segunda-feira, 31 de maio de 2010

“O Gaio e a raposa”

«Um gaio esfomeado
Estava pendurado
Numa figueira.
Mas constatando
Que os figos estavam
Ácidos ainda,
Ficou esperando,
Em vigilância,
Que amadurecessem.
Uma raposa ali o encontrou,
A eternizar-se,
Numa constância
Que a espantou.
A causa perguntou
De tal pasmaceira.
E exclamou,
Assim que o gaio
Lha explicou:
“Que disparate,
Meu caro gaio,
Ficar ligado
A uma esperança
Tão irrisória!
É aliciadora,
Mas não enche o papo,
Qual história!

Esta fábula visa
O espírito mexeriqueiro»,

- Segundo o fabulista -
Já que a raposa intriguista
Não aceita a parolice
De se ficar pendurado como um paio
À espera de uma felicidade
Que demora a vir,
Como fez o gaio
E a raposa disse,
Achando tolice.
Mas na opinião do tradutor francês,
Daniel Loayza,
Da editora Flammarion,
Deve ser engano a grega palavra
De moral absurda.
Por isso propõe outra,
Emendando Esopo,
A qual significa antes
Espírito vitorioso,
De lutador sem tréguas
Por muitas mágoas
Que deva atravessar
Por azar.
Talvez seja verdadeira
Esta interpretação
Que o nosso Pessoa também usou
A respeito do Bojador
Aplicável a todo o lutador:
- “Quem quer passar além do Bojador,
Tem de passar além da dor” -
No caso da utopia do gaio
O termo que Esopo usou,
Atribuível à raposa maliciosa,
Sempre pouco generosa,
Aceito essa lição.
Porque as pessoas intriguistas
Que não têm mais que fazer
Do que na pele dos outros roer
Merecem condenação
Por não deixarem cada um ser
Como lhe apetece ser
Ou viver.
Se, por seu lado,
O tradutor francês tiver razão,
Longe de mim a ideia
De discordar.
Mas o gaio empoleirado
À espera de se banquetear,
Lembra-me os tais que esperam Godot
Sem quase se mexerem
Para o merecerem.

Não, não devemos o gaio imitar.
É preciso trabalhar.
Por isso a raposa tinha razão
Em troçar.
Se era intriguista ou não
Ao menos uma vez
Devemos dar-lhe razão.
Embora o Esopo nem sequer fosse
Da mesma opinião.

domingo, 30 de maio de 2010

Fábula de Esopo e do tempo de agora

“O gaio e os corvos”

«Um gaio que os outros em tamanho excedia,
Ao exibir a sua alta figura,
Acabou por os seus congéneres desdenhar
Por achar,
Em altiva comparação,
De auto-afirmação,
Que aqueles tinham fraca envergadura
Para com eles poder
Conviver.
Então,
À sociedade dos corvos se dirigiu
Para ver se ela o recebia
Como ele achava que merecia.
Mas o que viu
Foi que os corvos consideraram
Suspeitas, a sua voz e a figura
De tamanha postura,
E o desancaram
E o expulsaram.
Assim, pelos corvos desprezado,
Com muita amargura
Voltou a juntar-se, incomodado,
Aos gaios.
Mas os gaios
No seu orgulho chocados
Pelo abandono anterior
Deste gaio impostor,
Recusaram-se a acolhê-lo
Optando por expulsá-lo.
E foi assim
Que de uns e outros abandonado,
Ficou privado
De um lar salvador.
O seu orgulho de dimensão superior
Foi muito maltratado,
Sim.

O mesmo acontece com os homens,
Quer sejam velhos ou jovens:
Os que abandonam a sua nação
E optam por outra terra,
São, por fim,
Vistos em todo o lado
Sem nenhuma comiseração:
Nesta, por serem estrangeiros nela;
Odiados naquela
Pelos seus concidadãos,
Por os terem desprezado
Sem qualquer razão.»

É a moral de Esopo,
De um tempo em que, afinal,
Já havia deslocações
Com emigrações,
Em busca, talvez, de novidades,
Ou sequer de melhores condições
Quando não de duras expulsões -
Expatriações.
Mas hoje,
Na aldeia global,
Não se passa tal.
Dum modo geral,
Todos são tratados com amor,
Tanto no país natal
Como no país de escolha
Onde as condições de sobrevivência
São às vezes - mas só por excepção,
Digo-o com convicção -
Superiores em valor
Às do país natal.
Mas o amor existe, afinal,
Desde que se governe com a ciência
Do coração
E com o sentimento
Da razão,
Como bem se deseja
Para que se veja.
Anarquicamente.

