quarta-feira, 30 de junho de 2010

“Encomium moriae” (10) – A ingente glória do mando


E, feita a descrição do povo embrutecido que os chefes levam a seu bel’prazer, contando fábulas ilustrativas, os das chefias dependendo das bases para mais cómoda e eficiente organização governativa, continua a Loucura, no capítulo XXVII, a dissertar sobre a acção dos chefes, sobre cuja “vã glória de se alcançar o mando” os sábios lançam o anátema, que não têm mais que lançar:

XXVII - “Que há de mais insensato, dizem eles, do que lisonjear o povo, para uma candidatura, comprar os seus sufrágios, perseguir os aplausos de tantos loucos, comprazer-se a ser aclamado, fazer-se levar em triunfo como um ídolo ou ver-se em estátua de bronze no centro do forum? Acrescentai a isso a ostentação dos nomes e pronomes, as honras divinas prestadas a um pobre ser humano, as cerimónias públicas onde são enfileirados junto dos Deuses os mais execráveis tiranos. São de tal modo essas loucuras, que um único Demócrito não bastaria para delas troçar.” É certo; mas dessas loucuras nasceram os altos feitos dos heróis que tantas páginas brilhantes erguem às nuvens; elas engendram as cidades, mantêm os impérios, as magistraturas, a religião, os propósitos e os julgamentos dos homens. A vida inteira do herói não é mais do que um jogo de Loucura.”

Será loucura, mas “massaja o ego”, na expressão graciosa da minha amiga, evocando o herói-mor dos novos tempos, o Dr. Mário Soares, que ambas desconhecemos se já tem estátua, mas ambas vimos a ser festejado, qual santo patrono de um qualquer burgo afecto a idolatrias, com colchas às janelas e varandas das casas de uma terra de bom povo agradecido àquele herói que conduziu a pátria ao estatuto libertário em que se encontra agora, para comprazimento dos amantes das liberdades sem restrições.
Quanto a um dos seus sucessores, actual Primeiro Ministro, não temos qualificativo para ele, que não somos sábias, apenas vivemos os escândalos sucessivos de uma governação que, alcançada com o beneplácito público, se diverte a impor normas ou construções ao sabor dos seus radicalismos de governação impertinente e caprichosa. Uma das últimas foi a do encerramento de centenas de escolas, que a Educação do país lhe caiu no goto e nela faz finca-pé, por muito pé cochinho que outros entendem ser.
A última que nos surpreendeu foi sobre os mega-agrupamentos de escolas, e transcrevo o longo texto recebido por mail, que mal me atrevo a reduzir, tão sério me parece o assunto:

«VEM AÍ A GRANDE CONFUSÃO NO ENSINO PÚBLICO

Depois de anos de aceleradas convulsões e transformações nas escolas públicas do nosso país, depois de toda a instabilidade, discórdia e mau ambiente semeados nesta área crucial que é a educação, o governo central surge - já com as actividades lectivas encerradas e sem nada dizer aos diversos agentes educativos - a tentar fazer passar mais uma profunda alteração na organização da rede escolar.

No concelho de Cascais, o governo do PS pretende no imediato constituir dois mega agrupamentos de escolas:
Um com sede na Escola Secundária de S.joão do Estoril e abrangendo a EB 2,3 da Galiza, que irá absorver cerca de 2500 alunos. (!!)
Outro com sede na freguesia de Alcabideche, que incluirá a Escola Secundária Ibn Mucana, o actual Agrupamento de Escolas João de Deus, aque se irá juntar mais tarde a EB 2, 3 de Alcabideche, contituindo uma estrutura quase ingovernável que atingirá perto de 3000 alunos!

Qual o sentido e qual a lógica deste plano que merece a discordância dos directores das escolas, dos seus conselhos gerais, das associações de pais e até da Câmara Municipal de Cascais?

Esta reconfiguração surge depois de meia década de sucessivas reformas e profundas transformações no ensino público em Portugal – muitas delas inconsequentes e inúteis – numa fase em que as escolas muito carecem de estabilidade para desempenharem o seu trabalho.

Agora que as escolas e os agrupamentos – com directores eleitos há apenas um ano - procuram a adaptação possível ao ainda recente quadro legal herdado de ministra M.L. Rodrigues, eis que todas as direcções escolares são mandadas cessar funções, extinguindo-se uma parte e iniciando-se o complexo processo de reconstituição de outras direcções, já à frente de mega agrupamentos.

Com que critério se desbarata, desta forma ligeira, a ordem recente de um ano, acabada de construir – a custo – nas escolas?

Com a imposição dos mega agrupamentos, regressa a confusão e a instabilidade às escolas, prejudicando os agentes educativos no desempenho da sua principal função: transmitir e acessibilizar conhecimentos aos alunos.

Estas medidas, que ignoram as opiniões de quem está em interacção directa com a realidade local e escolar, lançam as escolas num sobressalto, colocando-lhes graves problemas organizacionais, pedagógicos, logísticos e de liderança, trazendo para a ordem do dia questões de poder tão desnecessárias quanto indesejáveis.

Pretende-se juntar debaixo da alçada de um só director meninos de 4 e 5 anos do ensino pré-escolar e os jovens de 17 e 18 anos do 12º ano.

No concelho de Cascais, como em vários pontos do país, já é sensível a consternação de vários sectores da comunidade educativa, entre pais, funcionários, educadores, alunos, directores e professores.

Porque não consultam as escolas, as associações de pais, os agentes educativos as Juntas de Freguesia e as comunidades do concelho, acerca de uma problemática que lhes diz, em primeiro lugar, respeito?

Como se ignora a Carta Educativa do Concelho de Cascais – documento aprovado em Assembleia Municipal, fundamentado em estudos, em dados consistentes e no conhecimento da realidade demográfica e sociológica concelhia – e se vêm impor com esta ligeireza medidas que lançam as escolas de novo na instabilidade e no conflito?

Senão vejamos :

- O gigantismo dos novos agrupamentos inviabiliza a gestão de proximidade e o contacto directo da direcção escolar com a realidade diversa das várias escolas e o conhecimento das pessoas, realidades e contextos particulares de cada escola.


- As proporções dos mega Agrupamentos dificultam ou mesmo comprometem a criação de uma identidade e uma cultura próprias de agrupamento, essenciais à afirmação de um projecto pedagógico consistente, indispensável à obtenção de bons resultados escolares.

- Não foram tidos na devida consideração e quantificados os custos pedagógicos que a entrada em mais um período de alterações profundas e instabilidade dentro das escolas vem provocar, depois da febre reformista dos anos de 2006, 2007, 2008 e 2009 que arrastou para a tensão e para a conflitualidade o mundo da educação.

- Esta alteração na estrutura dos agrupamentos tal como existiam até agora, vem abalar a sua recém construída coesão e vem comprometer o trabalho de criação de uma identidade própria, de um projecto e de uma cultura próprias, desenvolvidos passo a passo ao longo dos últimos 6 ou 7 anos.

- O argumento da articulação pedagógica entre ciclos, que alguns evocam, é inconsistente, já que a articulação pedagógica entre ciclos tanto pode realizar-se eficazmente entre escolas de um mesmo agrupamento como entre escolas não agrupadas. A prática das escolas documenta ambas as situações, pelo que a experiência tem demonstrado que não é forçoso agrupar para articular os ciclos.

- Os Conselhos Gerais das escolas e agrupamentos - que nem um quarto do seu mandato cumpriram ainda – e os directores e respectivas direcções - que tomaram posse há cerca de um ano - terão agora que interromper o seu trabalho e cessar funções, tendo que constituir-se novas equipas directivas e ser formulados novos projectos educativos. Todo este processo constitui um desperdício do trabalho recentemente realizado nas escolas/agrupamentos e um dispêndio desnecessário de esforços e de horas de trabalho.

- Se vamos agrupar escolas, será do mais elementar bom-senso que comecemos por considerar:

(1) o critério de proximidade geográfica,

(2) as características sociológicas e culturais do meio envolvente;

(3) a afinidade das culturas escolares dos estabelecimentos abrangidos;

(4) a compatibilidade dos projectos pedagógicos assumidos pelas escolas em questão.

- Neste processo, vários projectos, coordenações e práticas pedagógicas que vêm patenteando, ano após ano, resultados de excelente nível nas provas de aferição a nível nacional, são obrigados a reformular-se e a adaptar-se a gigantismos e complexidades comprometedoras da qualidade de resultados até aqui registados.

- A identidade, a união, o projecto comum unificador a cultura própria de cada escola e de cada agrupamento – laboriosamente apurados e definidos ao longo dos últimos anos – são neste processo irresponsavelmente ignorados e atirados fora.

- A constituição de agrupamentos – nos casos em que tenha lugar – deve ser um processo partilhado e acompanhado pelas comunidades em que se inserem e não um processo artificial realizado a partir de gabinetes e alheio aos interesses pedagógicos e comunitários.

- Não é portanto admissível que não tenham sido escutados as direcções das escolas, os pais, os professores e os autarcas, nem tenha sido tido em consideração o meio social, a cultura e o projecto educativo de cada escola, nos planos de constituição de novos agrupamentos apresentados.

A oposição a esta medida está a provocar um crescente movimento de protesto em Cascais, existindo uma enorme expectativa de agentes educativos e de autarcas sobre a posição que o Presidente da Câmara irá tomar.

Numa matéria crucial para a educação no nosso concelho, será que o Sr. Presidente da Câmara Municipal de Cascais terá a coragem política de tomar uma posição de firme recusa desta medida, à semelhança do que estão a fazer outras autarquias por todo o país como as de Oeiras, Amadora?»

É este o herói, não de batalhas campais, mas batalhador segundo os seus critérios ambiciosos de comandante desejoso da estátua de que fala Erasmo, é este o herói que, com as suas fábulas de enfeitiçar o povo, consegue perpetuar a sua coroa de louros, num pobre país de mentecaptos, parasitas e aduladores, muito embora vozes de protesto se ergam, aqui e além, apontando o desastre, caso do documento acima transcrito, tão inútil como as vozes.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Encomium Moriae (9) – Paga e não bufa

O povo é descrito no capítulo XXVI de “Elogio da Loucura”, como selvagem, seres “nascidos dos rochedos ou dos carvalhos”, só reunidos em cidades graças ao engodo de que são alvo e a “apólogos risíveis e pueris”, como o de Agripa, “dos membros e do estômago”, sobre a greve daqueles, por acharem que o estômago só sacava de todos os órgãos e, com a sua paragem, fizeram definhar o corpo todo. Outras fábulas refere a Loucura necessárias ao povo crédulo, como medidas didácticas, entre as quais a do romano Sertório “peregrino”, sucessor de Viriato na defesa dos nossos Lusitanos contra o poderio romano, o qual “fingiu na cerva espírito divino” segundo o discurso camoniano de Júpiter aos deuses. “É com estas parvoíces que se leva esta enorme e poderosa besta que é o povo”, conclui a Loucura.

Não creio que seja tanto assim, hoje. O povo actualmente difere do descrito por Erasmo, já não vai em ficções inventadas pelos governos para se convencer de que é preciso colaborar. As greves que faz são prova disso, bem politizadas, embora a maioria se limite, entre nós, a slogans e trechos entoados de despedimento pouco cordial de ministros ou de normas ministeriais de menor aceitação pelo povo não mais crente em ficções, com excepção para as de carácter religioso, que essas o povo preza. E apesar dos protestos, o povo é que paga sempre, bem levado por quem o governa, porque foi o povo que o escolheu.
É o que ouço neste momento, no Prós e Contras a respeito das scut quando há alternativa” ou “quando a não há”, levando à conclusão de que é tudo uma questão de alternativa rodoviária para maior sustentabilidade das decisões ministeriais que mexem na carteira das pessoas.
As opiniões divergem sobre as scut, umas pró outras contra, as do pró usando o slogan utilizador/pagador, embora outros considerem que tal slogan está longe daquele outro poluidor/pagador, e a milhas de distância do incendiário que esse não paga nem apaga nunca porque só acende os fogos do seu romano prazer, para ser logo libertado, no caso de ser apanhado, pelos juristas amantes de incêndios, mesmo que não componham versos, como Nero.
Mas agora pegou a esquizofrenia das scut, o povo bem que não quer pagar, mas o governo e os seus apoiantes, que ainda os vai havendo - para merecerem retribuição, quando forem eles os substitutos, usando, porém de astúcia, na ficção da aceitação, enrolando e empatando e adiando, sabendo muito bem da necessidade governativa de reaver divisas para poder reinar e pagar a dívida da nossa crónica situação deficitária, que o nosso PR tão virtuosamente acoima de insustentável, e é por isso que temos todos de pagar as scut, mesmo que não pertençamos ao grupo dos utilizadores, daí que o slogan peque por deficiente, tal como no fabulário antigo. Mas o governo e os seus apoiantes, dizia, acham que, com efeito, é imprescindível pagar.
Que o povo elegeu os seus chefes para cumprir as normas por eles ditadas, já se dizia nos meus tempos de infância :“paga e não bufa”. Faz parte da educação cívica. No caso do nosso actual governo, como nos anteriores.
A cabeça os membros manda”, foi Sá de Miranda que o escreveu, e o nosso PM é uma boa cabeça para membros como nós, que fazemos parte do fabulário moderno.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Encomium moriae (8) - Proezas humanas.

No final do capítulo XXII do “Elogio da Loucura”, dama Loucura reivindica para si própria, como sua inspiradora, todas as acções brilhantes de que o mundo é fértil.

Assim, a guerra ( cap. XXIII), onde se cometem mais proezas:
“Ora, o que haverá de mais louco do que travar este género de luta por não se sabe qual motivo, quando cada partido retira dela menos bem do que mal? Há homens que tombam; como as gentes de Mégara, não contam. Mas quando se defrontam exércitos carregados de armas, quando soa o canto rouco das trombetas, para que serviriam, digam-me, esses sábios esgotados pelo estudo, de sangue pobre e arrefecido, que não têm mais que a respiração? Neste caso tornam-se necessários homens fortes e troncudos, que reflictam pouco e se atirem para a frente. Preferir-se-ia um Demóstenes soldado que, dócil aos conselhos de Arquíloco, lançou fora o escudo para fugir, assim que avistou o inimigo?Era tão cobarde no combate quanto excelente tribuno. Dir-se-á que na guerra a inteligência desempenha um grande papel. No chefe, aceito; mas é uma inteligência de soldado, não a dum filósofo. A nobre guerra é feita por parasitas, proxenetas, ladrões, bandidos, campónios, imbecis, gente falida, em suma, pelo refugo da sociedade, e jamais pelos filósofos das vigílias nocturnas à luz da candeia.»

Quão longe figuram “as armas e os barões assinalados” com que o nobre – ou ingénuo - Camões se pôs a descrever os feitos de exaltação nacional, embora, é certo, dois condenados também fizessem parte da “companha” náutica do Gama, para, aliás, tirarem conclusões precipitadas sobre a existência de cristãos lá por Mombaça, iludidos toscamente pelas manobras de um Baco finório, trajado de falso deus a adorar o verdadeiro.
Não era tanto assim dantes, não eram todos bandidos os da “carne para canhão”, havia gente de muita classe a fazer a guerra mesmo sem ser nas chefias. E por isso o nosso Vieira a condenou, tal como o Velho do Restelo o fizera antes.
Mas Erasmo não falou em negócio, quando se refere à guerra, nem Camões – a não ser por espírito de oposição senil do seu “Velho”- nem Vieira, que a critica em crescendum dramático, como “monstro”, “tempestade terrestre”, “calamidade”, provocadora de uma absoluta e absurda insegurança.
De negócio não falaram, pelo menos com a acutilância posta hoje nas proezas belicosas das nações. O Velho do Restelo, sim, que tinha um “peito experto” e aponta a “vã cobiça” causadora de desgraça, mas já dissemos que o fez por um conservadorismo condenável.

Erasmo explica que a sabedoria é contrária à boa governação, o que me leva a concluir que os nossos governantes conhecem todos o seu livro.

O capítulo XXIV é pródigo em demonstrar, através de exemplos de ilustres que “a sabedoria prejudica o êxito” e que a sentença de Platão “Felizes as repúblicas de que os filósofos fossem os chefes, ou cujos chefes fossem filósofos!”, é bem ingénua, já que “Se consultardes a História, vereis pelo contrário, que o pior governo foi sempre o do homem com pretensões filosóficas ou literárias”.

E, no capítulo XXV explica como os sábios perturbam a ordem:

XXV:«Não se suportaria que essas gentes aparecessem em cargos públicos como burros com uma lira, se não se mostrassem desastrados em todos os actos da vida. Convidai um sábio para jantar, e ele é um desmancha-prazeres com o seu silêncio morno ou as suas dissertações enfadonhas. Convidai-o para dançar e direis que é um camelo a saracotear-se. Arrastai-o para o espectáculo, o seu rosto bastará para gelar o público que se diverte...
Ele aparece numa conversa, é como a chegada do lobo da fábula. Trata-se de concluir uma compra, um contrato... não é um homem mas um cepo. Ele não presta serviço a si próprio, nem à sua pátria, nem aos seus amigos, porque ignora tudo das coisas vulgares, e a opinião e os usos correntes lhe são estranhos. Esta separação total dos outros espíritos suscita contra ele o ódio. Tudo, com efeito entre os homens, não se faz segundo a Loucura, por loucos, entre loucos? Aquele que for contra o sentimento geral não tem senão que imitar Timon e ir para o deserto para aí se gozar solitariamente da sua sabedoria.
»

Já o disse, na sua écloga Basto, o nosso clarividente e viajado Sá de Miranda certamente conhecedor de Erasmo, e o próprio Camões o explicitou melhor nas “Oitavas ao desconcerto do Mundo”, através do megalómano Trasilau, “que na loucura só consiste o siso”.
Também é verdadeiro hoje.

sábado, 26 de junho de 2010

Sozinho em casa

Hoje falámos em tom de muita comiseração do nosso PM que se queixou de que às vezes se sente muito só, a puxar pelo país, único a puxar, a puxar, e o país em vez de se deixar ir na puxação, põe-se a resistir com um arreganho que é uma dor de alma e de cabeça para o nosso PM, pois além da solidão ainda tem de gastar o vencimento que aufere em ben-urons de 1 g, os de 500 mg sendo insuficientes, a menos que tome dois – um para a cabeça e outro para a solidão.
Este alvitre foi da minha amiga, pois as minhas dores de cabeça não se amenizam sequer com o ben-uron de 1 g, e por isso tomo jabasulide, que ameniza todas as dores, e faz as vezes do nimed, que é para gente de posses.
E assim nos compadecemos do nosso PM, embora estranhássemos a afirmação acerca da sua solidão cuja responsabilidade, apesar de tudo, nos custou a engolir, porque vemos o seu staff a rodeá-lo com imensa amizade e arreganho, e concluímos que o staff é que lhe criou o invólucro da solidão, não o deixando ir defender-se das acusações maledicentes, respondendo eles por ele, em maternal protecção susceptível muitas vezes de criar traumas irreparáveis, que até podem conduzir mesmo ao autismo.
Eu lembrei ainda a muita amizade actual com o Dr. Mário Soares, que toda a gente adula agora, mesmo o nosso PM, e por isso menos compreendendo a solidão que diz que sente.
E a minha amiga, que se admirou muito dos puxões do nosso PM, e que, como pessoa prendada, tem uns laivos de costura, entende que as puxadelas costumam fazer as roupas esgarçar-se, às vezes mesmo sem mais conserto, e, preocupada, aventou a hipótese de também termos culpa das esgarçaduras do país, por resistirmos às puxações do nosso PM.
Então eu, que não aceito facilmente acusações quando me sinto inocente, falei no conhecido filme norte-americano de Chris Columbus – “Sozinho em Casa” – onde o rapazinho Kevin, involuntariamente abandonado pela família viageira, governa a casa sozinho fazendo frente aos bandidos, com enorme engenho e perícia, embora com grandes estragos na casa.
É o que tem feito o nosso PM, fazendo frente aos bandidos, que somos nós, a puxar e a fazer-nos tropeçar e a pôr-nos aos tombos, a esgarçar o país nas costuras, a reduzir-nos a frangalhos. Tanta é a sua solidão na casa abandonada, que ele vai reduzindo com muita perícia ao caos.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Encomium moriae (7) – O amor-próprio

Temos, seguidamente, a Loucura lançada em expressiva síntese em abono da sua inquestionável interferência no trato humano, bem sintomática do cepticismo erasmiano a respeito da pureza que rege os sentimentos dos homens, que só a Loucura mantém coesos, sem a qual , de resto, o mundo descambaria em enfadonha sensaboria:

XXI- «Vedes que sem mim, até agora, nenhuma sociedade tem atractivos, nenhuma ligação é duradoira. O povo não suportaria muito tempo o seu príncipe, o criado o seu dono, a criada a sua senhora, o estudante o seu preceptor, o amigo o seu amigo, a mulher o seu marido, o empregado o seu patrão, o companheiro o seu companheiro, o hóspede o seu hospedeiro, se não se mantivessem um ao outro numa relação de ilusão, se não houvesse entre eles embuste recíproco, lisonja, prudente conivência, enfim, a lenificante troca do mel da Loucura.
Isto parece-vos enorme. Vede algo mais forte ainda.»

E é assim que, no capítulo XXII, a Loucura eleva a Filáucia ao primeiro plano que faz que o homem possa amar os outros, amando-se a si próprio em primeiro lugar:

XXII - «... A Natureza, muitas vezes mais madrasta que mãe, semeou no espírito dos homens, por pouco inteligentes que sejam, o descontentamento de si e a admiração de outrem. Estas disposições ensombram a existência; ela perde nisso todas as suas vantagens, as suas graças e o seu encanto. Para que serve, com efeito, a beleza, presente supremo dos Imortais, se ela acaba por murchar? Para que serve a mocidade, se a deixam corromper-se por um aborrecimento senil? Em todos os teus actos, o primeiro princípio que deves observar é o decoro; tu não te comportarás para contigo como para com os outros, a não ser graças a esta feliz Filáucia, que me serve de irmã, já que sempre ela colabora comigo. Mas também como parecer com graça, encanto e êxito, se nos sentirmos descontentes connosco? ... É bem necessário que cada um se ame a si próprio e se aplauda a si primeiro para se fazer aplaudir pelos outros.
No fim de contas, se a felicidade consiste essencialmente em querer ser o que se é, a minha boa Filáucia facilita-o plenamente. Ela faz que ninguém fique descontente com o seu rosto, nem com o seu espírito, o seu nascimento, a sua posição, a sua educação, o seu país. ... »

Hoje é em auto-estima que se fala. Quem a não tiver está feito ao bife, expressão não usada pela minha amiga, mas por outras amigas que conheci, jovens conscientes dos seus encantos físicos, dos seus dons intelectuais, alguns dos quais me pareciam, naqueles tempos, mais de convicção própria, que cada um toma a que quer, como a água benta, do que por expressão “leal-verdadeira”, aquela com que o Malhadinhas do nosso Aquilino se refere à sua própria justiceira língua.
Mas se grande parte da nossa população lusitana enferma de “complexos” atávicos de inferioridade – para usar ainda uma expressão que Freud generalizou - entre nós também não deixamos de verificar a existência de perfeitos exemplares cultivadores do orgulho próprio, cientes de um ego e de um super-ego fora de série, que descamba em arrogância ruidosa e palavreira, de quem só em si pode confiar e confia. E assi nos governa, a nós, que não temos ego que preste, a não ser os alunos nas escolas, seres de muita filáucia e de pouca filosofia.
Mas hoje a selecção nacional passou à fase dos oitavos de final. A nossa Filáucia subiu uns pontos, com a Loucura a geri-la ou não, que as vitórias são como flores de lótus que criam amnésia, como fizeram aos nautas de Ulisses, lá na ilha dos Lotófagos.
E bem precisamos nós de esquecer os males do nosso descontentamento, tão específicos da nossa complexada ilha, já sem nautas que prestem.


quinta-feira, 24 de junho de 2010

Encomium moriae (6) – As relações humanas

É altura de, no capítulo XVIII a Loucura se debruçar sobre os festins dos homens, cujos prazeres ela comanda, acrescentando aos repastos deliciosos que preenchem o ventre, os risos, as graças, a jovialidade que entretêm olhos, ouvidos e a alma, através dos toasts, das canções, das danças, das pantominas, meios criados pela Loucura para a felicidade do género humano, como forma de escapar “à tristeza e ao seu próximo parente, o aborrecimento”.
Mas, no capítulo XIX, disserta sobre a amizade, como sentimento que polariza as atenções de outros, considerando-a “não menos necessária que o ar, o calor ou a água; é tal o seu encanto que, retirá-la do meio dos homens seria furtar-lhes o sol”, os próprios filósofos a inscrevendo “entre os maiores bens”. E vá de justificar a parte que a Loucura se reserva, “popa e proa” de tal bem:

XIX- «Vejamos um pouco. Conivência, engano, cegueira, ilusão a respeito dos defeitos dos amigos, complacência na forma de tomar os mais salientes por qualidades e a admirá-los como tais, não é isso vizinho da loucura? Um beija a verruga da sua amante; outro sorve, deleitando-se, um pólipo no nariz da sua Agna querida; um pai diz, do seu filho estrábico, que ele tem olhares de revés. Não é isso verdadeira loucura?Digamo-lo, repitamo-lo, é mesmo ela que une os amigos e os conserva na união.»

E é assim para o comum dos mortais, dos quais nenhum é sem defeitos, sendo o melhor o que os tem menos grandes. Mas entre os sábios não há amizade que conte:

“Se, por vezes uma simpatia mútua reune estes espíritos austeros, ela fica instável, efémera, entre pessoas severas, excessivamente clarividentes, que notam os defeitos dos seus amigos com um olhar tão perfurante como o da águia ou da serpente de Epidauro. Para as suas próprias imperfeições, é verdade, eles têm a vista bem obscurecida, ignoram a sacola que lhes pende das costas. Assim, visto que nenhum homem é isento de grandes defeitos, visto que se tem que contar com as imensas diferenças de idade e de educação, com as quedas, os erros, os acidentes da vida mortal,” só loucura ou indulgente facilidade justificam tais excessos que, todavia, “tornam a vida agradável e estabelecem os laços na sociedade”.

E, no capítulo XX, é o casamento o alvo da análise da Loucura, sob a pena crítica, naturalmente conservadora, de Erasmo, com a sua visão centrada no seu século XVI, e segundo as fontes clássicas ou bíblicas do seu conhecimento:

XX-O que digo da amizade aplica-se melhor ainda ao casamento, união contraída para toda a vida. Deuses imortais! Quantos divórcios e aventuras piores que o divórcio não multiplicariam a vida doméstica do homem e da mulher, se ela não tivesse por alimentos e por apoios: a complacência, a tagarelice, a fraqueza, a ilusão, a dissimulação, enfim, todos os meus satélites! Ah! Como se concluiriam poucos casamentos, se o esposo se informasse prudentemente das brincadeiras em que a virgenzinha de modos delicados e pudicos se entreteve muito antes das núpcias! E mais tarde, que contrato se poderia manter, se a conduta das mulheres não se furtasse à despreocupação e à estupidez dos maridos! Tudo isso se atribui à Loucura; é por ela que a mulher agrada ao seu marido, o marido à sua mulher, que o lar permanece em paz e que o laço conjugal não se desata. A gente ri-se do “cornudo”, do marido enganado; quantos nomes lhe chamam! Mas ele seca com os seus beijos as lágrimas do adultério. Feliz ilusão, não é assim? e que vale mais do que roer-se de ciúme e tudo levar para o trágico!»

Hoje como ontem, não há que ver! Ainda há conformismos, nos casamentos que se não desatam, que permanecem intactos - por amor, por interesse, por convenção, por medo. Mas é claro que a flexibilização das leis – e da moral – dilataram as possibilidades de fuga aos rigores e dificuldades originados, por vezes, pelo cansaço da habituação no convívio a dois, para além da liberalização trazida pela independência económica do “segundo sexo”. E os divórcios excedem hoje os próprios casamentos, transformados, na sua maioria, em “uniões de facto”, numa sociedade que arvora ruidosamente o estandarte da liberdade, numa aparência de honestidade contra a hipocrisia da convenção.
Não se põe a questão aqui ainda, dos casamentos unisex, que a “Loucura” de Erasmo não explicitou e outro Erasmo ainda não surgiu, que provavelmente criaria o seu inverso – talvez o “Bom-Senso”, talvez o "Bom-Gosto”, que gostos há para tudo e o progresso traz surpresas atrás de surpresas.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Encomium moriae (cont. 5) – O papel da Mulher

Contém o capítulo XVII do “Elogio da Loucura” opinião adversa sobre a mulher, num espirituoso retrato antifeminista que não resisto a traduzir:

XVII: «Tendo, todavia, nascido para governar as coisas, o homem deveria ter recebido mais do que uma onça de razão. Júpiter consultou-me sobre este ponto, como sobre os outros, e eu dei-lhe um conselho digno de mim, o de unir a mulher ao homem. Seria, com efeito, dizia eu, um animal delicioso, louco e insensato, mas ao mesmo tempo divertido, que, na vida doméstica, aliaria a sua loucura à seriedade do seu companheiro e atenuaria os inconvenientes disso. Bem entendido, quando Platão parece hesitar em classificar a mulher entre os seres dotados de razão, ele não quer significar nada mais que a insigne loucura deste sexo. Que uma mulher, ocasionalmente deseje passar por sensata, não faz mais que redobrar a sua loucura. ... Não lutemos contra a natureza; agrava-se o seu vício a recobri-lo de virtude e a forçar o seu talento. ... Por muito que ponha uma máscara, a mulher fica sempre mulher, isto é, louca.»

É claro que todas estas observações sobre a insensatez feminina, como conceito machista arreigado desde os primórdios viris da civilização, irá desabar num estardalhaço equiparável à da babélica torre que as línguas confundiu, com a argumentação de uma inteligente mulher, Simone de Beauvoir, que prova que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, asserção com que inicia o seu “Segundo Sexo”, sobre os condicionalismos ancestrais da condição feminina numa sociedade falocrática.

Mas a Loucura prossegue, impávida, o seu discurso que, se despiciente em relação às capacidades intelectuais da mulher, estabelece os parâmetros tradicionais da superioridade feminina na sua relação com o homem, também feita de cumplicidade e astúcia, os quais servirão lindamente à escritora francesa de suporte, embora incompleto, para a sua demonstração:

«Poderiam as mulheres indispor-se contra mim por lhes atribuir a loucura, a mim que sou mulher e a mesma Loucura? Seguramente que não. A olhar de perto, é este dom de loucura que lhes permite serem em muitos aspectos mais felizes que os homens. Elas têm sobre eles, primeiro a vantagem da beleza, que pôem muito justamente acima de tudo e que lhes serve para tiranizarem os próprios tiranos. O homem tem os traços rudes, a pele rugosa, uma barba cerrada que o envelhece, e tudo isso traduz a sabedoria; as mulheres, com as faces sempre lisas, a sua voz sempre suave, a sua pele macia, têm para si os atributos da eterna mocidade. Aliás, que procuram elas nesta vida senão agradar aos homens o melhor possível? Não é essa a razão de tantas toilettes, pinturas, banhos, penteados, unguentos e perfumes, de toda essa arte de se arranjar, de se pintar, de alindar o rosto, os olhos e a tez? E não é a Loucura que melhor lhes traz os homens? Eles prometem-lhes tudo, em troca de quê? Do prazer. Mas elas chamam-lhe Loucura. É perfeitamente evidente, se pensardes nas frioleiras que o homem conta à mulher, nas parvoíces que por ela comete, cada vez que lhe passou pela cabeça divertir-se.
Ficais agora a saber qual é o primeiro, o maior encanto da vida e donde provém.»

E não se diga que hoje, apesar das mudanças radicais que as novas leis possibilitaram nas relações entre os sexos, as mulheres se coibem de usar dos mesmos arrebiques dos tempos de antanho, até provavelmente, com maior exploração ainda dos artifícios para sedução do homem, quando não é apenas em função do prazer pessoal, como expressão de requinte, de educação ou de simples vaidade.
Não há movimentos feministas capazes de destruir séculos e séculos de tradição discriminatória, que se apoia, talvez, como primeiro argumento, na diferença de tamanhos e de pesos – aparte as excepções da regra – que fazem valer na natureza a lei do mais forte, transformada tantas vezes em lei da selva.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Encomium moriae (cont. 4)

E após ter demonstrado que o homem lhe é devedor no capítulo dos prazeres – “Que seria a vida, com efeito, e mereceria ela esse nome se o prazer faltasse?” (XII) - prossegue a Loucura com a descrição e confronto das idades em que a irracionalidade, a irresponsabilidade e o prazer dominam, (primeira idade, juventude, velhice – (“qui se ressemble s’assemble”, XIII) e o fastidioso da idade da razão e do trabalho, a idade adulta, da preocupação e da responsabilidade.

“Só a Loucura conserva a mocidade e põe em fuga a desgraçada velhice” (XV). Esta ilação e a anterior, que podemos traduzir, segundo as nossas tendências agrárias ou antes, pecuárias, tendências já, de resto, ultrapassadas, por “cada ovelha com sua parelha”, retomo-as como justificativas de uma tal atitude de ausência presidencial no cerimonial fúnebre em torno do nosso Prémio Nobel de Literatura, a pretexto de prometido e terno passeio pelo paraíso açoreano aos netinhos, embora eu veja no acto do nosso Presidente uma justa preocupação de poupança que o identifica com a adulta idade da razão, e mais agora que ele nos aconselhou a fazer férias nacionais, como medida anti-crise.

Mas, retomando os nossos carneiros, ou, à nossa lusa maneira amplificadora, voltando à nossa vaca "fria" - mesmo com o verão à porta - envereda Erasmo em XV pela “clientela” mítica, clientela da Loucura, já se vê, que todos esses deuses “levam a vida fácil, como conta Homero, e ninguém mais os censura”, para, em XVI se debruçar sobre o caso humano:

XVI - «É tempo, à maneira homérica, de deixar os céus e retornar à terra. Não achareis aqui nem alegria, nem felicidade, se eu não intervier. Vede primeiro com que sentido de previdência a Dama Natureza, geratriz e fabricante do género humano, se preocupou em apor a tudo um grão de loucura. Segundo os Estóicos, a Sabedoria consiste em se deixar guiar pela razão, a Loucura em seguir a mobilidade das paixões. Para que a vida dos homens não fosse totalmente triste e aborrecida, deu-lhes Júpiter muito mais paixões do que razão. Em que proporções? É o asse comparado à meia onça (proporção 24 para 51). Além disso, esta razão, relegou-a para um canto estreito da cabeça, abandonando às paixões o corpo inteiro. Enfim, à razão isolada, ele opôs a violência de dois tiranos: a Cólera que detém a cidadela do peito, com a fonte vital que é o coração, e a Concupiscência, cujo império se estende largamente até ao baixo-ventre. Como pode a razão defender-se contra estas duas potências reunidas? O uso comum dos homens mostra-o sobremaneira. Ela apenas pode gritar, até enrouquecer, as orientações do dever. Mas é um rei que enviam às urtigas, cobrindo de injúrias a sua palavra; já farto, ele cala-se e confessa-se vencido.»

A minha razão, aconselha-me a considerar que, no caso dos futebolistas portugueses é sua obrigação jogar bem, como profissionais desse ofício. E quanto a isso, não há paixão que se me imponha.
Não assim à maioria da nossa população, de paixões e afectos acirrados, que envolvem os seus futebolistas, à distância ou mesmo in loco, em festas contínuas de apoio e carinho, incansavelmente, pujantemente, gritadamente, vuvuzeladamente. Um massacre.
A minha razão, confinada a um insignificante triste espaço craniano, confessa-se vencida, completamente estirada nas urtigas.

domingo, 20 de junho de 2010

Pausa para Saramago

Era o meu Pai que lembrava uma homenagem prestada pelo povo português a João de Deus, nos finais da sua vida, em que este, à varanda da sua casa, improvisou os seguintes versos:

«Que vindes cá fazer, ó mocidade?
Despedir-vos de mim? Quanto vos devo!
Também levo de vós muita saudade.
Em chegando à outra vida, escrevo.»

Era uma alma, João de Deus, na singularidade dos seus versos gentis e suaves, ou do seu humor epigramático, ou na seriedade com que tentou ajudar uma nação de um pobre povo analfabeto a aprender a arte de ler e escrever por uma Cartilha que se tornou método nacional. Em 1888, ano da publicação d’ “Os Maias” de Eça de Queirós.
Mas os tais versos que citava meu Pai, estavam incompletos. Faltavam os seguintes, comprovativos de um carácter de modéstia e afecto:

«Estas honras, este culto,
Bem se podiam prestar
A homens de grande vulto.
Mas a mim, poeta inculto,
Espontâneo, popular,
É deveras singular!»

Não, a José Saramago jamais se poderiam atribuir gestos de bondade e modéstia assim. E todavia, ele sofreu pelo seu povo, que desejou, certamente, também, elevar culturalmente. Ao descrevê-lo na sua força anímica, na sua brutalidade, na sua revolta, nas expressões soezes do seu viver nas trevas. Figuras que vão perpassando na obra múltipla do escritor atento, a par das figuras de maior relevo social, a quem não poupa os sarcasmos da sua condenação angustiada, de um estilo desestruturado, segundo as normas clássicas, mas perfeitamente captável na leitura atenta.

E José Saramago morreu. E volto a citar o texto que em tempos sobre ele escrevi, numa evocação que me parece justa, de um espírito acutilante que admiro na sua obra escrita, desta forma retomando uma homenagem, já não ao homem vivo, mas ao espírito que viverá enquanto for viva a pátria da língua em que escreveu:

«JOSÉ SARAMAGO,
Prémio Nobel da Literatura, 1998:»

«A sua obra ficcional forma panorama amplo de originalidade, humor satírico, informação livresca, agudeza psicológica e crítica, imaginação amplificadora, universos alucinantes, conhecimento humano, traduzidos num discurso desconcertante, pela irregularidade da sua estrutura frásica com a ausência da pontuação clássica, técnica que exige do leitor uma atenção permanente e participante na descodificação dos registos linguísticos – do narrador ou das personagens. Como se este estilo “acumulativo” de registos, de Saramago fosse símbolo da nossa época mediática, ruidosa e veloz, em que as vozes chegam e se impõem na força da sua oralidade, sem tempo para apresentações, ou para respirar pausadamente, e simultaneamente permitindo a percepção e desmontagem dos comportamentos e temperamentos das personagens, juntamente com o riso sardónico do seu narrador. Dir-se-ia que, para além da vastidão de elementos culturais e de conceito que informam a complexidade da sua obra, esta deve a sua originalidade também à matéria-prima humana que nela se realiza através do discurso poderoso, na sua unidade estilhaçada em fragmentos semânticos a descobrir, bem longe da técnica do discurso semidirecto ou indirecto livre de Eça, que já no seu tempo constituíra original forma de expressão, sem nunca perder, todavia, o equilíbrio gramatical, nem a clareza, nem o destaque psicológico das personagens, com a ocultação do narrador. Mas nestes séculos XX e XXI, cada vez mais marcados pelo tecnicismo, pela especialização, pela variedade, pela transformação, não espantam tais características de uma escrita exigente da participação do leitor, progressivamente mais apto, não só em consequência da ambiência de registos a descodificar que desde a infância o envolvem, como ainda pelo desenvolvimento dos estudos linguísticos e semânticos que possibilitam uma análise mais esclarecida de cada escritor.»

Mas José Saramago morreu, e o mundo se vai desunhando, com mais ou menos parti pris em torno do Nobel das Letras de 1998.
As honras oficiais do País são como sempre são as honras oficiais nos países. Com as pessoas que estão lá para prestar o culto da oficialidade: com seriedade decente, com imponência prestigiante do país que não pode ignorar o seu Nobel, mau grado os desaguisados anteriores, com os amigos sinceros, com os que admiram o escritor.
Morreu José Saramago e os dados estão lançados. Para a sua posteridade assegurada.

sábado, 19 de junho de 2010

Encomium moriae (cont.3)

E a narrativa da Loucura prossegue, com a referência agora às suas origens míticas, que nada tiveram a ver com os deuses poeirentos e fora de moda, tal o Caos, Orcos, Saturno, Japeto. Não, o progenitor da Loucura foi bem outro:

Cap. VII- «Nasci de Pluto, genitor único dos homens e dos Deuses, sem desprimor para Homero, Hesíodo ou mesmo Júpiter. Um simples gesto seu, hoje como outrora, subverte o mundo sagrado e o mundo profano; é ele que regula, a seu bel’prazer, guerras, paz, governos, conselhos, tribunais, comícios, casamentos, tratados, alianças, leis, artes, prazer, trabalho... falha-me a respiração... todos os negócios públicos e privados dos mortais. Sem a sua ajuda, o povo inteiro das divindades poéticas, melhor dizendo, os próprios Deuses maiores não existiriam, ou, pelo menos, magra mesa teriam (por falta das libações nos sacrifícios). Aquele que irritou Pluto, Palas em pessoa o não salvaria; aquele que ele protege, pode fazer negaças ao próprio Júpiter dos trovões. Tal é meu pai e disso me gabo. Não me gerou do seu cérebro, como Júpiter a triste e feroz Palas, mas fez-me nascer da Juventude (Juventus latina, Hebe grega), a mais deliciosa de todas as ninfas e a mais alegre. Entre eles não houve lugar para o maçudo matrimónio, óptimo para produzir um ferreiro coxo como Vulcano, mas o convívio prazenteiro do Amor, como lhe chama o nosso Homero, o que é infinitamente mais aprazível. Não pensem peço-vos, no Pluto de Aristófanes, velho caquéctico que já nem vê; meu pai foi um Pluto ainda intacto, abrasado de juventude, e não somente por conta da sua juventude, mas do néctar que largamente emborcara no banquete dos Deuses.»

A Loucura, filha do deus da Riqueza, da própria riqueza, “ploutos” em grego. É bem possível esta descoberta de Erasmo, verdadeira para o seu tempo, verdadeira antes, desde os tempos do primeiro crime bíblico, verdadeira nos tempos que correm: com efeito é Ploutos “que regula, a seu bel’prazer guerras, paz, governos, conselhos, tribunais, comícios, casamentos, tratados, alianças, leis, artes, prazer, trabalho, todos os negócios públicos e privados dos mortais.»

Faltou, no apanhado erasmiano, a referência às consequências de tal orientação plutocrática sobre a estabilidade do homem que, insensatamente vai destruindo o seu próprio habitat, o seu planeta, a sua Terra. E, naturalmente, por arrastamento, a sua Lua, se não todos os mais mundos do sistema solar.

Trata, o capítulo seguinte, da referência ao lugar de nascimento da Loucura, “já que hoje a nobreza depende antes de tudo do lugar onde se soltaram os primeiros vagidos”, considerandum erasmiano de que, todavia, me permito discordar pelo menos em relação aos tempos gloriosos do nosso século, onde essa verdade do berço dourado está democraticamente superada:

Cap. VIII - «Nasci nas Ilhas Afortunadas (Canárias, para além das colunas de Hércules), onde as colheitas se fazem sem sementeiras nem trabalho. Trabalho, velhice e doença são aí desconhecidos... Nascendo em tais delícias, eu não saudei a vida com lágrimas, mas imediatamente sorri para a minha mãe. ... Fui amamentada por duas ninfas encantadoras: a Embriaguez, filha de Baco, e a Ignorância filha de Pã. ...»

Segue-se, numa alegoria de actualidade e universalidade incontestáveis, a referência às companheiras da Loucura, que no próprio leite colheu os sabores da vida de que se orgulha:

Cap. IX- «A que tem o sobrolho franzido é a Filáucia (o Amor-próprio). A que vedes sorrir com os olhos e aplaudir com as mãos, é a Colacia (a Lisonja). A que parece viver num meio sono é Leteia (o Esquecimento). A que se apoia sobre os cotovelos e cruza as mãos, é a Misoponia (a Preguiça). A que está coroada de rosas e ungida de perfumes, é Hedoneia (a Luxúria). Aquela cujos olhos divagam sem se fixar, é a Anoia (a Irreflexão). A que mostra uma carne e uma tez sãs, é Trifeia (a Moleza). E entre estas jovens mulheres, eis dois deuses: o da Boa Mesa e o do Sono Profundo. São esses os meus servos, que me ajudam fielmente a guardar o governo do Mundo e a reinar, até mesmo sobre os reis.»
(Cont.)

Encomium moriae (cont, 2)


Depois de em V a Loucura se ter descrito como um ser transparente e verdadeiro, o escritor acrescenta um parágrafo, que desenvolve em VI, que me parece oportuno de actualidade, no qual, exceptuadas as curiosas referências aos latinistas do seu tempo que por vezes se servem da língua grega para deslumbrar – curiosidade, aliás, cada vez mais démodée, desaparecidas as línguas clássicas dos programas do nosso ensino, com efeitos sobre reformas linguísticas para os atrasados que somos - usamos também muitas vezes as palavras novas do nosso “romanço” para igualmente seduzir, ofuscar quando não enganar, atropelando, nos discursos de sofisma com que adulteramos a verdade, confundindo, ocultando, obstruindo, troçando.

«V, 2º & - Uma ingrata raça de homens, todavia muito da minha clientela, cora em público com o meu nome e ousa com ele injuriar os outros. São os mais loucos, os “moratatoi”, que querem passar por sábios, fazer de Thales; e não deveríamos nós chamá-los “morosophoi”, os sensatos-loucos?

VI – Assim, nós imitaríamos os retóricos dos nossos dias, que se julgam deuses por usarem uma língua dupla, como as sanguessugas, e consideram maravilha inserir no seu latim alguns pequenos vocábulos gregos, mosaico muitas vezes fora de propósito. Se as palavras estrangeiras lhes faltam, eles arrancam de pergaminhos apodrecidos quatro ou cinco velhas fórmulas que lançam poeira aos olhos dos leitores, de maneira que aqueles que os compreendem se empertigam, e que aqueles que os não compreendem os admiram tanto mais por isso. As pessoas, com efeito acham um supremo prazer naquilo que lhes é supremamente estranho. A sua vaidade está nisso interessada; riem, aplaudem, mexem a orelha como os burros, para mostrar que perceberam perfeitamente: “É isso, é exactamente isso!”. Mas retomo o meu tema.»
Cont.

E aqui vamos nós, neste nosso século XXI de lutas pelo poder – político, económico – de acusações de crimes e burlas e mentiras e sofismas, em que um Primeiro Ministro está implicado e ninguém consegue demonstrar que sim, porque, se está em todas, está delas fora, passando ao largo, como “os cães do Nilo” de que fala o nosso Sá de Miranda, “que correm e vão bebendo”. Um PM que manda os seus defensores para a liça, que informam, com uma seriedade escondendo troça, que “ocultar a verdade” não significa “mentir”.
E assim se vão entretendo, em lambedelas de beiços ávidos mas puros. Inocentes. Sem precisar de saber grego nem latim, que não estamos no tempo de Erasmo.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

"Encomium moriae / Laus stultitiae"

Porque vivemos numa época de sobressalto, provindo talvez daqueles adeptos de uma sociedade dirigida em função de si-próprios, desprezadas as normas da decência, época de loucura, gerada no desrespeito pelo ser humano, no atropelo sem sentido de todas aquelas noções que dão ordem e coesão a uma sociedade formada por seres aparentemente racionais, lembrei um velho livro que já no século XVI se mostrava bem pessimista a respeito do Homem, que os humanistas desejavam talhar segundo os moldes da elegância moral e espiritual.

Foi Erasmo de Rotterdam que, em casa do seu amigo, dez anos mais novo do que ele, Thomas Morus, autor da “Utopia” – para uma sociedade bem dirigida – escreveu, a pedido deste, em poucos dias, “O Elogio da Loucura”, que a ele dedica. “É uma obra singular, onde existe mais humor do que espírito, e mais erudição do que graça”, segundo Pierre de Nolhac que a traduz para francês, donde irei extraindo alguns excertos.

É a Loucura que fala”:
... III - “Ponhamos de parte os sábios, que taxam de insanidade e de impertinência aquele que faz o seu próprio elogio. Se isso é ser louco, convém-me às mil maravilhas. O que haverá de melhor para a Loucura ser ela-própria a propalar a sua glória e a cantar-se a si-própria! Quem me descreveria com mais veracidade? Que eu saiba, não há ninguém que me conheça melhor do que eu. Creio, aliás, mostrar assim mais modéstia que um douto ou um grande senhor, que, por pudor perverso, suborna em seu proveito a lisonja de um retórico ou as invenções dum poeta, e que lhe paga para ouvir dele louvores, isto é, puras mentiras. Todavia, a nossa púdica personagem pavoneia-se, ergue a crista, enquanto impudentes aduladores comparam aos deuses a sua nulidade, propõem-no, considerando o contrário, como um modelo acabado de todas as virtudes, enfeitam esta gralha de plumas emprestadas, embranquecem este Etíope e apresentam esta mosca como um elefante. No fim de contas, utilizando mais um velho provérbio, declaro haver razão no louvor próprio quando não se acha ninguém mais para o fazer.
E eis que me espanto com a ingratidão dos homens, ou antes, da sua indiferença! Todos me fazem de bom grado a corte, todos há muitos séculos, gozam os meus benefícios, e nenhum testemunhou o seu reconhecimento celebrando a Loucura, quando se viu gente perder o seu sono em honra de tiranos como Busiris e Falaris, da febre quartã, das moscas, da calvície e de muitos outros flagelos. Ouvireis de mim um improviso não preparado, por isso mais sincero.”

V – “Não tenho necessidade de vo-lo dizer; revelo-me, como se diz, de fronte descoberta e olhos nos olhos, e se alguém quisesse tomar-me por Minerva ou pela Sabedoria, eu desenganá-lo-ia sem falar, com um único olhar, o espelho da alma menos mentiroso. Não uso pinturas, não simulo no rosto o que não sinto no coração. Em todo o lado me assemelho ao que sou; não tomo o disfarce daqueles que têm que desempenhar um papel de sensatez, e se passeiam como macacos sob a púrpura e burros sob uma pele de leão. Que eles se enfarpelem como quiserem, a orelha cresce e trai Midas...”
(Continua)

terça-feira, 15 de junho de 2010

“Sem”

Transcrevo a opinião de Gustavo Reis, de Ferragugo, no Diário de Notícias de 14/6:

“Aldeias em extinção”: «O Estado quer acabar com o mundo rural. O fecho de 900 escolas do ensino básico leva à desertificação de aldeias e vilas que ainda ficam mais despovoadas, colocando as crianças longe das famílias. Ficam sem escola, sem serviços de saúde, sem urgências, sem médicos, sem serviços públicos. Restam os idosos nos lares e os jovens são obrigados a fugir para as cidades. É o progresso...»

Tem razão, Gustavo Reis, vamos a caminho do deserto – deserto dos corpos, deserto dos campos, deserto dos gados, das pescas, das almas. Escolas que não funcionam como tal, campos de lavradio em descanso, encerramento de unidades de funções várias, um país que vive debruçado sobre a produção estrangeira, sobre a divisa estrangeira, sobre a ara estrangeira, em confrontos que nos vão minimizando, apoucando, envilecendo.
É o progresso, comenta Gustavo Reis, com a ironia de quem está atado de pés e mãos. Porque estamos atados de pés e mãos. Um mau governo, sim, mas não há esperança de que outro qualquer seja melhor. Somos o país dos sem: sem governo, sem dinheiro, sem justiça, sem empregos, sem campos, sem trabalho, sem dignidade, sem esforço produtivo.
Mas a culpa, se é do mau governo, também é do povo que somos, sem brio, sem os princípios que dignificam o ser humano. Um povo que prefere pedir a merecer, pelo seu esforço, e que sempre se deixou maltratar pelos que se alcandoram nos postos cimeiros, ávidos, intolerantes e mesquinhos: no tempo de Salazar, reduzindo o povo à miséria, permitindo as diferenças sociais intoleráveis, que, aliás desde sempre existiram; actualmente, os empresários explorando os trabalhadores, exigindo excesso de horas de trabalho que não são remuneradas, na sequência das políticas de um governo de astúcia, de vaidade e de injustiça, que vai cortando, reduzindo, encostando a nação cada vez mais ao muro do apagamento final, fingindo ignorar os desesperos que provoca, o anulamento a que reduziu tanta gente, até gente que foi rica ou remediada e agora esconde a sua miséria, às sopas da caridade pública.
Aldeias em extinção”. Escolas que se encerram. Êxodo para a cidade. Campos que o não são mais, cobertos de ervas daninhas ou substituídos por casas e ruas, que se esventram e reconstroem constantemente, para enfiar cabos, e se voltam a esventrar e a reconstruir para enfiar canos, ou tubos de escoamento sanitário, e sucessivamente se abrem e reabrem, numa febre de reconstrução contínua, para embelezar o ambiente ou para manter o emprego dos calceteiros, dos pedreiros, dos arquitectos... E tudo isso as câmaras apoiam. Mas as fábricas fecham, a economia desorganiza-se cada vez mais, a produção escasseia.
Por enquanto, não poderemos afirmar ainda “O resto é silêncio”, palavrosos que somos. Mas com a diminuição da natalidade, o envelhecimento da sociedade e a diminuição dos recursos, não importará quem fomos, porque facilmente deixaremos de ser. No silêncio.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Uma fábula para a minha amiga

Como vai estar ausente
Num seu empreendimento,
Deixo-lhe a marca presente
Do meu apoio constante,
Uma fábula traduzindo
De La Fontaine,
Em agradecimento
Do que de si vou colhendo
Alegremente:

O gato e os dois pardais”
«Um Gato, de um jovem Pardal contemporâneo,
Perto dele desde o berço foi crescendo:
Gaiola e cesto tinham iguais penates,
Às vezes o Gato sendo
Importunado pelo Pássaro buliçoso,
O que o punha furioso.
Um com o bico esgrimia,
Outro com as patas arranhava,
Este último, todavia,
O seu amigo poupava,
Apenas pela metade o corrigindo:
Teria sentido um escrúpulo maior,
Em armar de pontas a sua férula, com rigor.
O Passaroco, menos circunspecto,
Dava-lhe boas bicadas.
Sábio e discreto
Mestre Gato desculpava estas jogadas:
Entre amigos, não nos devemos nunca abandonar
Aos rasgos de uma cólera séria, sem, pelo menos, avisar.
Como eles se conheciam ambos desde tenra idade,
Um longo hábito os mantinha em paz e amizade:
Nunca em verdadeiro combate o jogo se transformava.
Mas um Pardal da vizinhança
Veio visitá-los, e fez-se companheiro
Do petulante Pierrot e do sábio ratoneiro;
Entre os dois pássaros surgiu uma questão
E o Ratoneiro tomou, é claro, o partido do seu amigão:
“Este desconhecido está a caçoar
Ao vir assim o meu amigo insultar!
O Pardal do vizinho vir comer o meu parceiro!
Não, por todos os gatos!”
Então, no combate entrando,
Ele trinca o estrangeiro.
“Na verdade, diz mestre Gato,
Os pardais têm um gosto fino e delicado!”
Feita a reflexão,
Vá de trincar também o seu amigão.
Que moral poderei eu inferir deste facto?
Sem ela, toda a fábula é uma obra imperfeita.
Julgo aqui ver alguns traços; mas a sua aparência é estreita.
Príncipe, vós tê-los-eis imediatamente encontrado:
São jogos para vós, e não para a minha Musa;
Nem ela nem as suas irmãs têm o espírito que vós tendes
E a experiência profusa.»

A La Fontaine faltou a coragem
De explicar a « Monseigneur le Dauphin »
O Príncipe referenciado,
A moral desta sua fábula.
A imagem
Que me acode
Para a actualidade, pelo menos,
É a dos apoiantes
Caídos em desgraça
Em caso de ingratidão
Dos príncipes da nação
Depois destes saborearem
Os eflúvios do poder:
Papam aqui, papam ali,
Ganham-lhe o gosto
Digo, de papar,
E logo vão esquecer
Quem os fez nascer
Para o poder.
É um exemplo, mas outros mais
Casos de pardais
Poderia contar,
Se a minha Musa
Fosse mais profusa,
E me pudesse ajudar
Dando-me a conhecer
As várias intrigas
Do mundo das brigas
De que enferma a nação
Sem justificação.
Mas tudo o que eu soubesse,
Se o dissesse,
Poderia ser tomado
Como demasiado
Atrevido
E talvez um processo
Me fosse movido,
Pardais que somos
Para o poderoso
Orgulhoso
E esquecido.
O que é um facto
Várias vezes observado
É que, colhidos os sabores,
Apreciados os valores,
Com nova ciência,
Perdida a inocência,
Circunstâncias maiores
São por vezes causa
Das reviravoltas
Nos comportamentos
Dos superiores.
E o que se passa entre os superiores de uma nação
Para com os inferiores
Pode igualmente ver-se
Entre nações de diferente dimensão
Aparentemente amigas, mas com a intenção
De estabelecer puros ajustes
Para as grandes poderem engolir
Paulatinamente
As pequenitas,
Pardocas indecisas
Sem noções precisas
Do que seja ser.

sábado, 12 de junho de 2010

É casa a arder sem se ver fumo

A minha Mãe a cada passo reconstrói o seu passado. E eu gravo-o, não, de facto, para decifrar origens perdidas no pó dos tempos, que poderiam encalhar numa qualquer despropositada lenda mourisca ou mesmo hebraica, em homenagem ao meu tio Manuel que às vezes me lançava, na minha infância traquina, um desprestigiante “Tu és muito judia”, mas porque vivo actualmente em perpétuo deslumbramento, ante o despoletar de uma memória materna cada vez mais refinada, de par com uma saúde que recuperou nas várias estruturas fisiológicas, graças a um medicamento homeopático libertador, “Frutos e Fibras”, de que há muito deixou de precisar.
E o seu passado aí torna, nos nomes das pessoas, das terras, dos enredos. Passado de uma vasta família, de oito irmãos, a mãe de Paredes de Ribeiradio, dois tios-avós padres, mais outro padre de Paranho d’Arca irmão da mãe, a velha casa do Carregal cheia de livros desses padres cujo destino ela desconhece e lamenta. E fala no “lapão” existente em Arca - uma pedra d’Arca com quatro colunas, certamente uma anta que desconheço, embora conheça outras da zona de Lafões. Fala com voz cheia e saudosa nas terras dispersas de que proveio a família, Rebordinho, Castro, Espinho, Arca, Santo Adrião, Paredes, “tivemos terras no Pisco, em Destriz, d’além do rio Alfusqueira, no Carregal, era uma casa muito valente”, muitas das quais terras o pai vendeu. Fala nos casamentos das irmãs e chora. A tia Clara foi a Rosária da Feira que lhe arranjou o casamento, com um emigrante brasileiro que tinha uma amante no Brasil. “Eu não estava lá, estava em África. A Lisete não queria ir para Destriz, ia para o curral agarrar-se às vacas e chorar, queria ir para África.” E a minha mãe vá de chorar, com pena da irmã. “Ó mamã, mas a tia Lisete foi feliz, com os seus quatro filhos, ela costumava dizer que tinha uma família muito boa.” Mas a minha Mãe não se distrai, quem eu julgo que gostava de a levar para África era a minha Mãe, tão sua amiga, talvez por esta ser a mais nova.
E a dada altura surgem as frases provérbios que ouvia às velhas: “Moças e bois é um ano até dois”, “É casa a arder sem se ver fumo”, cuja explicação acompanha com as referências às suas experiências de infância:
No primeiro caso, trata-se do abuso das criadas, quando estão tempo demais nas casas, ou mesmo a possibilidade de engravidarem, se houver varões nas casas. E cita casos, o da rapariguita das Talhadas, o da tia Maria Corredoira... Quanto à justificação dos bois: “compram-se magros nas feiras e vendem-se passado um ou dois anos mais gordos e por bom preço.”
Na sequência das dificuldades que passavam, na casa farta, mas exigente de trabalho e remuneração, o provérbio “É casa a arder sem se ver fumo” e a explicação: oito filhos, gente de fora, se não trabalham têm que vender, não é só comprar, e assim o pai se foi desfazendo de terras mais distantes do Carregal.
Um provérbio bem adequado aos novos tempos, tempos de compra, de desperdício, de diversão, de consumismo desenfreados. A UE, cujos 25 anos da nossa adesão se comemoraram hoje, 12 de Junho, adesão convenientemente festejada em bonita festa e bonitos discursos de optimismo ibérico, a UE, repito, forneceu-nos dinheiro, muito dinheiro, que modernizou o país, mas que o conduziu ao desleixo, pela ignomínia de ordens superiores exigentes de suspensão nos trabalhos agrícolas, a pretexto de que não produzíamos como os outros países, com as medidas convencionais dos seus produtos adubados. Embora sem o gosto das nossas frutas, fertilizadas por um sol amável, e pelo trabalho de amor à terra. Tudo isso é história passada, ninguém apontou esses factores negativos da incúria nos discursos do optimismo.
E assim a casa vai ardendo, com os campos transformados em baldio, os barcos encalhados nas praias, pela redução imposta dos espaços de pesca.
Mas na TV5, o desempenho extraordinário dos actores de “Antigone” de Jean Anouilh. Um Creonte obrigado a cumprir as ordens cruéis que decretou, o seu drama de consciência moral, no conflito entre a piedade e o dever político, contra uma Antígona rebelde, a junção do caricato, nos gestos grotescos do soldado insensível, com o sublime das personagens defendendo as suas razões. Os que têm que morrer, morrerão, Antígona, Hémon, Eurídice. As razões de Estado irão continuar a impor-se, acima dos escrúpulos humanitários. A vida continua.
Uma peça clássica, em que Antígona representa a voz da resistência, de todas as resistências, podendo talvez servir de símbolo à época que estamos a viver, de resistências, todavia, por vezes sem grande nobreza.
Mas os cabelos grisalhos ou a magreza dos nossos governantes actuais indiciam graves conflitos interiores neste nosso tempo de casa a arder, sem se ver o fumo.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

10 de Junho

Hoje fui eu que tomei a iniciativa, movida por intuitos patrióticos e de apego ao nosso génio maior das nossas andanças por mares e continentes, sempre elegantemente acompanhados por deuses e outros seres míticos, uns favoráveis e outros do contra, entre estes o Baco das vinhas, coisa que desde sempre me indignou por nem ao menos aquele reconhecer, quando se nos opôs a incitar os povos contra nós, que sempre confraternizámos com ele até bem melhor do que outros povos que ele protegeu, revelando uma estranha ingratidão, para além de que “de Luso vem, seu tão privado”:
-Então que me diz deste dia de Camões?
A minha amiga repontou, de língua percuciente e amarga:
- Eu tenho a dizer que ninguém se lembra dele. Só se diz que é dia 10 de Junho.
Eu respondi-lhe com erudita referência:
- Já me parece o desbocado do Almada Negreiros: “A pátria onde Camões morreu de fome / e onde todos enchem a barriga de Camões!”
Mas uma nossa amiga chegou que lhe chamou “dia da raça”, num atraso de evocações megalómanas já corrigidas, e que, passou a chamar-se, como muito bem cita Eulália Moreno, articulista do Portugalclub, “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”, por se ter reconhecido que esse estatuto de raça estava fora do nosso alcance, apesar de por vezes nos servirmos convenientemente dele para acusarmos quem nos importune: “És de má raça!”
Quando vim para as lides do almoço, assisti à nossa consagração do dia, na RTP. E gostei, apesar da parcimónia na solenidade, a que faltou o habitual concerto. Foi em Faro, houve números de paraquedismo, parada militar, gente feliz com lágrimas, pois estavam incluídos os soldados do nosso passado de lutas coloniais, pela primeira vez, segundo afirmou António Barreto, no seu discurso de apresentação, muito justo e equilibrado. Também o foi o do Presidente da República, lembrando as dificuldades e apelando à coesão. A própria distribuição das comendas foi rápida, porque pela primeira vez os consagrados estavam já no palco. Fiquei feliz com as condecorações atribuídas a António Sala. E a Vasco Graça Moura.
Foi um dia modesto, a condizer com as tais dificuldades de que falou Cavaco Silva. Não houve concerto, mas o nosso Presidente fez uma justa homenagem a João de Deus, poeta algarvio, de uma poesia de inteligente simplicidade e maviosidade, a quem gerações deveram as primeiras letras, com o seu método da “Cartilha Maternal”.
Uma festa em família, sem esbanjamentos de palavras nem de gestos, sem espalhafatos, mas simpática, na seriedade dos comportamentos, na dignidade das funções. Macário Correia, presidente da Câmara Municipal de Faro, ficou contente com o seu programa de comemorações, que apresentou vários números, de que se orgulha.
Realmente, a minha amiga teve razão. Não se falou de Camões, falou-se dos soldados, falou-se das dificuldades, falou-se de estratégias, falou-se dos Portugueses. E assim Camões esteve presente. No sentido de orgulho e patriotismo construtivo contido nos discursos, ou nas palavras de quem nos governa.
Camões, um estímulo, Camões para um novo arranque de brio, para uma nova alma.
10 de Junho, Dia de Camões.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Degradação em sublimação

- Então o que é que diz à passagem do 8º para o 10º, sem passar pelo estado intermédio do 9ª? - perguntou a minha amiga com os olhos faiscantes de malícia, a julgar que me apanhava em falso e que eu ainda não tinha pensado no assunto, presa que estou a uma vida sobrecarregada de curvas e contra-curvas, em torno de uma mãe pesada das exigências do seu mimo centenário.
- Chama-se a isso, - respondi eruditamente, recordada das mudanças de estado da matéria que aprendi creio que na Física do 2º ciclo liceal, - chama-se a isso sublimação, tal como a mudança do estado sólido ao gasoso, sem passar pelo estado líquido, ou viceversa. Fusão, vaporização, condensação, solidificação, e mais uns nomes que a gente decorava com gosto...
- Tudo menos sublimação no salto do 8º para o 10º,
contrapôs a minha céptica amiga, que vagamente fala em estupedificação.
Dei-lhe razão, docilmente, que sou pessoa nada orgulhosa dos meus saberes que me chegaram da adolescência. Nem dos que me chegaram posteriormente, de resto, sempre mal colados e dum modo geral muito voláteis. Mas expliquei que o depuramento da ignorância pode apelidar-se também como um estado de sublimação, como grau zero para que tendemos, a continuarmos na via sumária da nossa educação actual.
E a minha amiga vá de continuar, refractária às minhas sublimes justificações:
- Se houver um prémio para a melhor anedota, esta ganha o primeiro prémio. É que a gente está a ouvir a ministra e não quer acreditar. Então, nesse caso, aqueles alunos do oitavo, que cumprem habitualmente, poderão fazer o mesmo, desde que tenham os quinze anos da tabela e em duas penadas alcançam o décimo, com uma preparaçãozita de lambedelas sumárias aos programa do nono para os exames da catapultação.
- Mas não se lembra das transformações no ensino e nas passagens aos anos seguintes, logo após o 25 de Abril? Isto não é novo. As passagens administrativas...

Tenho, aliás, um texto, no meu “Pedras de Sal”, contido em “Cravos Roxos” que vou transcrever, como prova de algumas dessas facetas sofridas pelo ensino:

Uma Acta que não ficou assente”
«Às ... horas do dia... de Julho de 1974, reuniu-se o conselho de professores dos júris de exames, presidido pela directora da Escola... a fim de se decidirem as normas para os exames do ano lectivo em curso, emanadas da Secretaria Provincial (Província de Moçambique, ao tempo) de Educação.
Aberta a sessão, e após um intróito de apreço da directora agradecida pela excelente colaboração prestada pelos professores, modestamente sentados nas carteiras da sala, decretou-se que:
1º- Todos os alunos reprovados na 1ª e 2ª chamadas terão direito a uma 3ª.
2º- Por enquanto – dado que se deve atender à extrema mutabilidade das decisões emanadas superiormente – os alunos só têm direito a duas chamadas. Por tal motivo, os que já fizeram duas, por desconhecimento destas leis recentes, não terão terceira, atendendo a um critério de coerência que a Escola faz questão em salvaguardar.
Considerou-se em seguida a necessidade de simplificar as provas orais, de tal maneira que bastaria uma resposta correcta por parte do aluno para este alcançar o cobiçado 10 sem mais trabalhos.
Para ajudar o processo, um dos professores, com um espírito de colaboração devidamente apreciado pela directora, sugeriu um método pedagógico particularmente estimulante: ao pôr uma pergunta que implicasse o “sim” afirmativo, o professor deveria acompanhá-la com o movimento pendular de cabeça correspondente. Se a pergunta implicasse resposta negativa, o professor abanaria a cabeça asininamente. Ao aluno caberia, pois, apenas a tarefa de interprewtar inteligentemente os movimentos de cabeça do seu professor. Para ter garantida a passagem, bastar-lhe-ia interpretar um deles, o que corresponderia à tal resposta correcta salvadora. O aluno mais brioso tentaria diligentemente interpretar os dois movimentos e assim alcançaria um acréscimo de valores.
Deste modo, de acordo com o critério de valorização oral, decidiu-se que seria justo estendê-lo à escrita, onde os movimentos pendulares dos professoresz não teriam cabimento. Por isso, dispensar-se-ão das orais, os alunos que na escrita alcançarem a brilhante média de 6,5 valores, para não correrem o risco de fulminar com o seu brilho oral os professores desprevenidos.
Aos alunos de cotação inferior a 6,5 valores dar-se-lhes-á a oportunidade de tentarem uma segunda chamada para aumentarem de cotação.
Se continuarem a insistir, todavia, superiormente, dilatar-se-lhes-ão sem dúvida as oportunidades, pelo que os professores ficarão esperando atenciosamente a sua insistência ao longo das férias.
O critério de benevolência dispensadora das orais aplicar-se-á apenas aos alunos cujas notas ainda não foram afixadas. Aos outros dar-se-á, como se disse, a oportunidade de cilindrarem os examinadores com as suas orais esmagadoras e todas vitoriosas, dada a actual expansibilidade da letra V digital.
Nada mais se tratou nesta sessão, o que foi observado com profunda estranheza por alguns professores, habituados a sessões escolares de politização extraordinariamente impetuosas pró-Frelimo e contra o resto.
Tendo-se, pois, aquela encerrado em perfeita paz de maneiras, dela se lavrou a presente acta, assinada alegremente por mim e pela nossa compreensiva directora. 1974»


Do mesmo livro “Cravos Roxos”, Parte III – “Memórias dum professor do liceu” – extraio a seguinte passagem:

“Resultados péssimos dos exercícios escritos. Prefiro não ter de dar notas finais. Os alunos também não desejam as minhas notas, porque entretanto souberam segurar-se a outras bandas. No final do ano é um pedinchar de notas impressionante. E professores há que tudo concedem, numa busca ansiosa da simpatia estudantil, ou num receio estulto da sua antipatia.
País de mendigos e de trapaceiros, nem sequer nele destoa o espectáculo miserável de alunos estendendo a voz pedinchona para a dispensa de exame, ao professor a quem, provavelmente durante o ano desprezaram os ensinamentos, cientes da vantagem do método final!
Fico abismada com os três ou quatro professores que em cada um dos meus terceiros anos não conhecem senão as notas de 16, 17 ou 18.
Justificação final de uma professora perante o conselho de gestão: “Dou 16 aos alunos que nada sabem, 17 aos que sabem um pouco e 18 aos que ultrapassam esse pouco.”
As dispensas de exame chovem, naturalmente, nessas turmas, o que não sucede, aliás, com outras turmas do 3º ano, onde o critério de classificação foi mais equilibrado, Chego mesmo a cumprimentar, num arroubo de entusiasmo, a professora de Matemática de um 2º ano que reprovou escrupulosamente, sem receio das consequências sobre o seu físico ou a sua reputação.”

A minha amiga concordou que o caso do salto possível do 8º para o 10º não é inédito entre nós, no pós-abril revolucionário. E tristemente refere as centenas de escolas que vão agora fechar, como cereja por cima do bolo da nossa estulta política educativa, centrada não na valorização do cidadão, mas na obtenção do diploma valorizador para efeito de estatística comparativa:
- Em suma, não é preciso estudar, o que é preciso é diploma. Há gente sem diploma na mão. Parece muito mal.

Poupanças

No artigo “Dois em um” de “Público”, 1 de Junho, considera Vital Moreira o tema da diminuição das autarquias locais, como imprescindível para a redução da despesa pública. V. Moreira apresenta-se, no final do texto, como professor universitário. Deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido Socialista.
O tema pode ter a sua relevância. É preciso poupar e estes desperdícios de excesso de autarquias foi a forma que Vital Moreira achou para uma política de poupança estrutural num país de esbanjamentos governamentais, nacionais, pessoais, de dinheiros alheios, que ninguém se preocupa em repor. Porque nem sequer estamos certos de que os cortes nos vencimentos e os aumentos dos impostos servirão para isso, tais os buracos a tapar já existentes e os outros que se projectam, nos ziguezagues da nossa política de mentira, entregue a indivíduos habituados a gritar e a parir ratos, o que não é tão despiciendo assim. Porque os ratos roem, roem, roem. E não só a rolha da garrafa do rei da Rússia, que essa é passado popular. Os ratos não constroem, roem. Já roeram os campos, já roeram as pescas, os artefactos, a língua.
No seu artigo, Vital Moreira, professor catedrático, escreveu, dentro das normas estabelecidas pelos roedores linguísticos que nos governam: afetam, setores, objetivos, adoção, direta (2), atuais. Roeu, pois, as consoantes do étimo latino que estorvava, porque consoantes áfonas, que os roedores de vanguarda acharam por bem eliminar, na sua ânsia de prostração perante os espaços amplos de um Brasil que portugueses descobriram e cuja língua os brasileiros corromperam, naturalmente, impondo agora eles, as suas corruptelas linguísticas, inúteis à subserviência da nossa fome e da nossa falta de brio.
Outros o vão fazendo. Dengosamente. Mesmo aqueles que construíram úteis saberes a gerações de aprendentes reconhecidos, caso de Carlos Reis, indiferente a essa língua a cuja teta mamou e que desprezou sem pejo.
De resto, sem pejo é o termo que nos define como gente. Sem escrúpulos também. Que, sem pejo e sem escrúpulos, destruíram a sua própria nação. Porque não fazê-lo à língua dessa mesma nação?
“Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua e já onde for
Senhora vá de si, soberba e altiva...”
Mas António Ferreira era doutro tempo, coitado. Ainda tinha esperança.
Quem vai senhor de si agora são outros. Os dilapidadores. E não só da língua, que isso pouco importa. Os do erário, nosso ou alheio. Mas para seu próprio proveito, não da naçãozita que sobrou. Até ver.

sábado, 5 de junho de 2010

Jogatina

A seguinte fábula de La Fontaine
É muito interessante
Para os dias que por nós correm,
Em que usamos facilmente
Siglas, santos e senhas
Para passarmos mais eficazmente
As mensagens discretas,
Geralmente secretas,
Embora, muitas vezes, com escutas,
Dos nossos conluios de patranhas
Que os ouvidos nos ferem
Tanto o rumor que entre nós geram.
O que é certo é que La Fontaine
Já sabia disso, e por isso
Poderemos concluir
Que o homem nem sequer
Conseguiu, desde então,
Progredir
Em positiva evolução.
Porque a lição
De La Fontaine
Era apenas uma prevenção
Para nos acautelarmos,
Contra o lobo feroz.
Mas nós
Não a tomámos como tal,
E usamos e abusamos
Desses jogos do poder
Para melhor enganar
O vilão
Quando os vilões
São eles.
Vejamos a fábula então
Que certamente
Nos vai entreter:

“O Lobo, a Cabra e o Cabrito”

«Madame Cabra,
Ao ir a sua arrastada teta encher,
A pascer
A tenra erva do prado, ali mesmo ao lado,
Fechou a porta com a aldraba
Depois de ao seu filhote dizer:
“Pela tua saúde e vida também
Não abras a porta a ninguém
Que o seguinte santo e senha
Não tenha:
“Maldito seja o Lobo e toda a sua raça” .
Acabava ela de falar
Quando o Lobo por acaso ali passa.
Sem que ninguém lho impeça,
Na memória as palavras da senha fixa
Para as aplicar logo que possa.
Madame Cabra, como é de supor
Não tinha visto o glutão,
Que era um bom estupor,
Para usar um termo menos convencional,
Embora sem ser por mal.
Assim que vê a Cabra partir
Sem grande ponderação
Imita o seu tom de voz,
Voz fininha, de falsete,
Pede que abram, e sem sanha
Diz a senha: “Maldito Lobo!”
Julgando que iria entrar logo a seguir.
O cabritinho espertinho suspeitou,
Pela fenda olhou,
E disse com muita manha:
“Mostre-me a patinha branca
Sem o que, juro e jurarei
Que a porta não abrirei”.
Ora a pata branca não é definitivamente,
Coisa usada entre os lobos
Como sabemos especificamente.
Surpreendido, pois, com tal linguagem,
O Lobo pisgou-se para outra paragem.
Onde estaria o cabritinho
Se tivesse acreditado, sem mais outra prova,
Na palavra da senha
Que o Lobo, com artimanha,
Pronunciou
Sem nenhuma vergonha?

Duas certezas valem mais que uma
Em suma,
E jamais
O excesso delas foi demais.»

Ora aqui está uma lição
De longo alcance,
Sobre a averiguação
Na identificação da verdade.
O que é preciso é
Encontrar o ponto fraco
Dos mentirosos.
Mas, cautelosos,
E sem entranhas
Nem sempre estes
Se deixam apanhar,
Justamente porque
São poderosos
Os seus alibis
De santos e sanhas
E pontos nos is,
Muito preciosos
Para a ocultação
Das suas patranhas
Tamanhas.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A pluma de Alegre

«Letra para um hino – por Manuel Alegre

É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre. »


Manuel Alegre apresentou todas estas possibilidades, bem boas, creio que num tempo em que lutava por elas, o que lhe transmitiu uma aparência grave e uma voz triste de pensador altruísta, que partilhava os problemas do povo, porque isso fazia parte da doutrina que ele muito amou juntamente com o pão, e que pôs em prática, assim que pôde, para a sua concretização.
Agora as possibilidades – no que toca a si próprio, pelo menos - são um facto real, o amor e o pão sobram-lhe, vai a caminho da presidência do seu país, provando que foi, de facto, possível viver de outro modo, pois soube bem transformar a sua mão - com a sua pluma - em arma, provavelmente em riste, para maior eficácia.
O certo é que o povo ama a sua pluma, o povo lhe dará, pois, o pão que ele pediu para o povo. Mas creio que não se lhe dará doravante que o povo murche ou finja que vive, que a presidência do país é um lugar de fachada e não propriamente de decisão, excepto em casos específicos, que possam ferir os brios dos presidentes.
E foi assim que Alegre conquistou, olhando os astros, novos horizontes, com a obrigação política actual de “dar a cara nesta hora para enfrentar sem subterfúgios a dura realidade”, como ele escreveu algures.
Referia-se, na questão da realidade dura de agora, às penalizações que vão incidir sobre os portugueses, como meios de austeridade impostos pelo governo para combater a crise, que ele acha de três dimensões, – “a financeira global”, “ a europeia” e “a imediata nacional”, fazendo a sua análise baseado em fontes. Mas ele não está ali para exercer oposição, embora, como conhecedor da alma lusa, afirme que “os portugueses não estão disponíveis para viver sem esperança”, frase que se aproxima expressivamente das frases do seu hino de possibilidades, onde nos exortava a vivermos de pé. Parece que dantes vivíamos de rastos, e acho que não se referia apenas às tropas de Nambuangongo.
Mas agora, pese embora a existência de bastantes dos nossos sempre em pé, também há casos pontuais a viverem de rastos, apesar da exortação contida no seu poema e não sei se Manuel Alegre se irá importar mais com isso, pois, como já disse e repito - mesmo sem ser da forma tautológica da sua poesia melancolicamente ambiciosa, por tradição fadista - o seu lugar como presidente será apenas de fachada, com cortes de fitas e passeios populares de auscultação, no que toca a realizações em prol da grei. Pelo menos fomos habituados a isso, são coisas que fazem parte dos nossos costumes
Quanto a andar sem olhar para o chão, mais uma das possibilidades contidas no seu hino, não aconselho, pois já tenho malhado, quando me descuido, no empedrado manhoso da nossa calçada. Mas foi porque me deixei murchar. Há sempre quem possa olhar para o ar, ou para os astros de Alegre, mesmo na nossa calçada de lombas e covas, livre de embaraços e a gritar não. Fazendo greves.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

O Curral

Li hoje à minha amiga o comentário que fiz ontem a um professor indignado com uma anedota aposta a um livrinho infantil, com grave ofensa às professoras do nosso país, sobre a produção dos animais domésticos, na resposta da criança: O carneiro dava lã, a galinha ovos, a vaca trabalhos de casa.
A anedota, minimizada na sua dimensão destrutiva por alguns que o professor Luís Reis cita, provocou uma bela reacção neste, em defesa da honra da sua classe, neste caso representada pelo sexo feminino, mais fragilizado no foro anedótico do nosso país, creio que por um arreigado espírito machista, que escancara o riso alarve e alvar da nossa falta de educação ancestral.
Eis o texto que me chegou por email:

Vejam isto. A falta de respeito pelos professores já chegou às editoras.”

“Professoras como "vacas"... Editora Civilização”

Isto é realmente uma vergonha!!! Denunciem!!!!
«Boa tarde,

Serve o presente email para vos informar que enquanto docente nunca
irei utilizar / adoptar manuais da vossa editora, pois ainda sou dos
"bois" que passam trabalhos de casa (ainda que poucos).
Muito obrigado pelo excelente serviço que prestam à educação em Portugal!

“Colegas

Deixo-vos descobrir esta publicação infeliz da editora Civilização...
Nos tempos que vivemos nas nossas escolas isto é a "cereja no topo do bolo"...
É inaceitável este tratamento, quer à nossa classe ou a quem quer que
seja! O livro tem a função de educar e construir e este, em poucas
palavras, deita por terra o nosso trabalho de pais e de educadores...
Haja competência e principalmente respeito!!!»
Para terminar não posso deixar de me solidarizar com toda a classe de educadoras desse país, grosseiramente enxovalhada e desrespeitada na sua dignidade.”

“Ora bem - No caso da piada afectando toda uma classe, a das professoras e educadoras de nossos filhos, o professor Ramiro Marques que foi o primeiro a denunciar públicamente o caso no seu blog ProfBlog, apesar de desvalorizar o incidente, admite que "a situação tem a sua gravidade". Até porque "há muitos alunos que chamam vacas às professoras. E esse é que é o problema", sublinha....
Para este professor, a anedota é levada ainda mais a sério devido às circunstâncias. "Veio numa altura má, porque os professores lidam com injúrias todos os dias e não conseguem travá-las. Os alunos desrespeitam-nos e os pais depois ainda os defendem", explica. O docente acrescenta que se o livro tivesse saído há seis anos ninguém ia levar a mal.
O autor do blogue conta que foram colegas da escola que lhe mostraram o livro com a anedota. Na sua opinião, este tipo de situações só acontece porque em tempos, responsáveis como secretários de Estado e directores regionais da Educação, puseram em causa a imagem dos professores.... E claro que isto se reflecte no bem-estar e na motivação dos professores, alerta Ramiro Marques.
Quanto ao impacto que esta anedota pode ter nas crianças, o psicólogo Jorge Gravanita diz que cabe aos pais desvalorizar a situação. "É uma piada de mau gosto, mas os pais devem explicar o seu sentido", esclarece.
(Fonte: Diário de Notícias)”


Gostei da iniciativa deste professor, que encima o seu texto com uma conhecida frase de Mahatma Gandhi – “Perderei a minha utilidade no dia em que abafar a voz da consciência em mim.”, e só estranho que poucos professores tenham saído à liça em defesa da sua honra e da sua classe.

