas maldades...»

E a Roma vai-se à banca do Tempo e Mercúrio tentando aliciá-los com a venda de indulgências, para obter a paz dos céus, mas é corrida no seu pecado de corrupção, pelo austero Serafim.

Os frades cortesãos, eis outras figuras vicentinas que o dramaturgo colheu no autor neerlandês, entre outras fontes da sua galeria de tipos sociais.

Outros escritores satirizaram o clero, e as suas perversões, ao longo dos tempos, Camilo, Eça, Júlio Dinis... Recordo, pela impressão que me causou, um livro que li na adolescência, “O Convento desmascarado”, às escondidas paternas.

No nosso tempo, outros mais são os motivos de crítica à actuação de alguns eclesiásticos, de tal maneira grave, que duvido mereça sátira.
Mas a minha amiga entende que bastaria condenação. Ela não entende o porquê da pedofilia merecer a protecção do mundo.

Nenhum comentário: