sábado, 31 de julho de 2010

Queria tanto viver!

António Feio! A minha amiga falou:
- Ele seria o primeiro a salvar-se desta doença. Não há memória, porque aqueles actores que recorrem a outros países também não escapam. Este tentou tratamentos em Londres e em Barcelona. Mas é igualzinho aos que não saem daqui. O pâncreas! É um órgão muito pequenino e muito escondido. O marido da minha vizinha teve um desmaio. Foi ao médico, nada de grave, ou antes, nada detectado, voltaram para casa. Afinal, fora o primeiro sintoma. Morreu, três meses depois. Ninguém escapa. António Feio conseguiu sobreviver mais de um ano ao prognóstico.
- Um extraordinário actor, cujo primeiro prémio lhe foi oferecido por um discípulo que o recebeu e lho deu espontaneamente, como merecedor maior. Devem ter-se sentido envergonhados os distribuidores de prémios, pelo lapso. E talvez não! Já estamos habituados.
- Olha o Victor Espadinha! Porque andará tão arredado dos palcos televisivos? Tantos actores na prateleira! Um país bem ingrato, este nosso.
- Ligamos sobretudo à beleza física, prezamos sobretudo os jovens actores e actrizes. E no entanto, a idade traz uma experiência ao nível de todas as profissões, é certo, não só dos actores, que a beleza da juventude só, não consegue suprir. Mas nós olhamos para os jogadores de futebol, vemo-los com o estatuto da excelência, na sua juventude, e como valorizamos esse desporto acima de tudo, generalizamos a condição de excelência a essa fase da vida.
- É! Pensamos com os pés. Pobre António Feio, que tão extraordinários momentos de humor nos apresentou, juntamente com o seu outro extraordinário actor e seu amigo, José Pedro Gomes!
- Eu lembro-me também da Irene Isidro, do encanto que senti em Lourenço Marques, quando lá foi com tantos outros actores – Costinha, Henrique Santana... – representar peças várias, bem cómicas, entre as quais “O Gato” – provocando gargalhadas de prazer pela excelência da actuação. Não sei se alguma vez recebeu algum prémio, aos actores talvez bastem os aplausos do público. Não era uma beleza, Irene Isidro. E, no entanto, quanto domínio na arte de bem representar! Nunca a pude esquecer.
- A Maria Dulce é outra! Bem melhor agora do que no tempo da Maria do “Frei Luís de Sousa”! Será que alguém a reconhece como tal?
- E voltamos sempre ao nosso Camões, que tanto foi também menosprezado: “Ditosa Pátria que tais filhos teve!” e, simultaneamente,
“O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a Pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Duma austera, apagada e vil tristeza.”
E assim, sempre. Uma lágrima sentida, por António Feio.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

A noticiazinha

A minha amiga hoje mostrou muito suspense na forma como projectou a transmissão da sua notícia, desfavorável ao ritmo cardíaco daqueles que a escutam, já suficientemente afectado pelas noticiazinhas diárias, sobretudo de desastres na marginal, incêndios próximos das terras de familiares, notícias das nossas aldrabices de povo aldrabão, mas ilibado judicialmente se pertencer às classes bem, enfim, o rumor das saias de Elvira, que é o rumor próximo, próprio para os nossos achaques mais desastrados na questão cardiológica. Disse ela, então, ontem, vibrantemente:
- Ouvi hoje uma noticiazinha que me encheu as medidas.
- Qual foi?
- E vai mudar o país.
Pensei em diamantes, petróleo, ouro, canela, marfim, florete de espadachim ... mas estranhei, a respeito dessa coisa da mudança, e desatei por meu turno a lançar provérbios a esmo, comprovativos de descrença, lembrando-me do Sancho Pança que de vez em quando também os lançava a Dom Quixote, não por descrença mas por esperteza malandra, que levavam o amo aos arames:
- Nada pode mudar o país, cada um é como é, e nós somos iguais a sempre, de pequenino se torce o pepino, mas a UE proibiu-nos os pepinos para torcer, gato que mia caça menos, por isso miamos, porque quem não chora não mama e nós preferimos mamar a caçar, a rico não devas e a pobre não prometas, cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso, quando o sol nasce não é para todos...
A minha amiga rejeitou as sentenças do meu trejeito enervado:
-Esta vai trazer muitos benefícios.
- Quais, afinal?
- Deve-se a um homem chamado Champalimaud.
- Eu logo vi que não era completamente nosso.
- Isso era! Portuguesíssimo de lei. Pode haver elementos genéticos estranhos à raça, mas foi um português riquíssimo e protegido, até pelo Salazar. Fez uma Fundação que se dedica à cegueira. Deixou a família rica mas também distribuiu pelos seus compatriotas. Ontem foi entrevistada a Beleza. Vai ser uma coisa extraordinária, inaugurada em Outubro, onde vêm os melhores cientistas. O país fica muito rico. Fundação para os cegos e para o cancro. Com o Tejo a seus pés, como eles disseram e o Sócrates vai ter a honra de inaugurar uma coisa tão útil e enriquecedora -
concluiu, agradada de que fosse Sócrates o sortudo, por já ter apanhado zargunchadas suficientes, mesmo sem ter o Tejo por perto.
Eu ainda quis retorquir com mais um provérbio – o “não há fumo sem fogo” das minhas desconfianças a respeito do nosso sortudo dos processos, mas virei as baterias antes, para o nosso sortudo maior, embora sem processos conhecidos - Mário Soares, só ares, no meu foro íntimo, concordante com as anedotas que nos circundam – para interrogar suavemente se a Fundação deste, não do dinheiro dele, mas do dinheiro de quem contribui, também se dedica a coisas daquele alcance humanitário e nacional.
Em resposta, a minha amiga confirmou que aqui há tempos lera o nome de um fulano que ganhara uma bolsa dessa Fundação.
- Ah! O alcance lá virá. Por enquanto está na posse do fundador, o grande sortudo do país dos “eu seja ceguinho se não é verdade”.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

“Pulhitiquices. Conhece?”

A minha amiga falou no calor, em resposta à sua falta de ideias para me ilustrar o espírito: “Eu ontem tinha tanto calor, tanto calor que tenho a impressão de que nada ouvi de expressivo. Estive na varanda ao fresco” - o que me deixou desolada, porque comigo foram outras as causas do meu vazio, tirando a referência que li, muito positiva para os nossos brios – e para os bolsos de algumas das entidades nacionais - acerca do ouro que o Salazar deixou, já a contar com a bancarrota futura, isto é, dos tempos que estamos a viver, mais os tempos que hão-de viver os nossos próximos.
Entretanto, sentou-se na mesa ao lado da nossa um jovem que a minha amiga conhecia. Fora aluno da minha escola, chegou ao curso superior, mas tinha quatro garrafas de cerveja à sua frente, às nove da manhã. Falou de livros, de literatura que disse conhecer, citou versos que disse ter feito, de uma sensibilite eivada de teorias de uma pseudo-racionalidade, na realidade pateticamente ocas, para impressionar, tal como a profusão vistosa de referências culturais.
A minha amiga escreveu no papel dos meus apontamentos, a disfarçar: “Aqui o grande problema é a cerveja”, segundo lhe contara uma amiga nossa que fora professora dele.
Não conseguimos atamancar as nossas referências, sobre as “pulhitiquices, conhece?”, da designação da minha desbocada amiga, a quem eu respondi que não conhecia, inocente que sou, e por isso ciente de que não me fugirá o Reino dos Céus - nem as referências sobre o processo da Casa Pia, mais uma vez piedosamente adiado – para Setembro, por enquanto – nem sobre o processo Freeport, também piedoso para o nosso PM, que se fartou de espumar razões coléricas sobre a sem-razão dos que vilmente e debalde o quiseram tramar, nem sobre a questão da PT que nós não percebemos, nem vale a pena tentar, para não ficarmos ainda mais enroladas em novos meandros da nossa pluralidade de meandros pulhitiqueiros.
O moço – bonito moço – nascido em Angola, contou anedotas racistas a que chamou de xenofobia, dizendo-se desde sempre marginalizado por ser preto. Mas não era preto. O seu pai fora um médico branco, ele fora aluno da minha escola, era um bonito rapaz que teve cinco empregos, em que falhara, culpando todos, e nunca a si próprio, que resvalara, por fraqueza própria.
Comentámos sobre o flagelo da bebida que destrói a nossa juventude, comentámos sobre o complexo da negritude, sobretudo entre as gentes que provêm de uma miscigenação criadora, sim, de esculturais belezas, lamentámos um mundo de pesadelos mas de beleza também, que o próprio moço reconheceu naquilo a que chamou um seu poema.
Mas sentimos pena, não por termos atravessado a vida olhando para trás de nós, como Caeiro, mas por não termos mais esperança na vida que nos está à frente. Por causa dos meandros. E dos copos de cerveja às nove da manhã.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Veraneios devaneios

Foi La Fontaine um fabulista
Muito machista.
Só, com efeito, um machista
Ou, mais modernamente,
Um anti-feminista,
Mesmo que não fosse fabulista
E apenas contador de anedotas,
- De tretas -
Poderia tirar a seguinte ilação
Por ocasião
Do afogamento, por acidente
Inconveniente
De uma mulher,
De que, só para contrariar
As leis do deslizamento,
Ou da precipitação,
O seu corpo afogado iria aparecer
Não a jusante mas a montante
Do rio,
E com isso se divertir,
Mais os papalvos da margem,
Vazios de coragem
Para a salvarem,
E só plenos de bobagem
Para lhe prejudicarem
A reputação.
Ora vejamos de seguida
A fábula que poderia
Também hoje ser vivida,
Tanto mais que estamos no verão,
Ocasião
De trágicos afogamentos,
Como já os havia
Quando La Fontaine vivia
E se divertia,
No fio do rio,
Embora ninguém se lembre hoje de troçar
Com os inúmeros afogamentos
De que constantemente
E implacavelmente
Somos informados.
Antes, ficamos arrepiados:

De La Fontaine: “A mulher afogada”

«Eu não sou daqueles que dizem: “Não é nada,
É uma mulher afogada.”
Eu digo que é muito; e que este sexo bem valeria
Que o lamentássemos, visto que faz a nossa alegria.
O que acabo de dizer não é desrazoável
Visto que se trata, nesta fábula,
De uma mulher que nas águas dum rio
Tinha acabado os seus dias
Num destino deplorável.
O esposo o corpo procurou
Para lhe prestar, nesta aventura,
As honras da sepultura.
Aconteceu
Que nas margens do rio,
Autor da sua desgraça,
Umas pessoas passeavam
Que ignoravam
O acidente.
Este marido, por isso, tendo-lhes perguntado
Se da sua mulher nenhum rasto haviam encontrado,
Um lhe respondeu:
“Nenhum, mas mais abaixo a procurai;
Segui do rio o fio.”
Um outro redarguiu:
“Não, não o sigais;
Mas, pelo contrário, atrás voltai.
Qualquer que seja o declive e a inclinação
Com que a água, pela sua corrente a vai levar,
O espírito de contradição
A fará doutra sorte flutuar.”

Este homem zombava com inconveniência
Sobre o humor de contradição
Da mulher.
Não sei se ele tinha razão
No seu parecer;
Mas este humor, quer seja ou não
Defeito do sexo e da tendência,
Quem com ele nascer,
Sem falta com ele irá morrer,
E até ao fim irá vivendo a contradizer,
Mesmo, talvez, para além,
No Além.»


Só quero com a minha conclusão,
Considerar
Quanto a mulher foi sempre menosprezada
Mesmo por La Fontaine que lhe justifica o ser
Ironicamente
Como uma espécie de bobo para o homem alegrar.
Mas hoje, mais do que nunca ela é maltratada,
Não pela troça mas pelo ódio,
Apesar das lutas feministas
Que a libertaram e lhe trouxeram
Uma aparência de igualdade,
O que não é verdade
Tendo em conta os crimes que se cometem
Quase diariamente
Na nossa sociedade,
Crimes cometidos por maridos
Que não aceitam a liberdade
Que as suas mulheres assumiram
Quando os deixaram,
Crimes de estarrecer
A provar que, mais que de compreensão e bondade
O homem, na sua paixão,
Se serve daquilo que tem mais à mão:
A força física como arma fatal
Ou a pistola que lhe deixaram ter.

domingo, 25 de julho de 2010

Sombras que passam

A minha amiga não é de modas e hoje estava com os azeites todos. Só porque lhe perguntei se vira o “Eixo do Mal”. Largou logo em avalanche:
- Eu nunca mais vi nada. Eu não sei como é que eles ainda lá estão, porque eles são pagos para que os ouçam, mas eles gostam sobretudo de se ouvir a si próprios. Eles às tantas acham que não são pagos para sermos nós a ouvi-los. Eu julgo que sim, até são muito bem pagos. Não sei se é assim, se é aquilo que lhes pedem, mas nós é que temos que estar atentos, para captar as suas mensagens que cada um atropela mais que o outro, na galhofa ou na disputa, que eles bem se riem e se fartam de gozar, com o panorama que a gente, pobre gente, lhe oferece.
- Gentinha, emendo eu, ressabiada com o desprezo que o elemento feminino do grupo projecta, com muita competência, aliás, sobre nós, os passivos, por falta de qualidade cultural da nação, que se limita a vuvuzelar, precocemente vuvuzelante, ou a caricaturar ou a contar anedotas para melhor sacanear quem nos e se está a governar.
- Então mas não falaram sobre a belíssima situação económica de quatro bancos portugueses, comunicada lá pelas sumidades da Europa?
- Não, que me lembre, falaram dos governantes, em chufas contra o Cavaco, que tem atitudes que se prestam a isso, do Passos Coelho, uns porque sim, outros porque não, falaram de ignorância de conhecimento político do Coelho e da gentinha, mais ou menos defensores do Sócrates, agora, embora também lhe reconhecendo deficiência de mestria política, mas achando que o Coelho também não vai lá, que virão os do contra de agora contra o Sócrates, virar-se contra o Coelho, futuramente, caso ele tenha veleidades de subida ao trono, e a gentinha não se aperceba do desastre bem apessoado que ele é. Enfim, já se está a ver o panorama, mais um/uns ambicioso/s para descascar o que resta da casca da nação, velho sobreiro da sombra da nossa preguiça, cada vez mais carcomido e despido de folhagem. Mas isso é verdade, essa coisa da boa situação financeira dos bancos?
- Não, aquilo é mentira. Veja o que diz o Louçã. Não teve medo de vir desmentir isso com todas as letras.
- Mas como se pode falsear assim?
- A situação estável?! Como?! Ele fala nos quatro buracos. Não está doido! Qual das versões é mais fiável? Só mentiras, mas os bolsos de alguns a abarrotar.
- E nós aqui, sombras inúteis, como todos esses críticos, aliás. Sombras que passam, e nada mais, diria a Lenita Gentil. Nada Mais.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

“O Corvo e a Raposa”

Esopo foi o primeiro
Que tratou o tema do adulador,
Um ser bem traiçoeiro
Que se serve da fraqueza
De quem precisa de ser elogiado
Para se sentir realizado,
Com muita insegurança e receio
Pelo meio.
Seguiu-se-lhe Fedro, do século primeiro
Que o imitou mas um pouco alterou,
Escolhendo o queijo em vez da carne
Para repasto do corvo
E pondo a raposa a falar
Como psicóloga acabada
Para melhor representar.
Também La Fontaine mudou
O teor da sua história,
Usando a forma dramática
Com personagens vivas e sentimentais
Que nem pareciam os animais
Dos fabulistas originais,
Parecendo seres reais
E sempre muito actuais!

Eis as fábulas, pois:

A fábula segundo Esopo:

“Depois de um pedaço de carne ter roubado
Um corvo numa árvore se pendurou.
Uma raposa o avistou.
Desejando da carne apoderar-se,
Diante dele veio postar-se
E pôs-se a elogiar-lhe a elegância
E o porte de qualidade;
Para mais, nenhum outro pássaro merecia
Mais do que ele, a realeza
Que sem dúvida obteria
Se a sua voz fosse de igual beleza.
O corvo, para lhe provar
Que tinha uma voz capaz
Para a realeza adquirir,
A carne deixou cair
E pôs-se a crocitar
Com muita firmeza.
Então a raposa vá de se precipitar,
Para a carne apanhar,
E assim lhe dizer:
Ó corvo, tivesses tu bons miolos
E nada te faltaria
Para reinares em alegria.
Esta fábula aplica-se aos tolos.

A mesma, segundo Fedro:

Como desejasse um queijo comer,
Por um postigo roubado,
Um Corvo, em alta árvore empoleirado,
Por uma raposa foi assistido

Que começou a dizer:
“- Oh! quanto é grande o brilho das tuas penas!
Quanto encanto, ó Corvo,
No corpo e no rosto andas mostrando!
Tivesses tu voz, ave nenhuma
Em suma,
Te seria superior!”
Mas ele, estulto, a voz desejando

Revelar,
Da boca o queijo soltou,
Que, nos dentes a raposa apanhou
Ávida e astuciosa
Como só a raposa

Sabe ser.
Somente então o pasmo do Corvo desiludido
O fez gemer.

A mesma, segundo La Fontaine:

Mestre Corvo, no seu poleiro
Em cima duma árvore,
Que poderia ser um pinheiro,
Tinha no bico um queijo.
Atraída pelo cheiro,
Dona Raposa,
Maliciosa,
Este discurso lhe fez,
Com o seu ar benazejo:
- “Bom dia, Senhor Corvo!
Como sois bonito
E pareceis radioso!
Na realidade,
Sem falsear a verdade,
Se o vosso canto trinado,
Se parecer com a formosura
Da vossa figura,
Sereis
A fénix dos hóspedes
Deste bosque encantado.
A estas palavras o Corvo, fremente,
Mal cabe em si de contente.
E para mostrar a voz de tal beleza,
Abre o bico com firmeza
E deixa imediatamente
Cair a presa.
A raposa, ágil como uma fera,
Dela se apodera
Dizendo: “Meu bom Senhor,
Sabei que todo o lisonjeiro
Vive à custa de quem o escuta
Com fervor.
Esta lição vale perfeitamente
Um queijo, sem desprimor.
Confuso e envergonhado
O Corvo jurou, embora tardiamente,
Que noutra não voltaria

A cair tão tolamente.


Na nossa fábula de agora
Mais ainda do que outrora
Há quem prefira a carne
Há quem o queijo pretenda
Há quem se deixe tentar
Pelo caviar.
Os pratos são variados
Bem ou mal confeccionados.
Mas as vozes superiores
São as dos tentadores,
Tartufos bons comedores,
E bons aproveitadores
Das fraquezas e vaidades
Dos donos das propriedades.
Nem vale a pena esmiuçar
Tão conhecida é a fábula,
E fácil de exemplificar,
Exercício de tradução,
Meramente de razão,
Para proporcionar prazer
A quem se quiser entreter
A ler.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

O queijo

Foi na rádio que ouvi pela primeira vez que Angola ia pagar a Portugal, a curto prazo, às pequenas e médias empresas, a longo prazo, às empresas grandes a quem devia.
Era esse o resultado da visita do nosso venerando PR, que para lá se fez acompanhar de largo séquito de empresários portugueses, não sei se para angariar mais empresas angolanas, se para angariar os pagamentos em débito do governo de Angola ao governo português.
Levei a notícia à minha amiga, que a absorveu a haustos de grata e grada surpresa, na vibração ansiosa de quem deseja o melhor para nós, portugueses, dentro de uma linha de honestidade a eles, angolanos, imputável, bons alunos dos nossos velhos ensinamentos de ocidentais civilizados.
Entretanto, ao chegar a casa, olhei a página de Economia do Expresso, e li lá, escarranchados, alguns garrafais subtítulos informando que Angola iria pagar a Portugal com o dinheiro que Portugal ia previamente emprestar a Angola.
Telefonei à minha amiga, para desfazer as falsas impressões optimistas por mim colhidas no noticiário da rádio e logo difundidas junto dela, e por nós ambas tontamente exploradas com regozijo no café matinal, e regressarmos à realidade comezinha da nossa modéstia pátria, em pátria de tal modo modesta e complexada que a cada passo inventa estratégias para continuar a iludir, fingindo importância que ninguém lhe reconhece, nem mesmo os angolanos que queremos forçosamente que sejam nossos irmãos, enquanto eles se alcunham de povo colonizado e oprimido dantes, para poderem armar em colonizadores opressores agora e não pagarem o que devem, mesmo precisando de nós, por conta do afecto e da língua dantes angariados, e só agora por nós docemente reconhecidos, por conveniência própria nossa.
Concluímos, a minha amiga e eu, que bem podemos equiparar-nos aos bichos da fábula do Esopo, do Fedro e do La Fontaine – a raposa e o corvo - este o que tem o queijo no bico, aquela a que o elogia, mandando-o cantar para provar que é o máximo, aliando a voz à bela plumagem.
Nós queremos ser a raposa aliciadora, os angolanos serão o corvo imbecil, que abre o bico e larga o queijo.
Mas os angolanos não vão nessa, que prezam muito o seu queijo e a sua voz define-se bué diferentemente daquilo que imaginamos no nosso próprio interesse.
Teremos, forçosamente que enfiar o barrete das uvas verdes, de outra triste fábula de desaire para a raposa matreira.

Oração das trovoadas

De repente, ouço a minha Mãe entregue aos seus devaneios evocativos:

S. Gregório se levantou
E o sapatinho calçou
Nossa Senhora o encontrou
E lhe perguntou:
-P’ra onde vais tu, S. Gregório?
- Vou derrubar estas trovoadas
Que por cima de nós andam armadas.
- Então derruba-as bem derrubadinhas
Lá p'ra Castro Marim,
P’ra onde não haja pão nem vinho,
Nem leira nem beira,
Nem raminho de figueira
Nem pedra de sal
Nem coisa que faça mal.

- Maio era o mês das trovoadas. Agora não troveja. Porque será? Tínhamos muito medo e as cabras também, vinham para junto de nós.
E a minha Mãe chora, lembrando as cabrinhas assustadas, correndo para junto das guardadoras dos rebanhos.
- Agora já não há primavera!
- O clima está muito diferente do da nossa infância! - é a minha irmã que confirma.
Mas eu julgo que as trovoadas mudaram de poiso, não sei se por artes mágicas do S. Gregório. E mudaram de carisma, que as de agora não deixam de ser assustadoras. Recordo os comentários da minha amiga, há alguns dias, quando falávamos do nosso caos:
- A droga é culpada. A droga estragou o mundo. Se tivesse aparecido em determinados países! Mas não, ela apareceu no mundo. Essa é o principal factor...
- Até da corrupção das mentes, sugiro.
- Mas a droga ajuda a isso tudo. Quando se diz: “Não tem nada lá dentro”, os traficantes, os que produzem, depois os outros que a consomem, não servem para nada nem para ninguém. Em Quelimane conheci alguns. Mas foi há trinta e cinco anos que ela se expandiu pelo mundo, Europa, países do Oriente... E assim se vão destruindo gerações. É esse o drama do mundo. Armas, guerra, terrorismo, tudo horrível! Mas o que leva a isto é a droga. É preciso dinheiro. E o dinheiro vai-se buscar aí.
Lembrei o petróleo, como factor de guerra, mas relacionou-o também com a droga.
- Agora, falando em dinheiro: a Céu anda preocupada com o dinheiro que o marido tem num banco. Há algum banco seguro? Já se anda a falar muito em bancos. Quatro bancos a caminhar para a falência! Agora o que é que acontece a um país onde os bancos vão à falência?
- Rezemos a S. Gregório, para que ele calce o sapatinho e vá derrubar as trovoadas de agora, como derrubava as de outrora, com o apoio de Nossa Senhora, mandando-as para onde não haja as coisas essenciais à vida – pão, vinho, sal...
Mas acho que antigamente era mais fácil, não só porque havia o apoio voluntário e gratuito de Nossa Senhora, mas porque as coisas essenciais à vida eram muito diferentes das de hoje.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Maria de Lurdes Rodrigues, uma contribuinte para a galeria queirosiana

O problema da Educação é um dos que aflige as consciências daqueles que, desejando para este país uma vida cultural que definitivamente nos arrancasse dos rótulos de caricatura que Eça colou aos habitantes deste país, através dos seus tipos sociais, que, com variantes, se fixaram no “lugar comum” dos Gouvarinhos ou dos Conselheiros Acácios, fanfarrões e sebosos – intelectualmente falando – pelo seu discurso rigidamente convencional segundo os dogmas de uma preparação cultural fechada à inovação, o “resto da paisagem” social embrutecido quer na pelintrice da secretaria, quer na sordidez pacóvia do seu analfabetismo unicamente vergado sobre a rabiça do arado.
Critica-se bastante Salazar, ao reduzir as suas propostas de ensino obrigatório a um primarismo que deixou muito do nosso povo na tacanhez da sua ignorância, pois que o trabalho sempre mal retribuído, não permitia uma continuidade escolar que o livrasse da teia de obscuridade em que sempre vegetou, os filhos e as filhas necessários à lavoura ou a outros trabalhos das artes paternas, pese embora o apodo de “exploração do trabalho infantil” com que as sensibilidades do nosso tempo o alcunharam. Mas Salazar não construiu só escolas primárias, e o ensino que se fazia nos liceus, nas escolas técnicas, nas universidades, era rigoroso e exigente, impondo estudo, testado em exames, na escola primária, no ensino secundário, no ensino superior.
O 25 de Abril trouxe reformas, reformas no ensino de que a mais brutal foi a da permissividade descontrolada, geradora de uma indisciplina criminosa e cada vez mais destituída de um horizonte cultural sério, a que instrumentos facilitadores do ensino cada vez mais favoreciam a indolência e a prevaricação.
As reformas foram-se fazendo e, como coroa de glória para o governo de Sócrates, além dos magalhães do seu despudor e desonestidade, uma ministra impôs alterações no processo de avaliação de professores e alunos, a pretexto de um rigor que não existia dantes, segundo se disse, que mergulhou o ensino cada vez mais no vazio e no caótico de exigências acéfalas que retiraram a uns e a outros tempo para a autenticidade do estudo, quer para ensinar, quer para aorender.
A ministra saiu, outra entrou, as alterações no “ensino” continuam a fazer-se, agora fala-se em “agrupamentos” de escolas, outra aberração com que o mesmo Sócrates continua a arrumar maquiavelicamente a sua casa de brinquedo, e a burlar quem o permite, que somos todos nós que não nos opomos à sua brincadeira.

Mas o assunto é dramático, já várias vezes tenho erguido a voz, neste mero espaço de blog, para gritar um desacordo que ninguém ouve nem lê, passivos que somos à brutalidade de quem o comanda.
Chegou-me por email o texto que segue, sobre uma ex-ministra que lançou o livro da sua glória. É de Santana Castilho, certo e profundo para quem o quiser gravar. Eu permito-me gravá-lo no meu blog, contente por reconhecer a coragem e o talento de uma pessoa que merece ser atendida. O país merece ser atendido. Não é só desmascarar. É preciso coragem para o libertar.

07-07-2010
"A solidez de um livro, segundo Sobrinho Simões", por Santana Castilho

"No livro que acaba de lançar, Maria de Lurdes Rodrigues cita Max Weber para justificar a sua acção política, movida, diz ela, pela “ética das convicções”. Atentem, generosas leitoras e leitores, ao naco de prosa que a ex-ministra escolhe para caracterizar quem tem vocação para a política (no caso, ela própria):
“… Só quem está certo de não desanimar quando… o mundo se mostra demasiado estúpido ou demasiado abjecto para o que … tem a oferecer … tem vocação para a política …” (in A Escola Pública Pode Fazer A Diferença, p.18)
Freud ensinou-nos que nenhuma palavra ou pensamento acontecem por acidente. Uma coisa são os erros comuns, outra, os actos falhados. É falhado o acto que leva Maria de Lurdes Rodrigues a citar, assim, Weber, para justificar a sua acção política. E fez tudo o que fez, confessou-nos no circo do lançamento, com grande alegria, qual pirómana que se baba de prazer ante as cinzas da escola pública que deixou.
Eis as entranhas de uma coisa que não é pessoa, que não tem alma, e que não aguenta mais que 18 páginas para dizer, de modo obsceno, o que pensa dos que esmagou com sofrimento.
O livro é híbrido e frio, como a autora. É um relatório factual e burocrático sobre as suas tenebrosas medidas de política educativa. A excepção a este registo está na introdução, um arremedo ensaísta de alguém que chegou a ministra sem nunca ter percebido o que é uma escola e para que serve um sistema de ensino. Permitam-me duas notas factuais a este propósito e a mero título ilustrativo:
1. A autora introduz, como grande tema de debate sobre políticas educativas, o nível de conhecimentos adquiridos na escola. Interroga-nos assim: “… Os adultos que fizeram a quarta classe da instrução primária no tempo dos nossos avós sabiam mais do que os jovens que hoje concluem o 9.º ano? …” (obra citada, p.11). A questão é intelectualmente pouco honesta. Porque compara quatro anos de escolaridade com nove. Porque é formulada por alguém que contribuiu definitivamente para que não se possam hoje comparar resultados escolares, coisa que, apesar das dificuldades, se podia fazer na época a que alude.
2. A ex-ministra diz que não fez uma reforma da educação, que tão-só concebeu e aplicou medidas. Se é surpreendente o conceito (“reforma” foi palavra-chave citada até à exaustão na vigência do Governo que integrou), entra em delírio surrealista quando escreve (p.15): “… Não se pode considerar que o conjunto das medidas configurem uma reforma da educação, porque de facto não foi introduzida uma mudança nos princípios de funcionamento do sistema educativo, ou uma mudança na sua estrutura e organização …”. Não mudou princípios de funcionamento do sistema educativo, nem mudou a sua estrutura e organização? E os estúpidos somos nós? Enxergue-se e tenha decoro.
Segue-se o Diário da República narrado aos papalvos por 20 euros e 19 cêntimos. Registam-se apoios, listam-se colaboradoras e colaboradores e referem-se reuniões. Nenhuma dúvida, nenhum apreço pelo contraditório que lhe foi oposto, muito menos qualquer riqueza dialéctica. Um deserto, numa imensa auto-estrada de propaganda.
Ao longo dos últimos cinco anos, fundamentei nesta coluna de opinião a oposição a cada uma das 24 medidas que o livro distingue, pelo que tão-só recordo as mais emblemáticas das que a autora refere: a aberração pedagógica e social, que nacionalizou crianças e legitimou a escravização dos pais, baptizada como “escola a tempo inteiro”; o logro do ensino profissional (Maria de Lurdes fala de 28.000 alunos em 2005, para dizer que os quadruplicou em 2009. Mas conta mal.
No ano lectivo de 2004-05 tinha 92.102 alunos no conjunto dos cursos que ofereciam formação profissional); a demagogia de prolongar para 12 anos o ensino obrigatório (na Europa a 27 só cinco países foram por aí) sub-repticiamente sustentada pela grosseira manipulação estatística que lhe permite afirmar que no ensino secundário temos um professor para cada 8,4 alunos (p.90), pasmem quantos conhecem a realidade; a insistência no criminoso abandono de milhares de crianças com necessidades educativas especiais, por via da decantada aplicação da Classificação Internacional de Funcionalidade; a engenharia financeira e administrativa (depois veremos aonde nos conduzirá), que está a transferir para a propriedade de uma empresa privada, por enquanto detida pelo Estado, todo o património edificado; e, “the last, but not the least”, a fraude pedagógica imensa que dá pelo nome de Novas Oportunidades, forma de diplomar a ignorância na hora, gerando injustiça e semeando ilusões.
Na cerimónia do lançamento do livro que acabo, sumariamente, de analisar, Sobrinho Simões, um cientista de grande gabarito e um homem de muitos méritos, referiu-o como “o mais sólido” que leu até hoje. Quem dedicou a vida a combater o cancro com o rigor da ciência não podia, estou seguro, afirmar o que afirmou, se tivesse analisado a produção técnica e legislativa que sustenta a racionalidade do livro que elogiou. Mas a vida actual é assim. Muitos sucumbem, adaptando-se a esta sociedade doente. Continuo felizmente de saúde. Por isso choro quando vejo cair os melhores. Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)"

Eis o texto de Santana Castilho, uma página forte que merece ser meditada e atendida. Mas Lurdes Rodrigues socorre-se, ao que parece, de Weber, como apoio da sua acção e importância política. Leio na Internet que “Weber definiu o Estado como "uma entidade que reivindica o monopólio do uso legítimo da força física", uma definição que se tornou central no estudo da moderna ciência política no Ocidente".
Não se estranhem, assim, as depressões e doenças fortes de que muitos professores – que eram excelentes professores – passaram a sofrer com a brutalidade de uma reforma que tem por objectivo não a formação de cidadãos futuros, mas a extorsão de cidadãos presentes. Por conta da crise será.

domingo, 18 de julho de 2010

Encomium Moriae, 21 – “Pastores de Almas”

Quando Gil Vicente escreveu o seu "Auto da Barca do Inferno" em 1517, o “Auto da Barca da Glória” em 1519, o “Auto da Feira”, em 1527, “Romagem de Agravados” em 1533, tinha, naturalmente, conhecimento da obra de Erasmo, que, visando um ideal de pureza cristã, fez despoletar o movimento reformista na Europa de Quinhentos.
O sentido da sua crítica nestes vários Autos, de que o da Feira é, talvez, o de maior virulência satírica a uma Igreja faustosa, desviada do trilho da simplicidade primitiva, encontrou-o no modelo de pensamento teórico de Erasmo, nos seus “Colóquios”, no “Elogio da Loucura”.
A partir do capítulo LVII deste último livro, é sobre os altos cargos pontifícios e sobre a Igreja em si que se debruça a Loucura. Porque hoje é domingo, vou pôr ponto final na leitura da obra, que tanto aprofundamento merece, nos seus 68 capítulos, pelo impacto que provocou sempre, citando apenas breves excertos, seguidos de outros do nosso dramaturgo primeiro, para diversão própria, certamente, mas da minha amiga também, companheira generosa nas sugestões críticas da nossa bica palreira.

LXII- «Dignos rivais dos Príncipes, eis os Soberanos Pontífices, os cardeais e os bispos. Eles quase que os ultrapassam. Que um dentre eles, contudo reflicta, verá que a sua bela sobrepeliz, branca como a neve, é o emblema duma vida sem mácula; que a sua mitra de dois cornos unidos por um mesmo nó pressupõe o conhecimento igual e aprofundado do Novo e do Antigo Testamento; que as luvas com que cobre as mãos indicam que deve ser puro de toda a sujidade para administrar os sacramentos; que o seu bastão pastoral simboliza a vigilância sobre o seu rebanho; que a cruz levada diante dele significa a vitória sobre todas as paixões humanas. Se ele pensar nestas coisas e em muitas outras, não viverá ele na tristeza e na ansiedade? Hoje, pelo contrário, estes pastores não fazem nada mais do que bem alimentar-se. Deixam o cuidado do rebanho ao próprio Cristo, ou aos denominados frades – irmãos – ou aos seus vigários. Esquecem que o seu nome de bispo significa trabalho, vigilância, solicitude. Estas qualidades servem-lhes para deitar a mão sobre o dinheiro, porque é então que eles abrem os olhos.”

LVIII-Da mesma forma, os cardeais poderiam pensar que são os sucessores dos Apóstolos, que lhes impõem a continuação do seu apostolado....”

LIX-Se os Soberanos Pontífices, que estão no lugar de Cristo, se esforçassem por o imitar na sua pureza, os seus trabalhos, a sua sabedoria, a sua cruz e o seu desprezo da vida, se meditassem sobre o nome de Papa, que significa Pai, e sobre o título de Santíssimo que se lhes dá, não seriam os mais desgraçados dos homens?... Quantas vantagens perderiam, se a sabedoria, um dia, entrasse neles! E nem sequer a sabedoria, mas um só grão de sal, desse sal de que falou Cristo! Tantas riquezas, honras, troféus, ofícios, impostos, indulgências, tantos cavalos, mulas, guardas, e tantos prazeres, vedes bem que tráfico, que seara, que oceano de bens eu fiz manter em poucas palavras! Era preciso repor no seu lugar as vigílias, os jejuns, as lágrimas, as orações, os sermões, o estudo e a penitência, mil desconfortos abomináveis. Que aconteceria também aos escriturários das bulas, aos notários, advogados, promotores, secretários, almocreves, palafreneiros, gerentes de hotel....Esta multidão imensa a cargo da Santa Sé ... seria reduzida à indigência. Seria pois desumano, abominável e infinitamente detestável que os grandes chefes da Igreja, verdadeiras luzes do mundo, voltassem ao cajado e à sacola. ...”

Vejamos, pois, como diversão domingueira, alguns excertos do “Auto da Feira” de Gil Vicente:

Um Serafim enviado por Deus entra na “Feira da Virgem”, onde, segundo o Tempo, se vende “o temor de Deus”, e “as virtudes”, embora este seja céptico quanto ao resultado, “porque agora os mais sabedores / fazem as compras na feira do Demo, / e os mesmos diabos são seus corretores”.

Serafim: «À feira, à feira, igrejas, mosteiros, / pastores das almas, Papas adormidos; / comprai aqui panos, mudai os vestidos, / buscai as samarras dos outros primeiros / os antecessores. / Feirai o carão que trazeis dourado; / ó presidentes do crucificado, / lembrai-vos da vida dos santos pastores / do tempo passado...»

Na mesma peça, o Diabo desempenha um papel equiparável ao da trocista Loucura, respondendo ao Serafim:

Diabo:Se eu fosse tão mau rapaz, / que fizesse força a alguém, / era isso muito bem (ir vender longe) / mas cada um veja o que faz, / porque eu não forço ninguém. / Se me vem comprar qualquer / clérigo, ou leigo, ou frade / falsas manhas de viver, / muito por sua vontade; / senhor, que lhe hei-de fazer?
E se o que quer bispar / há mister hipocrisia, / e com ela quer caçar; / tendo eu tanta em porfia, / porque lha hei-de negar?
E se uma doce freira / vem à feira / por comprar algum unguento, / com que voe do convento; / senhor, inda que eu não queira, / lhe hei-de dar aviamento.»


Responde ainda o Diabo a uma Roma que vem “à feira direita / comprar paz, verdade e fé”:

Diabo: A verdade para quê? / cousa que não aproveita, / e aborrece, para que é? / Não trazeis bons fundamentos / para o que haveis mister; / e segundo são os tempos, / assim hão-de ser os tentos / para saberdes viver. / E pois agora à verdade / chamam Maria peçonha / e parvoíce à vergonha, / e aviso à ruindade; / peitai a quem vo-la ponha, / a ruindade, digo eu: / e aconselho-vos muito bem, / porque quem bondade tem / nunca o mundo será seu, / e mil canseiras lhe vêm.
Vender-vos-ei nesta feira / mentiras vinte e três mil, / todas de nova maneira, / cada uma tão subtil, que não vivais em canseiras; / mentiras para senhores, / mentiras para senhoras, / mentiras para os amores, / mentiras que a todas as horas / vos façam delas favores.
E como formos avindos / nos preços disto que digo, / vender-vos.ei como amigo / muitos enganos infindos / que aqui trago comigo. »

Roma: «Tudo isso tu vendias, / e tudo isso feirei / tanto que ainda venderei, / e outras sujas mercancias, / que por meu mal te comprei.
Porque a troco do amor / de Deus, te comprei mentira, / e a troco do temor / que tinha da sua ira, / me deste o seu desamor: / e a troco da fama minha / e santas prosperidades, / me deste mil torpidades; / e quantas virtudes tinha / te troquei pelas maldades...»

E a Roma vai-se à banca do Tempo e Mercúrio tentando aliciá-los com a venda de indulgências, para obter a paz dos céus, mas é corrida no seu pecado de corrupção, pelo austero Serafim.

Os frades cortesãos, eis outras figuras vicentinas que o dramaturgo colheu no autor neerlandês, entre outras fontes da sua galeria de tipos sociais.

Outros escritores satirizaram o clero, e as suas perversões, ao longo dos tempos, Camilo, Eça, Júlio Dinis... Recordo, pela impressão que me causou, um livro que li na adolescência, “O Convento desmascarado”, às escondidas paternas.

No nosso tempo, outros mais são os motivos de crítica à actuação de alguns eclesiásticos, de tal maneira grave, que duvido mereça sátira.
Mas a minha amiga entende que bastaria condenação. Ela não entende o porquê da pedofilia merecer a protecção do mundo.

sábado, 17 de julho de 2010

Encomium Moriae, 20 – “Sicut erat”

É acerca dos Cortesãos que versa o capítulo LVI de “Elogio da Loucura”, em traços tão verrinosos, que não resisto a traduzir, na constatação da perenidade do retrato humano, e do desassombro crítico de Erasmo, com os antecedentes clássicos pesando no seu texto, pejado de referências consagradas – o que nos leva mais longe ainda na mesma constatação de escassa evolução da mente e sensibilidade humanas, mudadas, embora, as circunstâncias trazidas pelo progresso:

LVI- “Que direi das Gentes da Corte? Não há nada mais rasteiro, mais servil, mais estulto, mais vil do que a maior parte deles, e eles não pretendem menos do que o primeiro lugar em toda a parte. Num ponto apenas são muito reservados; contentes por cobrirem o corpo de pedrarias, púrpura, e os diversos emblemas das virtudes e da sabedoria, eles deixam a outros a prática daquelas. Toda a sua felicidade consiste em terem o direito de chamar ao rei “Majestade”, saberem saudá-lo em três palavras, prodigalizar títulos oficiais onde é questão de Serenidade, de Soberania, de Magnificência. Com elas enlambuzam o focinho, recreiam-se na adulação; tais são os talentos essenciais do nobre e do cortesão.
Se olhardes mais de perto, vereis que eles vivem como verdadeiros Feácios, como pretendentes de Penélope; conheceis o fim do verso que Eco vos dirá melhor do que eu. Eles dormem até ao meio dia; um seu padreco assalariado, que espera ao lado da cama, engrola-lhes, mal se levantem, uma missa apressada. Acabado o almoço, o jantar os chama. Depois, são os dados, o xadrez, os adivinhos, os bobos, as mulheres, os divertimentos e as conversatas. A meio, uma ou duas colações; depois, sentam-se novamente à mesa para a ceia, seguida das libações. Desta maneira, sem risco de aborrecimento, transcorrem as horas, os dias, os meses, os anos, os séculos. Eu própria deixo com desgosto estas altas personagens, que se julgam da elite dos Deuses, e se imaginam mais perto deles quando arrastam uma cauda maior. Os grandes, ao desafio, abrem passagem às cotoveladas, para chegarem mais próximos de Júpiter, não aspirando senão a balancear ao pescoço uma corrente mais pesada, alardeando assim, ao mesmo tempo, a força física e a opulência.»

A minha amiga, contudo, encontrou muitas anomalias, muitos anacronismos no retrato apresentado, só simbolicamente aceite como paralelo. As diferenças são mais que muitas, agora não é só comer, dormir e fruir. Também se vive de maquinações e de intrigas, secundados pelos jornalistas, os paparazzi, construtores de mitos. Ainda se repetem, em eco, as doutrinas do chefe, mas pratica-se mais desporto e o próprio PM dá o exemplo, com os seus percursos pedestres antistressantes, que poucos imitadores terá, todavia, e é por isso também que ele se diz sozinho, a puxar, mas sem stress, enquanto os acólitos se empenham com cotovelos e stress, para se chegarem à mesa da pátria, sem precisarem de padre engrolando missas à pressa, pois não há consciência de culpa.
A propósito do desporto dos acólitos, lembrámos até o ex-ministro Deus Pinheiro, no tempo em que se considerava Deus, embora, na altura, fosse apenas deputado europeu, a contar ao Herman José o seu caso pessoal de pessoa saliente e invejada, por, bon vivant, ainda que sem pedrarias à vista, numa pose de simplicidade camarada, ter conversas com outros deputados estrangeiros. Os companheiros, invejosos, viam-no bichanar e imaginavam quão altas seriam as conversas, talvez sobre complicados meandros da desorientada política nacional que poderia querer resolver, em inteligente discurso dedutivo ou, mais ao nosso jeito, pela cunha da nossa humildade. Radiante, explicou ao Herman que aquilo sobre que bichanavam ele e o deputado nórdico, eram apenas as tacadas no golfe, que ambos praticavam.
Não é, pois, como antigamente, digo bem. Agora contam-se as historiazinhas dos nossos gozos existenciais aos apresentadores televisivos, além de se escreverem autobiografias sobre as nossas existências de sucesso.
Julgamos, no entanto, que quem paga tudo isso é quem serve. Já era assim, e nisso não não mudámos. Intemporal.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Encomium Moriae, 19 - “Eu também sabia essa!”

- Ele descobriu essa!
- Quê? Quando? Onde? Como? Porquê? – larguei, de jorro, os advérbios das minhas dúvidas, na distracção do meu queque, sem reparar que a minha amiga, que estava embrenhada no Destak, conscienciosamente extraído do escaparate do Pingo Doce, de repente se punha a arremedar a voz séria, suave e surda do nosso suspiroso PR:
- O quê? Que devíamos exportar mais! “E esta hein?”, diria o coiso.
- Fernando Pessa, esclareci severamente, incomodada com a designação pejorativa, mais adequada à nossa infância escassamente informada.
- Ó pá! Isto mete-me tanta raiva! - E imita a voz, que apelida de salazarista: “Há muito tempo que eu ando a insistir que é preciso criar riqueza! Temos que exportar mais!”. Sabia essa?
- Mas foi isso quando?
- Creio que foi ontem.
- Onde?
- Num dos canais. Talvez na Sic!
- Como?
- Nem sei se num dos apontamentos de rua, junto dos jornalistas curiosos. Ou do povo alarmado.
- Então porquê?
- Ora porquê! Trata-se da conjuntura. Hoje toda a gente fala no desaire económico, em entrevistas a torto e a direito. Vem agora o PR falar em exportação! Eu tenho o costume, no supermercado, de ver donde vêm as coisas. Até as agulhas e as linhas vêm de fora! Mas a estas pessoas a comida aparece-lhes na mesa. Não vêem as embalagens!
- É! O PR tem essa mania de se dizer preocupado com o status quo. Mas nada faz para o melhorar. Não se mete nas coisas do Governo, pois tem que defender cuidadosamente o seu governo próprio, as suas três reformas. Não mostra interesse em exigir menos corrupção, não mexe uma palha para equilibrar os desequilíbrios sociais e económicos, ele próprio pertencente aos que ajudam a balança a pender.
- Sim, a ele não lhe convém entrar em fricção. Se quer continuar no lugar...
- Ah! Pois quer! E vai! Que ele sabe que não há outro!
- Mesmo assim, suspiroso!...
- Pois é! Os presidentes! E os príncipes! E os reis! Também o Erasmo acerca destes escreveu, no capítulo LV do seu “Elogio da Loucura”, depois de ter percorrido ironicamente, os tolos que se entretêm com histórias de milagres (XL), os santos (XLI), os titulares vaidosos (XLII), as nações e as cidades levados pela Filáucia(XLIII), os que se deixam levar pela Lisonja, porque é mais fácil aceitar a mentira do que a verdade (XLIV, XLV). Nos capítulos XLVI – LIV, reivindica a Loucura as vantagens da sua actuação entre os homens que lhe não prestam culto suficiente, e exemplifica com os Poetas, os Gramáticos, os Escritores, os Jurisconsultos, os Filósofos, os Teólogos, os Religiosos, os Monges... em páginas plenas de informação e de sentido crítico de sabor já anti-clerical:

LIV: «Vejam, penso eu, quanto me devem estas gentes, que, pelas suas momices, as suas ridículas necedades e a sua vozearia, exercem uma espécie de tirania entre os homens e se julgam Paulo (São), e António (Santo do Egipto, não o de Pádua).”

Mas, porque nos debruçamos sobre o nosso PR e seu séquito governativo, eis o que expende a Loucura, em discurso tão cheio de actualidade e acutilância:

LV- «Sinto-me feliz agora por deixar histriões, cuja ingratidão dissimula os meus benefícios e cuja hipocrisia simula a piedade.
Há muito tempo que eu desejava falar-vos dos Reis e dos Príncipes da corte; eles, pelo menos, com a franqueza própria dos homens livres, prestam-me um culto sincero.
Em verdade, se eles tivessem o menor bom senso, que vida seria mais triste e mais para abandonar do que a deles? Ninguém gostaria de pagar a coroa com o preço de um perjúrio ou dum parricídio, se se pensasse no peso do fardo que a si se impõe aquele que quer mesmo governar. Logo que toma o poder, não pode pensar senão nas questões políticas e não nas suas, visar unicamente o bem geral, não se afastar uma polegada da observação das leis que ele promulgou e mandou executar, exigir a integridade de cada um na administração e na magistratura. Todos os olhares se voltam para ele, porque ele pode ser, pelas suas virtudes, o astro benfeitor que assegura a salvação dos homens ou o cometa mortal que lhes leva a catástrofe. Os vícios dos outros não têm tanta importância e a sua importância não se estende tão longe; mas o Príncipe ocupa um tal lugar, que as suas ínfimas falhas espalham um mau exemplo universal. Favorecido pela Sorte, ele é rodeado de todas as seduções; por entre os prazeres, a independência, a adulação, o luxo, tem muitos esforços a fazer, muitos cuidados a tomar, para não se enganar sobre o seu dever e nunca a ele falhar. Enfim, vivendo no meio de ciladas, de ódios, de perigos e sempre com receio, ele sente, por cima da sua cabeça, o Rei verdadeiro, que não tardará a a pedir-lhe contas do mais pequeno erro, e será tanto mais severo para ele quanto maior for o seu poder.
Na verdade, se os príncipes se vissem nesta situação - o que eles fariam se fossem sensatos - não poderiam, penso, saborear em paz nem o sono, nem a mesa. É então que eu lhes trago o meu benefício: eles deixam aos Deuses a resolução das questões, levam uma vida de moleza e não querem escutar senão aqueles que lhes sabem falar agradavelmente e afastar-lhes a preocupação do espírito. Eles julgam cumprir escrupulosamente a função real, se forem assiduamente à caça, mantêm belos cavalos, traficam a seu gosto magistraturas e leis, inventam cada dia novas formas de fazer absorver pelo fisco a fortuna dos cidadãos, descobrem hábeis esquemas que cobrirão de um arremedo de justiça a pior iniquidade. Acrescentam, para as seduzir, algumas lisonjas às massas populares.
Imaginai, por aqui, o Príncipe tal como é frequentemente. Ele ignora as leis, é bastante hostil ao bem geral, porque não encara senão o seu; entrega-se aos prazeres, odeia o saber, a independência e a verdade, troça da saúde pública, e não tem outras regras a não ser as suas cupidícias e o seu egoísmo. Dai-lhe um colar de ouro, símbolo da junção de todas as virtudes, a coroa ornada de pedras preciosas para o advertir a superiorizar-se a todos num conjunto de virtudes heróicas; acrescentai-lhe o ceptro, emblema da justiça e duma alma incorruptível, enfim a púrpura, que significa a perfeita dedicação ao Estado. Um príncipe que soubesse comparar a sua conduta a estas insígnias da sua função, enrubesceria, parece-me, por com elas estar revestido, e recearia que um malicioso intérprete viesse pôr a ridículo todos estes apetrechos de teatro.»

Concluímos, a minha amiga e eu, depois de admirar o rigor, a exactidão e a perenidade do retrato feito, que a diferença, de então para cá, entre o chefe de Estado antigo e o moderno, está no rubor. Hoje, inexistente.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Encomium Moriae, 18 – A Internet salvou-a

Hoje fui eu que fiz um vistão junto da minha amiga, ao perguntar-lhe o que pensava do caso da Sakineh Mohammadi Ashtiani, nome que levei escrito para soletrar melhor. A minha amiga ignorava o caso e eu esclareci, em glória, que se tratava da pena capital por lapidação, comutada não se sabe bem para que outra pena, da iraniana adúltera que a Internet, em movimento comprovativo de uma solidariedade à escala mundial, ajudou, talvez, a minorar, mas não a erradicar, embora num país de Sorayas e Farah Dibas que pareciam mulheres de mentes esclarecidas, tal como o seu Xá. Antes dos Ayatollahs, é certo, que esses repuseram os bons princípios fundamentais e fundamentalistas, entre os quais se conta o decoro das casadas, ressalvada amistosamente a liberdade indecorosa dos casados.
- Foi uma coisa boa. A Internet salvou-a.
- Não sei se na totalidade, esclareci, ainda receosa das pedradas de que escapara a iraniana Sakineh, não fosse a moda pegar por cá, que a moda tem grande alcance. Mas o que acha?
- Eu, primeiro, matava à pedrada as pessoas que lhe dão a pena. Esses tinham que desaparecer. Depois mandava as mulheres do Irão – todas! - enganar os maridos. Não ficava nenhum de fora. O que é que se pode fazer a um povo com essa mentalidade? Isso aí ainda se usa? No Irão? É do tempo da Maria Madalena, vejam bem! Esses julgamentos fazem-se em público! Tanta mulher a estudar fora! Então essas mulheres do Irão não se levantam contra tal estado de coisas? O ser humano é horroroso! Santa Bárbara!
Eu admirei a forma profundamente contundente com que a minha amiga despeja as suas indignações, e lembrei, a propósito, que por cá também se fez, de castigos inquisitoriais, espectáculo topo de gama, seguido vibrantemente pelo nosso povo e até pela nossa nobreza e pelo nosso clero, sempre com enorme prazer das mentes mais ou menos ilustradas, todas exaltadamente aderentes. “Felizmente há Luar”, do Sttau Monteiro já o indiciara, mas sobretudo “O Judeu” de Bernardo Santareno o demonstrara, e ultimamente o nosso romancista-mor José Saramago, perito em descodificar as violências e animalidades de um povo – nas suas três classes sociais – deglutindo alvarmente os seus prazeres proporcionados pelas classes superiores, matando, nem tanto à pedrada, senão com torturas e incêndios punidores. Aliás, superstições, bruxedos, sacanices, hipocrisias, beatices, Garrett, Herculano, Júlio Dinis, Eça, e outros mais – e lembro “Mário" de Silva Gaio, tão expressivo da prepotência de figuras sinistras das lutas fratricidas liberais - já nos tinham deixado descritos em páginas de tanta elegância visualista.

Mas referências do género já Erasmo nos deixara em tantos expressivos retratos, e especificamente no capítulo XXXIX, da continuidade da nossa tradução do “Elogio da Loucura”.
Aí repete a Loucura, no seu aforismo da dependência da felicidade humana do vasto domínio dessa mesma loucura, que entre tantos outros desmandos, faz que o marido de uma mulher adúltera considere a sua mulher mais fiel do que Penélope, ou que o caçador se entregue de alma e coração aos sons horrendos da trompa ou aos latidos dos cães:

XXIX:Aposto que o excremento dos cães lhes cheira a canela. E quanto êxtase em esquartejar o animal! Esquartejar vacas e carneiros é trabalho do campónio; ao fidalgo cabe o trinchar a fera. Ei-lo, de cabeça descoberta, de joelhos, com o cutelo especial que nenhum outro pode substituir; ele faz certos gestos, numa certa ordem, para cortar certos órgãos como um rito. À volta dele a multidão, de boca escancarada, admira sempre como um espectáculo novo o que ela já viu mil vezes, e o feliz mortal admitido a provar do animal, não tira daí parca honra. À força de perseguir os animais ferozes e deles se alimentar, os caçadores acabam por se lhes equiparar; eles não acham a sua vida menos digna que a dos reis.”

Hoje, alimentamos os nossos anseios de carnificina e sangue, com touradas, lutas de galos, futebóis quando viram desconchavo, e os profusos noticiários da nossa sensibilidade, atreita aos escândalos das doenças físicas e morais de que enfermamos, que eles tão morbidamente exploram, além da vacuidade dos questionários feitos pelos jornalistas das emoções fortes, às personagens importantes da nossa galeria governativa e afins. Com eles vibramos, às vezes nos envergonhamos, às vezes desligamos, incapazes de fruir.

E a Internet, foco de tanta sensaboria, é um mundo de valores tão espantosamente decisivos.
Às vezes salva. Assim seja, para Sakineh Mohammadi Ashtiani.

sábado, 10 de julho de 2010

Encomium Moriae, 17 - “Os que passam pela vida”

No capítulo XXXVIII distingue a Loucura duas espécies de Demência:

XXXVIII – ...“Há uma que as Fúrias desencadeiam dos Infernos sempre que soltam as suas serpentes e instigam no coração dos mortais o ardor da guerra, a sede inextinguível do oiro, o amor desonroso e culpado, o parricídio, o incesto, o sacrilégio, e tudo o resto, ou quando elas perseguem com as suas tochas terríficas as consciências criminosas. A outra demência nada tem de semelhante; emana de mim e é a coisa mais desejável. Ela nasce de cada vez que uma doce ilusão liberta a alma das suas penosas preocupações e a entrega às diversas formas da voluptuosidade.”
É a ilusão que deseja Cícero quando escreve ao seu amigo Atticus, “como um dom supremo dos Deuses, a fim de aí encontrar o esquecimento de todas as suas desgraças”. Ou o louco citado por Horácio, que, sozinho no teatro, aplaudia o que ele julgava ser as melhores representações teatrais, de facto inexistentes, e que junto dos seus se mostrava o ser mais amável para com todos. Tratado pela família, curou-se e passou a queixar-se: “Por Pólux! Vocês mataram-me, meus amigos! Não me salvaram, ao tirarem-me a minha alegria, forçando-me a deixar a encantadora ilusão do meu espírito”.

Também Camões lembra a história de um certo Trasilau “Que perdido um grão tempo o siso teve / Por causa duma grande enfermidade; / E enquanto de si fora, doido esteve, / Tinha por teima e cria por verdade / Que eram suas as naus que navegavam / Quantas no porto Píreo ancoravam”
O irmão Crito, fraternalmente, entregou-o à eficiência da ciência médica :

“...Sisudo, Trasilau ao caro irmão / Agradece a vontade, a obra não:

“Porque, depois de ver-se no perigo
Dos trabalhos que o siso lhe obrigava
E depois de não ver o estado antigo
Que a vã opinião lhe apresentava,
- “Ó inimigo irmão com cor de amigo!
Para que me tiraste (suspirava)
Da mais quieta vida e livre em tudo
Que nunca pode ter nenhum sisudo?

“Por que rei, por que duque me trocara?
Por que senhor de grande fortaleza?
Que me dava que o mundo se acabara,
Ou que a ordem mudasse a Natureza?
Agora é-me pesada a vida cara;
Sei que coisa é trabalho, e que tristeza.
Torna-me a meu estado, que eu te aviso
Que na doidice só consiste o siso....”

E a estrofe final destas oitavas ao “desconcerto do mundo”, dirigidas a um amigo, provavelmente D. António de Noronha, são bem síntese de uma das teses versadas no capítulo XXXVIII do “Elogio da Loucura”, de Erasmo, sobre a felicidade criada pela loucura da ilusão:

Vedes aqui, Senhor, mui claramente,
Como Fortuna em todos tem poder,
Senão só no que menos sabe e sente,
Em quem nenhum desejo pode haver.
Este se pode rir da cega gente;
Neste não pode nada acontecer;
Nem estará suspenso na balança
Do temor mau, da pérfida esperança.”

Estranho mundo, de insegurança, de medo, de desesperança, de desespero, pelo caos que vamos criando, também com a nossa obesidade de fartura, assistente indiferente da gente mirrada por esse globo fora, cada vez mais mirrada, mais reduzida a insanidade que a sua ignorância favorece, ao contrário do que diz a Loucura, que considera insanes os sábios, os que se dão conta dos males, a “cega gente” de que fala o poeta português.
Não o que escreve Francisco Otaviano de Almeida Rosa, advogado, jornalista, diplomata, político e poeta brasileiro (1825/1889), em estrofe que colhemos em Elos Clube de Tavira, onde, poeticamente reivindica uma plenitude existencial de Mal e Bem, como definição para a vida humana ideal:

"Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu,
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu. "

Mas as imagens espectrais dos seres estropeados – pela fome, pela guerra, pelas monstruosidades consentidas pela Humanidade, a mesma que construiu “Declarações de Direitos Universais” – dizem-nos que esses talvez se não importassem de passar pela vida em “branca nuvem” e adormecer “em plácido repouso”, na rota de destruição em que vegetam.
E os outros, aqueles que foram criados no espírito do Mal, apenas para matarem e se imolarem simultaneamente, submissos a um big brother manipulador das suas vidas e consciências, alguma vez terão sonhado com a liberdade, com outra realidade, no pesadelo das suas vidas de autómatos reféns, até sem culpa? Não, esses nem sequer a Trasilaus insanes podem aspirar.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Encomium Moriae, 16 – “E o fulano está cá fora”

A minha amiga tem o faro dos escândalos. Eu bem me esfalfo a ler e a traduzir “O Elogio da Loucura”, conscienciosamente, nestes tempos de caos nas almas e dizem alguns que mesmo nos corpos, e sobretudo nas bolsas, que parece que está tudo grosso, e a fazer pouco, segundo rábula imorredoira do par Agostinha/Agostinho. Eu diria que tudo louco, influenciada pela minha leitura, e bem me esfalfo, repito, a traduzir a tal “Loucura”, não do latim do Erasmo, que não sou louca, mas do francês de Pierre Nolhac que foi quem teve esse cuidado tão magnífico de verter Erasmo para a sua língua francesa, pois que Erasmo lia e escrevia as línguas clássicas como bom humanista das épocas áureas da Renascença, como também nós tivemos alguns, o que complicou o entendimento da sua obra, agora que a pretensão humanista se evaporou, embora não nas referências dos nossos governantes que todos eles se consideram humanistas, nem se percebe bem porquê, pois de Humanidades pouco devem saber, que saíram do ensino, as tais “Humanidades” cujo conhecimento é indispensável para tornar o homem mais sabedor de si e dos outros, conquanto eles queiram mais saber de si do que dos outros e nem por isso – sobretudo por isso – deixam de ser humanistas que se fartam.
Mas, repito, a minha amiga trouxe mais um caso, ligado à nossa Justiça que de humanista mantém ainda o lema “dura lex sed lex”, porque sempre é uma tradição de elegância, mas desviada completamente desses ideais de equidade, segundo a notícia que a minha amiga me facultou:
“- Nós não fazíamos ideia de que a nossa Justiça faculta violações, pedofilias, bandidagem, etc. Muitas vezes critica-se a polícia, mas a eles deparam-se os entraves da Justiça, têm que libertar essa gente.
- Acontece também com os incendiários.
- Sim, também. Acabei de ler um artigo sobre a Justiça, a propósito de que ela protege os bandidos, os pedófilos trata-os com muita diplomacia. Até podem recusar o exame do ADN. Foi o que aconteceu com o violador de Benfica. Recusou fazer o ADN e o fulano está cá fora. Mais cinco raparigas novinhas fizeram parte do rol dele.
Incapaz de solucionar os desesperos da minha amiga, resultantes das suas tendências mórbidas que a não deixam colher algum do néctar da vida que sobra dos vómitos das ignomínias, decido-me pela continuação da tradução que por sinal foca, no capítulo XXXVI, a preferência dos reis pelos bobos à sua mesa, preterindo os austeros sábios que só por ostentação eles também lá levam mas para ouvir falar de desgraças, o que os maça, ao contrário dos bobos que “proporcionam o que os príncipes procuram a qualquer preço: a diversão, o sorriso, o prazer” além de que “só eles são francos e verídicos”. “Tudo o que o louco tem no coração, mostra-o no rosto, exprime-o no discurso; os prudentes, pelo contrário, têm duas línguas...: uma para dizer a verdade, outra para dizer o que é oportuno. Eles sabem “mudar o preto em branco” soprar com a mesma boca o frio e o calor, evitar pôr de acordo sentimentos e palavras.”
E assim, o capítulo XXXVII compara o diferente destino do bobo e do sábio, o primeiro, “irá divertir com as suas facécias, nos Campos Elísios, as almas piedosas e ociosas”, o segundo, depois de uma vida de privações de prazeres, e de vigílias constantes em severos estudos que o envelhecem e debilitam antes do tempo, “é votado a uma morte prematura. Que importa, de resto, que ele morra, já que nunca viveu?”

Estes retratos são, aliás, bem do passado, os sábios hoje são mais protegidos, talvez por mecenas, ou organismos próprios, talvez pelas cunhas da nossa idiossincrasia.
Quanto aos bobos, já não há reis que os necessitem, eles – os da panelinha – conseguem cozinhar muito bem as suas próprias fruições, com os condimentos bastantes para a sua euforia permanente.
E os bobos somos nós, como condimento imprescindível da euforia.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Encomium Moriae, 15 – “Os dez mais”

Mostrando, no capítulo XXXIV, que o mundo animal é igualmente prova da sua tese da racionalidade contrária à felicidade, apresenta a Loucura, entre outros, o exemplo das abelhas, arquitectas por instinto, apenas devendo à natureza os seus dons de plena felicidade, ao contrário dos cavalos morrendo na batalha com o dono, além dos sofrimentos do seu cativeiro.
E o capítulo XXXV, depois dos exemplos míticos, em que sobressai o sempre “gemebundo” Ulisses, segundo epíteto de Homero, conquanto “hábil e artificioso”, que “nada fazia sem o conselho de Palas”, e a quem “a sabedoria excessiva desviava absolutamente do conselho da Natureza”, conclui que também “os vivos que obedecem à Sabedoria são em muito os menos felizes”:

XXXV-Por uma dupla demência, esquecendo que nasceram homens, querem elevar-se ao estado de Deuses soberanos e, a exemplo dos Gigantes, munidos das armas da ciência, declaram a guerra à Natureza. Inversamente, os menos infelizes são os que se aproximam mais da animalidade e da estupidez, os loucos ...
E vem a demonstração:
Estas gentes não receiam a morte, e por Júpiter! Não é pouco isso!... Nada, em suma, os atormenta das mil preocupações de que é feita a vida. Eles ignoram a vergonha, o medo, a ambição, a inveja, o amor, e mesmo, se atingem a inconsciência do bruto animal os teólogos asseguram que são sem pecado.”

Tínhamos, assim, chegado à conclusão de que felicidade está na razão directa da pequenez de espírito e por isso ficámos contentíssimas por não estarmos incluídas nas dez mais, isto é, não sermos uma das nações mais felizes do mundo, segundo a lista apresentada pela notícia que lemos hoje no Diário de Notícias, lista que a Dinamarca lidera entre sete países europeus - Finlândia (2º), Noruega (3º), Holanda (4º), Suíça (7º), Suécia (9º), Áustria (10º), e, já fora da Europa, o Canadá em 6ª posição, a Nova Zelândia em 8ª, a Costa Rica em 5ª.
Concluímos, na esteira de Erasmo de Roterdão e da sua Loucura, que aquelas tais nações, tão felizes assim, se encontravam no ínfimo escalão da inteligência humana, e, se sentimos pena por elas, que não desejamos o mal de ninguém, logo nos regozijámos por não estarmos incluídos na lista, nós, portugueses, que usamos e abusamos dos lamentos, prova incontestável da nossa racionalidade, segundo a tese de Erasmo que até era holandês, coitado, e assim está entre os felizes, os sem pecado, segundo os teólogos, próximos mesmo dos irracionais, sem pensamento que preste.
Como a Injustiça rege este mundo, não é só a Loucura, não! Pois assim se escapa de nós, portugueses, a felicidade, só por sermos tão racionais, tão pensadores e tão com pecado!

terça-feira, 6 de julho de 2010

“Mais caros que os charutos”, ou a insustentável leveza duma nação

Foi a propósito da minha referência de ontem ao excesso de charutos pesando no erário público do Estado francês e impondo despedimentos – se não despedidas afectuosas – governativos, em função dos bons costumes, que também por lá há estrebarias de Augias a necessitarem da reparação dos Hércules – que a minha amiga se lançou, com armas e bagagens, sobre os nossos governantes de país rico por conta de outrem:
- Mais caros que os charutos são as viaturas dos nossos governantes, a frota automóvel topo de gama, e as viagens em primeira dos mesmos e as assessoras de imagem que qualquer badameco do Governo tinha, que não ganhava menos do que duzentos contos... Porque o que a gente está a gastar não foi agora, foi há vinte anos...
- Só?
– consegui articular, com as minhas recordações poisando atrás.
- Talvez há mais tempo - pronunciou indiferente. Lembra-se de eu dizer que com toda a gente dessa a ter carrão, choufer, gazolina de graça, telefonemas pagos pelo Estado, viagens em primeira classe - agora é que estão a imaginar pôr os viajantes em classe turística – teríamos um belo enterro?
- Em todo o caso, não será de primeira
– expressei pessimista.
- Porque é engraçado, toda a gente acusa este Sócrates, eu não. O Cavaquinho estava lá, há muito que está lá. Estes continuaram com o estilo dos outros. Mas há vinte anos não se via que era isto que ia dar? Agora o que é que dizem todos? "É a crise mundial". Não bastava fazer isto, pôr a coisa a trabalhar? Fazer contas nem sequer complicadas?
Ergui os olhos para a minha amiga, para me certificar do sentido das suas explosões verbais. A “coisa” era a cabeça, as mãos da minha amiga traçavam os tamanhos dos gráficos, o das exportações diminuto, o das importações enorme.
- Agora o Cavaco diz que a situação é insustentável, deve ter lido o Milan Kundera, na questão “leve”/”pesado” - lembro eu sempre disposta a reconhecer capacidades alheias.
- Acordou. Deve estar a ver a possibilidade de ver as pensões diminuirem.
- Mas como tem muitas, a ele não faz diferença.
- Toda a gente sabe que não foi agora. Mas este PM é que está a levar com a carga toda das críticas.
- Ora, não tenha pena, que ele é um espertalhão, sustentável pela sua máquina, capaz de se escapulir por todas as malhas.
E lembrei a cena caricata – para mim vergonhosa – do Rui Pedro Soares, implicado no negócio da TVI pela Taguspark, como cabeça de turco bem remunerado, o fulano a responder na comissão de inquérito sobre as suas afinidades e da família com o Benfica, numa longa história laracheira, em que o camarada se aguentou com muita seriedade, certamente que mandatado pelos do séquito socrático, para chuchar com o assunto e com os da comissão e com o país inteiro... Uma miséria. Mas o PM não foi apanhado. Rematei:
–“Não, não tenha pena do PM. Somos um país inominável. Insustentável. Que levamos na tromba, até de um fedelho, embora bem pago para isso, e bem mandatado. E aceitamos a bordoada. E desistimos. Que o Benfica é o “Abre-te, Sésamo” para a nossa passividade. Embora o D. Sebastião e a Nossa Senhora de Fátima também sejam bons instigadores. Consta.

Encomium Moriae, 14 – De pernas para o ar

Prossegue a Loucura na sua exposição sobre as Ciências criadas pelo homem mais próximas do senso comum, isto é, da Loucura, já que são economicamente pouco rentáveis, como as ciências dos teólogos “com fome”, dos físicos “com frio”, dos astrólogos “ridicularizados”, dos dialécticos “negligenciados”, sendo os da cimeira rentável, os médicos, mesmo os mais ignorantes, seguidos das “gentes das leis”, por muitas “asneiras” que façam.

XXXIII - ... “O favor vai, pois, para as ciências que se aproximam mais da Loucura; igualmente os homens mais felizes são os que puderam fugir para bem longe das Ciências e tomar por mestra só a Natureza. Ela não falha nunca, a menos que se queira fugir dos limites da condição mortal.
A Natureza odeia o artifício e nada vale tanto como o que ele não profanou.”

Rousseau demonstrará, uns séculos mais tarde, no seu “Discurso sobre as Ciências e as Artes”, o efeito corruptor das Ciências e das Artes sobre os costumes: “O homem é bom e feliz por natureza; foi a civilização que o corrompeu e que arruinou a sua felicidade primitiva”, embora os filósofos enciclopedistas, no mesmo século XVIII, defendam o princípio optimista de “assegurar a felicidade humana pelo progresso da civilização e o triunfo da razão.”
Mas nos nossos dias, que temos à saciedade os esplendores e os vícios da civilização, que nos locupletamos de bem-estar trazido por esse progresso que a razão motivou, e vivemos aterrorizados as expectativas de uma destruição próxima dependente do apuramento cada vez mais triunfante da mesma razão, assistimos a um mundo de absurdas discrepâncias e injustiças que atingem proporções gritantes, pelas conquistas da Ciência, concomitantes com a libertação de princípios éticos, numa lixeira onde cabem as riquezas aviltantes a par das misérias obscenas, num desrespeito humano, esse, sim, de autêntica loucura autorizada pelos governos de corrupção, onde tanto se admitem actuações caricatas de excesso de consumo de charutos por conta do erário público, que forçam à deposição indiscreta de gente governante num país dito civilizado, como se permitem contrastes brutais em países na sua maioria africanos, de poderosos absolutos governando gente em movinento, sem o mínimo para sobreviver.
E o mundo permite. E colabora. E vende as armas propícias. E manda esmolas generosas. E permite. E colabora, que tem vantagens nisso. De pernas para o ar, o nosso lema.

domingo, 4 de julho de 2010

Encomium Moriae (13) – “A mula da cooperativa”

A minha amiga, que não é para graças, sobretudo quando se sente atingida nos seus pruridos de grande dama, de rectidão, pontualidade, respeito pelas passadeiras, em que eu sou muito mais flexível, para não ter que dar uma volta maior quando posso encurtá-la, atravessando fora da passadeira, às vezes tendo mesmo que alargar o passo ou até dar uma corrida, por conta dos automobilistas céleres a marcar posição nos seus espadas, assustando de propósito os infractores peões do código rodoviário, embora eu possa inferir, dado o gosto do atropelo permitido na lei portuguesa, que não se importem tanto com outras infracções mais obscuras e mais rentáveis, muito comuns entre nós, em que eles próprios poderão estar implicados mais a coberto - é o que eu penso, porque o pensamento é livre, penso - a minha amiga, dizia eu, enxofrou-se com as afirmações que leu ontem do Erasmo, cheirando a ranço machista, sobre as velhas mulheres desocupadas e coquettes.
- “Esse seu Erasmo ainda estava muito cru quando escreveu isso, ele pouco percebia de mulheres” – abespinhou-se ela, e eu confirmei que tinha pouco mais de quarenta anos, tendo nascido não se sabe bem se em 1466 ou 67, e que redigira o vasto retrato social “Elogio da Loucura” em uma semana de Agosto de 1508, em casa do seu amigo Thomas Morus, tendo-o, é certo, concebido umas semanas antes enquanto cavalgava na sua mula.
- “Então deve ter-se inspirado na mula” continuou, ressabiada, e eu lembrei, a propósito - quando a minha amiga se escama eu apresso-me a dizer amen com ela – lembrei a “mula da cooperativa” do nosso doce Max, aquela que deu dois coices no telhado só por causa do Zé da Adega não saber cantar o fado, considerando que, como a mente humanista de Erasmo colheu proveito em muitas fontes, podia ser que a sua mula lhe tivesse servido também de inspiração.
Mas são águas passadas, que o que temos, de facto notado, é a sua capacidade gritante de coligir, nas suas experiências e nas suas leituras, tantas reflexões, ora sérias ora mais jocosas, sobre a natureza humana, recheadas de exemplos clássicos vastíssimos.

Vejamos o capítulo XXXII, sobre o facto de os filósofos reclamarem da desgraça que é esse domínio da Loucura na manutenção “da ilusão, do erro e da ignorância” humanos. Responde esta:

XXXII: “Mas não, é ser-se homem, muito simplesmente. Não vejo porque eles chamam desgraça ter nascido assim, ser-se educado e formado segundo a comum condição. Não é desgraça nenhuma ser-se o que se é, a menos que um homem ache lamentável não poder voar como os pássaros, caminhar a quatro patas como o resto dos animais, ou ter cornos como o touro. Considerar-se-ia infeliz um belo cavalo, porque não sabe a gramática e não come bolos, ou um touro porque não pode fazer ginástica? Da mesma forma que a sua ignorância gramatical não poderia tornar infeliz o cavalo, a Loucura não faz a desgraça do homem, porque é conforme à sua natureza.»