O repúdio do professor, todavia, pecou, quanto a mim, por uma autodefesa que pôs em causa, de certa forma, o uso de trabalhos de casa, embora justamente condenando os manuais provindos da tal editora que pretensiosamente se apoda de “Civilização”.
O meu comentário foi um pouco precipitado, pois o professor Luís Reis não pôs, de facto, em causa, os manuais escolares mas apenas o da megalómana editora “Civilização”. Mas conheci professores que os eliminavam do seu ensino, optando pelos seus próprios recursos de construção de textos orientadores, e isso me pareceu sempre uma forma de destruição da unidade de ensino. Além de que penso que os manuais escolares ganharam em profundidade de conhecimentos, pelo menos os de literatura portuguesa. Quanto aos trabalhos de casa, poucos que sejam – devem ser poucos, tendo em conta a multiplicidade das disciplinas – creio-os de grande utilidade como reflexão final sobre a matéria leccionada em cada aula, e servindo, através da sua correcção, como motivação, muitas vezes para a aula seguinte.
Hoje, contudo, com o equilíbrio escolar estilhaçado, ajudado a isso até por uma editora criminosa, autêntica anedota civilizacional, mau grado aqueles que pretendem desmistificar democraticamente colaboradores na infâmia do desleixo nacional, o impacto do crime educativo representado na anedota do livro infantil, tudo o que acabo de escrever sobre unidade do ensino parece risível.

Mas transcrevo o meu comentário a Luís Reis, pedindo-lhe desculpa por o ter interpretado apressadamente:

Já tinha lido a história num jornal, história que, naturalmente me indignou. Não por ter sido professora, mas por ser uma pessoa, simplesmente, e a anedota não provém de um ser que se possa considerar isso. Como professora, todavia, sempre respeitei os manuais que eram escolhidos para leccionar. Uns melhores, outros piores. Mas relativamente aos meus tempos de estudante e até de professora em tempos distantes, considero os manuais - pelo menos os de línguas - superiores aos desses tempos. Os de Literatura Portuguesa foram um encanto, com orientações de matérias e trabalhos para casa, alguns, pedantes, outros de muito interesse formativo. Por isso eu não generalizaria. Acho que quem fez o texto que cita devia ser processado.”

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Sopas


A primeira vez que a minha amiga me apelidou de “Esopa”, abespinhei-me, por ter entendido “É sopa” e não gosto que me chamem nomes que sugiram materialidade, mesmo mole. Até pensei que tivesse tido algum contacto telepático, ou mesmo mediúnico, com o sr. Casimiro Rodrigues que também acha que as minhas traduções de fábulas são sopa não suficientemente vitaminada para o seu jornal, do tipo canja para doentes. Mas a minha amiga desfez o engano, justificou cabalmente a alergia do sr. Casimiro à vitamina F - de Fábula, no sentido de patranha - e não a que combate um ror de maleitas, segundo informa o respectivo site da Internet. E passo a citar:

Benefícios:
«- Previne o depósito de colesterol nas artérias.
- Contribui para a saúde da pele e dos cabelos.
- Protege contra os efeitos danosos dos raios X.
- Favorece o crescimento e o bem-estar, influindo sobre a atividade glandular e colocando o cálcio à disposição das células.
- Combate enfermidades cardíacas.
- Ajuda na redução de peso, queimando as gorduras saturadas.

Doenças causadas pela deficiência
- Eczema
-Acne

Fontes Naturais
-Óleos vegetais de amendoim, de germe de trigo, de linhaça, de girassol, de açafrão e de soja
- Amendoim
- Semente de girassol
- Noz-pecã
- Amêndoa
- Abacate

Recomendações
- Para melhor absorção da vitamina F, tome vitamina E juntamente com ela na hora das refeições.
- Se você consome grandes quantidades de carboidratos, necessita de mais vitamina F.
- Se a sua taxa de colesterol está alta, tome quantidades adequadas de vitamina F.
- Embora a maior parte das frutas secas seja excelente fonte de ácidos graxos insaturados, a castanha-do-pará e de caju não são.
- Fique alerta com as dietas que utilizam grandes quantidades de gorduras saturadas.»

A Internet é, de facto, uma fonte de saber, concordou a minha amiga que, todavia, estava mais preocupada com o assim vai o mundo português:
- Olhe lá, e o que é que se anda a dizer do Cavaquinho? Que vai perder por causa dos gays. Só vi que estão a cortar nele, porque apesar da sua dor de alma, votou pró matrimónio. Não viu que o da Igreja censurou?
Creio que se referia ao bispo da Guarda, de apelido Felício, julgo que sem antífrase.
– Ai, mas também se não for ele, quem é?
Referia-se à presidência da República. Mas eu esclareci, felice com o meu saber:
- Eles bem queriam o Bagão Félix - não o cabo Gardafui, “infelice” por antífrase, segundo Camões, que se viu grego por lá. - Mas o Félix não alinha, que não é de antífrases.
A seguir, foi a notícia do encerramento de centenas de escolas:
- Mas esta notícia das escolas é tão alarmante! As escolas fechadas! Aquilo é falta de crianças. Este país fica aberto com os emigrantes. Senão, fecha. Se se fala em filhos, dizem: “Como é que eu vou ter outro filho?” Mesmo os ricos. O Mourinho, o homem mais importante do mundo - já está acima de Jesus...
Escandalizo-me com a heresia, mas a minha amiga prossegue:
- No mundo inteiro, ninguém ganha mais do que ele... só tem dois filhos. Agora só espero que ele faça uma fundação na terra dele, que é Setúbal, p’ràs criancinhas. Mas as escolas fechadas! A escola junto ao Pingo Doce de S. João, moderníssima, tudo do bom e do melhor, inaugurada com pompa e circunstância, meteu ministros... Pois tem meia dúzia de crianças, a maioria africanas. Vê-se nos intervalos. Será que fecha? São meia dúzia, as crianças.
- Pois! Os critérios de encerramento apontam para menos de vinte.
- Leia-me isto!
A minha amiga procura um panfleto na mala e entrega-mo com determinação. Chama-se “A Vida num pacífico Mundo Novo”.
- Eles acreditam. São Jeovás. Quando nos encontram na rua, vêm com isto na mão: “Acredita que vamos ter um mundo melhor?” E eu respondi à senhora: “Não parece”. Mas leia isto. Também quero saber a sua opinião, porque eu sou muito “atua”.
Docilmente guardei o panfleto que estou lendo. Promete um novo Éden na Terra, com muita amizade entre todos. Mas só desde que obedeçam a uns requisitos. Cita as fontes bíblicas, do Génesis, Salmos, Profetas, Evangelhos, Apocalipse, um chorrilho de informações. Mas é necessário ser obediente a Deus, sem o que, não há Éden para ninguém.
Depois de ler, tornei-me “atua” como a minha amiga. Foi canja.
Foi esta a nossa “Sopa” de hoje, “Soap” para os mais requintados nas lavagens.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Os gaios no seu final

As fábulas seguintes
São para deixar
Finalmente,
Os gaios de Esopo em paz,
Traduzidas para francês,
Nas páginas ímpares,
Do grego, nas páginas pares,
Para português, do francês,
Sem páginas especiais,
Naturalmente,
Mas navegando na NET,
Para quem de histórias de animais
Gostar.

A primeira é esclarecedora
E até mesmo enternecedora,
E poucos de nós escapamos
A casos assim como o do gaio
Que querendo mudar para melhor
Ficou bem pior
E até se tramou.
É uma advertência
Sem grande ciência.

A segunda também é uma advertência
De grande transparência,
Sobre a superioridade
Do poder e do saber
Sobre a beleza
Para quem se propõe governar.
Não é o que nos acontece, é bem verdade,
Que nós temos o culto da beleza
Desde que somos maiores de idade,
E isso vem já dos idos de abril
Dizem os vencedores.
Julgo que não vamos mudar,
Embora o que eu estou a afirmar
Seja pouco gentil.
Mas sem intenções piores.


6ª Fábula de Esopo: “O Gaio fugitivo”

«Tendo capturado um gaio
Um homem atou-lhe um fio de linho
À pata
Sem pensar fazer-lhe mal.
E deu-o de presente ao filho
Para este brincar na mata,
Ou mesmo no seu quintal.
Ora o pássaro que detestava
A companhia dos homens,
Até mesmo dos mais jovens,
Aproveitou um instante de liberdade
Para se escapulir
E ao pátrio ninho regressar
Em celeridade,
Saudoso do doce lar.
Mas o fio enrolou-se nos ramos
Da mata,
Impedindo o gaio de voar
E de ao lar voltar.
Percebendo que não escaparia
Disse consigo: “Pobre de mim!
Eu achava intolerável
Ser escravo entre os homens,
Até mesmo dos mais jovens,
Sem perceber assim
Que da vida
Me privava!
Adeus vida apetecida,
Mesmo sendo escrava,
Pobre de mim, sim,
Que não voltarei ao pátrio ninho!”
E assim se lamentava
Era uma dor de alma ouvi-lo!

Esta fábula pode aplicar-se
A quem, desejando furtar-se
A um um perigo medianamente
Temível,
Se lança, inadvertidamente,
Num perigo mais horrível.»


7ª Fábula:
“O Pavão e o Gaio”

«Os pássaros deliberavam
Escolher um rei,
E o pavão julgava-se com direito
A ser ele o eleito
Devido à sua beleza de lei.
Já os pássaros se rendiam
Às suas razões de peso
Quando um gaio,
Passaroco instruído,
Exclamou, esclarecido:
“Mas se, no teu reinado
A águia nos perseguir
Que socorro nos darás?
Que soluções nos trarás?”

A fábula mostra que os chefes
Se devem distinguir,
Com toda a certeza,
Pelo seu poder e saber,
Não pela sua beleza.»

Mais uma de gaios

“O gaio e as pombas”

«Um gaio, avistando num pombal
Pombas muito bem nutridas,
De branco se tingiu para a elas
Parecer igual,
E a sua mesa partilhar
Por conter
Ricas comidas.
Enquanto permaneceu mudo,
Por pomba passou,
E na companhia delas viveu.
Mas no dia em que gritou
A sua voz pareceu
Suspeita às pombas espantadas
Que o expulsaram, formalizadas.
Vendo que a mesa do pombal
Lhe estava agora interdita
Para junto dos seus voltou;
Mas levou sopa.
Porque os seus congéneres
Deixaram de o reconhecer
Por causa da sua nova roupa
E, sem soma de caridade,
Excluíram-no da sua sociedade.
Foi assim que, por ter querido dupla ração,
Se viu à nora
Privado de uma e de outra
De ninguém obtendo perdão,
Com toda a razão.

Também nós devemos
Com os nossos bens satisfazer-nos
Pensando que, as mais das vezes,
Não só não ganhamos nada,
Mas perdemos o que temos
O que é uma maçada.»

Isso, é claro, era no tempo
Em que Esopo contava fábulas,
O que foi há muitos séculos,
No tempo em que os animais falavam.
Mas enquanto eles perderam
As suas capacidades
De falar e de se relacionar,
Hoje são outras as rábulas.
Ninguém se lembra de aplicar
A moral das fábulas aos homens
Que se estão nas tintas para ela,
Porque é outra a moral deles
Que evoluiu tal como eles.
De facto, do mesmo modo que o gaio
Até chegam a mudar de cor
Para se enfiar à mesa de um Senhor
Que lhe pode servir, não ocasionalmente,
Mas por combinações antecipadas
Por vezes mesmo escutadas
Que logo são apagadas,
Em conluios que valem perfeitamente
Para as ambições jamais goradas
Quando feitas com a gente conveniente.
E ao contário do gaio,
Que foi desprezado por uns e outros
Estes, que são gente decente,
Vêem-se cada vez mais admirados
E homenageados
Subindo na vida,
Sempre respeitados.
Moral de fábula é treta
Para gente pateta.