Contra a observação dos filósofos de que o conhecimento das Ciências resulta de uma compensação da inteligência relativamente a uma natureza humana escassa, contrapõe a Loucura com uma afirmação de recusa dessa tolice, vista a generosidade da mesma natureza com os mosquitos e as plantas, incompatível com a “sonolência” em relação ao género humano, impondo-lhe o recurso às Ciências, inventadas em seu prejuízo:
“As Ciências irromperam na humanidade com o resto dos seus flagelos” .
“ De nenhuma ciência estava provida a idade de ouro. Só a guiava o instinto da Natureza.”
“Que necessidade tinham de gramática, visto que a língua então era a mesma para todos e a palavra servia apenas para se fazerem entender? Que necessidade havia da dialéctica, já que nenhum combate se travava entre opiniões rivais? Que fazer da retórica, se não existiam processos? Para quê a jurisprudência, quando não haviam começado os maus costumes, donde nasceram sem dúvida as boas leis?
(“Leges bonae ex malis moribus procreantur” – in “Saturnales” de Macrobius). Os homens eram demasiado religiosos para ousarem mostrar uma curiosidade ímpia aos mistérios da Natureza, medir os astros, os seus movimentos, as suas influências, perscrutar o secreto mecanismo do mundo. Eles achavam criminoso que se procurasse saber mais do que um simples mortal. Era demência olhar para além do céu e esse pensamento não acudia a ninguém. Mas à medida que diminuiu esta pureza da idade de ouro, os maus génios inventaram as Ciências. Elas foram primeiro pouco numerosas com poucos iniciados. Mais tarde, a superstição dos Caldeus e a vã frivolidade dos Gregos sobrecarregou-as de torturas inumeráveis para a inteligência, a tal ponto que só a gramática pode fazer o suplício de uma vida inteira.”

Foi neste ponto que acordámos para a compreensão da nossa realidade de simplificação da escrita e mesmo do significado do “Projecto Erasmus”, feito de intercomunicação comunitária e de redução teórica em abono do conhecimento prático, como pontos educativos charneira das políticas do nosso PM.
Além de outras realidades que pretendem fazer-nos retornar à Idade de Ouro erasmiana, prova de que eu tinha bué de razão, quando resolvi traduzir ou sintetizar paulatinamente o seu livro “Encomium Moriae” segundo etimologia grega ou “Laus Stultitiae”, na versão latina.
Que a “mula da cooperativa” do nosso doce Max é uma fonte de inspiração para nós, que vamos cada vez mais escouceando. E relinchando.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Encomium Moriae (12) – Fobia da morte, pedradas da vida

Entre um sábio, guiado pela razão, como os Estóicos, fechado aos sentimentos naturais, como uma estátua de pedra, e um louco guiado pelas paixões, o povo elegerá como chefe não a espécie de demiurgo mas “um homem a quem nada fosse estranho”, nem mesmo os prazeres da vida, que o aproximam do vulgo. Tal é a matéria do capítulo XXX do “Elogio da Loucura”.
O problema do Mal surge no capítulo XXXI, complementado com o estranho apego à vida do homem, criando, para se atordoar, entretenimentos que lhe disfarçam a angústia das suas contingências existenciais:

XXXI – “Suponho que alguém olha do alto a vida do homem, como o Júpiter dos poetas o faz por vezes, e observa a quantidade de males que pendem sobre ele, o seu nascimento humilhado, a sua educação difícil, os perigos em torno da sua infância, os duros trabalhos impostos à sua juventude, a sua velhice penosa e a dura necessidade da morte, após tantas doenças, incomodidades que o assaltam de todos os lados, que envenenam toda a sua existência. Não falemos do mal que o homem faz ao homem: arruína-o, aprisiona-o, desonra-o, tortura-o, estende-lhe armadilhas, trai-o; enumerá-los todos, com os ultrages, os processos, as escroquerias, seria contar grãos de areia.”

As extraordinárias manigâncias hoje em dia perpetradas pelos homens contra os homens são prova de uma evolução cada vez mais ampla no significado da expressão “o homem lobo do homem” que tantos monstros a actualidade revelou, e que foram sublinhados em obras ficcionais de um simbolismo aterrador, caso de “O Processo” de Kafka, “O Estrangeiro” de Camus, “1984” de Georges Orwell, este último criador de uma sinistra figura de “Big Brother” controlador do próprio pensamento humano, num absurdo totalitarismo sem saída.

Aponta a Loucura alguns dos sábios que por desgosto de viver se suicidaram. E prossegue, elogiando os seus próprios méritos:

Vós sentis bem, julgo, o que sucederia, se todos os homens fossem sensatos; seria necessário que um outro Prometeu moldasse outros com um novo barro. Eu, pelo contrário, ajudada pela Ignorância tanto como pela Irreflexão, ao fazer-lhes esquecer as suas misérias, esperar a felicidade, saborear por vezes o mel dos prazeres, consolo-os dos seus males de tal forma que eles deixam a vida com pena, ainda que a Parca tenha fiado toda a sua trama e que a vida os abandone.”

Assim, os velhos:
"A vida não os aborrece de maneira nenhuma. Quanto menos motivos eles têm para se lhe apegar, mais se lhe aferram. São meus clientes, esses velhos que atingiram a idade de Nestor e perderam toda a forma humana, e que vemos balbuciar, disparatar, os dentes partidos, o cabelo branco ou ausente, ou, para melhor os descrever com as palavras de Aristófanes, sujos, curvados, enrugados, calvos e desdentados, sem queixo, encarniçar-se em prezar a vida. Por isso, eles rejuvenescem, um tingindo os cabelos, outro usando peruca, este usando falsos dentes talvez arrancados a um porco, este embeiçado por uma virgem e por ela cometendo mais loucuras do que um jovem. Um moribundo, próximo a unir-se às sombras, desposa sem dote uma jovem meiguinha, que fará o prazer dos vizinhos; o caso é frequente e, por minha fé, disso se gabam.”

Sobre a apetência da vida, também La Fontaine trataria o tema, na sua fábula “La Mort et le Bûcheron”, mas o retrato dos velhos decrépitos buscando a ilusão de mocidade, tem uma actualidade permanente em cuidados capilares e odontológicos que acompanham, felizmente, o progresso.
Mas é sobre as velhas que Erasmo lança com mais sanha o ferrão sarcástico do seu conservadorismo provinciano, na fala cruel de uma Loucura criadora da ilusão:

Mas o mais charmoso é ver velhas, tão velhas, tão cadavéricas que as julgaríamos retornadas dos Infernos, repetir constantemente: “A vida é bela!” Elas são quentes como cadelas ou como dizem de bom grado os Gregos, cheiram a bode. Elas seduzem a preço de ouro qualquer jovem Fáon, pintam-se continuamente, têm sempre o espelho na mão, depilam-se no sítio secreto, ostentam mamas flácidas e murchas, solicitam num queixume trémulo um desejo que enlanguesce, querem beber, dançar com as raparigas, escrever cartas de amor. Todos troçam e dizem-lhes o que elas são, arquiloucas. Entretanto elas estão contentes consigo, alimentam-se de mil delícias, saboreiam todas as doçuras e, quanto a mim, são felizes.”

Só o que me parece é que as velhas assim descritas, já eram velhas quando jovens, egocêntricas, mimalhas, revendo-se no seu espelho, qual Narciso apaixonado por si próprio, que da vida não procuraram senão as delícias do seu próprio eu. Ao contrário de Erasmo, julgo-as infelizes, condenadas a uma solidão só remediada pelo seu narcisismo cego em relação ao mundo, ou pelos meios estapafúrdios tripudiados pelo escritor.
E a Loucura, vá de concluir, bonacheironamente, num falso ataque à sensatez, atribuindo-se a si o mérito da felicidade humana:

“Peço àqueles que as acham ridículas, que verifiquem se não vale mais levar a sua doce vida nesta loucura do que procurar, como se diz, a trave para se enforcar. Bem entendido, a desonra que assenta na conduta dos meus loucos não conta para estes; nem mesmo a sentem ou não lhe dão atenção. Receber uma pedrada na cabeça é um mal que existe; a vergonha, a infâmia, o opróbio, o insulto, só são palavras para quem as sente. O mal não existe quando não é sentido. O povo inteiro assobia-te; não vale nada, se tu te aplaudes, e só a Loucura te autoriza a isso.»

É certo que as palavras podem significar pedradas. Num mundo normal. Mas como disse Cristo, ninguém está tão puro assim, para poder apedrejar com tanta autoridade. Nem mesmo os sábios.
É por isso que os nossos ministros - e aderentes - seguem tranquilos na sua caravana.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Encomium moriae (11) – Intemporalidade

Às vezes, com a minha amiga, comentamos sobre a extraordinária lucidez revelada por Erasmo nos seus retratos, apoiado, é certo, na profusão de conhecimentos obtidos nos clássicos greco-latinos, e concluirmos, ante uma actualidade que não lhes é superior nos traços, nada tendo evoluído em sentimentos e suas manifestações, a não ser nas contingências do progresso, concluirmos, digo, sobre a universalidade e a intemporalidade do seu livro “O Elogio da Loucura”.
São assim, também, os capítulos seguintes, o XXVIII, sobre os ofícios e sua evolução, proporcionando o progresso da comodidade, graças à loucura vã dos homens que procuram a fama à custa de vigílias e suor, o capítulo XXIX rematando tal conceito pelo considerandum de que, vivendo o sábio, por timidez, refugiado nos livros, é ao louco, “isento de modéstia” que cabe a honra da coragem e do trabalho, donde a conclusão de que à Loucura cabe igualmente o mérito do bom-senso, mau grado os que protestam através do conceito de que “o mesmo é que casar a água e o fogo”.
Surgem assim os exemplos que mostram que “o rei vai nu”, na sua soberba e ostentação, tal como assim se mostram os actores a quem foi tirada a máscara dos seus papéis de importância.
E se um sábio pretende atacar o homem na sua soberba, considerando-o “o mais vil dos escravos”, porque se deixa manipular pelas sensações, logo será atacado como “louco furioso”:

XXIX – “... Tal como é uma extrema tolice exprimir uma verdade intempestiva, é uma autêntica inépcia ser sensato fora de propósito. Age inoportunamente quem não sabe acomodar-se às realidades tal como são, que não obedece aos usos, que esquece esta lei dos banquetes: “Bebe ou vai-te embora!” e que pede que a comédia não seja uma comédia. Tu mostrarás verdadeiro bom-senso, tu que não és mais que um homem, em não procurar saber mais do que os homens, dobrando-te de bom grado à opinião da multidão ou enganando-te complacentemente com ela. “Mas, dir-se-á, isso é uma autêntica loucura!” Não digo o contrário, desde que me concedam que assim se desenrola a comédia da vida.”

É o que diz o nosso provérbio “Maria vai com as outras”, é o que conta Bieito ao seu amigo Gil, na écloga “Basto” de Sá de Miranda, a respeito de um que se resguardou da chuva, ao contrário dos amigos que se espolinharam na chuva e na lama e o atacaram na sua prudência. Vai ele e diz:

“... - É assi que vai?
Não creio logo em meu pai
Se me desta água não molho.

Apaixonado qual vinha,
Achou un charco que farte;
O conselho havido o tinha:
Molhou-se de toda a parte,
Tomou-a como mezinha.
Quantos viram, lá correram:
Um que salta, outro que trota,
Quantas graças aí fizeram!
Logo todos se entenderam:
Ei-los vão numa chacota.

É assim connosco, foi assim connosco, as mudanças de regime não são propícias aos oponentes, como o não são os regimes dos que governam e que concitam inúmeros apoiantes, quaisquer que sejam as loucuras ou inépcias governativas.
Que o oportunismo, o interesse, são as grandes armas para a criação das máscaras da nossa chacota.