Na realidade,
Não temos razões de queixa,
Felizmente,
Nem sequer inveja,
Pois somos amados
Com autenticidade.
Só desejamos, convictamente,
Que Nosso Senhor nos proteja
Sucessivamente,
Sucessivamente
Sucessivamente.

sábado, 29 de maio de 2010

Os Gaios de Esopo e de La Fontaine

Pavonear-se com as penas de pavão
É uma expressão
De tal modo corriqueira
Que não encontro maneira
De a alterar,
Pois o pavão tem penas
De uma beleza invulgar,
Embora a da Fénix
Fosse superior,
Porque podia, fresca, renascer
Depois de morrer a arder.
Mas enquanto Esopo foi buscar
As penas dos passarinhos
Para um gaio enfeitar
Que delas se apoderou
Para melhor merecer
O título de realeza,
Voltaire usou mesmo o Pavão
Como termo de comparação,
Com objectivos literários
Para acusar os plagiários.
Mas todas essas questões
Estão tão banalizadas
Que as rainhas de beleza
Conquistam galardões
Tendo feito operações
Aos narizes e aos peitos
P’ra ficarem mais perfeitos
E isso não é indecente.
Contudo os plagiários
São alvos de ataques vários
Embora a intertextualidade
Justifique a indignidade
Com a imitação por preceito.
E isso é bem fascinante
Num tempo em que a rota batota
Figura como instituição
A que ninguém põe travão.

Leiamos em tradução:

De Esopo: “O Gaio e os Pássaros

«Tencionando um rei dos pássaros coroar,
Zeus intimou a passarada
A diante de si comparecer
Carregada
Com as qualidades que em si reconhecesse
- Se as tivesse -
Para merecer tal dignidade.
Consciente da sua fealdade,
O gaio revestiu-se
Com as penas caídas
Das outras aves mais descontraídas
Ou menos preocupadas
Com posições de realce.
No dia aprazado, o gaio
A Zeus se dirigiu, arvorando
A sua plumagem multicor
Com ar superior.
E como, pela sua beleza,
Zeus ia nomeá-lo rei,
Sem qualquer estranheza,
Mau grado a sua real grandeza,
Que exigiria mais esperteza,
Os pássaros, ultrajados, protestaram
E o gaio enfeitado cercaram,
Uma a uma as penas retomaram
Que lhes pertencia por direito.
Deste jeito,
Assim despojado e maltratado,
O nosso gaio não foi mais do que um gaio.
Raio!

O mesmo acontece com as pessoas
Com dívidas no seu viver:
Enquanto usufruem do dinheiro alheio
Parecem ser
Grandes personagens
De lindas plumagens.
Mas logo que restituem o dinheiro
Às vezes por imposição
De quem condena o ladrão,
Regressam ao estado primeiro.»


De La Fontaine: «O Gaio ornado com penas de Pavão”

Um Pavão estava na muda:
Um Gaio apanhou-lhe a plumagem,
Depois adaptou-a à sua própria imagem.
Seguidamente,
Sem mais ponderações,
Foi pavonear-se
No meio dos outros Pavões,
Julgando-se bela personagem.
Por alguém reconhecido,
Logo se viu escarnecido,
Apupado, assobiado,
Troçado, perseguido,
Indecentemente depenado
Pelos outros senhores Pavões,
Estranhos figurões.
Tendo-se refugiado
Entre os da sua igualha,
Foi por eles posto no olho
Da rua.

Muitos gaios há, de dois pés como este,
Que se adornam com os despojos alheios:
Chamam-se plagiários.
Eu calo-me, não quero perturbá-los
Com semelhantes aborrecimentos.
Longe de mim tais intentos.»

Modernamente,
E para responder a ambas as fábulas
Na questão da realidade,
Se as misses tivessem
Que se despojar
Dos silicones correctivos,
Ficariam
Menos misses de beleza
E retomariam
O estado primitivo
Da sua verdadeira
Identidade.
O mesmo poderíamos dizer
Dos plagiários vários
Regressados a uma situação
De escrita própria
E sem mistificação.
Quanta desilusão !

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Os Gaios de Esopo

!ª Fábula : «A Águia, o Gaio e o Pastor»

«Lançada de um rochedo erguido em alta serra
Uma águia aterradora
Sobre um cordeiro se lançou
E o filou.
Um gaio que a viu isto fazer
Com ela quis rivalizar
E candidamente
Sobre um carneiro se deixou cair
Batendo ruidosamente
As asas sobre o seu velo.
Mas as suas unhas
Ficaram no momento
Presas à lã e o pobre gaio
Debatendo-se aflitivamente
Não alcançou
O pretensioso intento.
O pastor que o avistou
Chegada a noite, acorreu,
E o capturou
Para aos filhos o dar de presente,
Depois de, com extremo cuidado,
As asas lhe ter aparado.
E aos filhos respondeu
Por eles interrogado,
Sobre a identidade da ave:
- “Sei perfeitamente
Que não passa de um gaio
Tosco e burlesco,
Mas por águia ele quer tomar-se,
Sem razões de peso
E com tanto risco
Pobre tosco!»


Neste nosso mundo
Há os que são águias
Há os que são gaios
E há também os párias
Que nada são senão
Aquilo que são
E mais não podem ser
Por razões que ninguém
Conhece muito bem
Nem quer sequer
Saber.
As águias lutam cautelosamente
Por cordeiros obter
Tenros, deliciosos
De sabor diferente.
Estão-lhes no papo,
Que eles sabem comer.
Os gaios vaidosos
Querem imitá-los
Atirando-se gulosos
Aos carneiros logo,
Duros de roer,
Ficando caídos
P’ró lado, falidos,
Sem naco, sem saco,
Escarnecidos.
Dos párias não falo.
Falta-me calo
Para perceber.
Só sei que nós somos
Os gaios que fomos
E continuamos
A ser.
Sem pena de o sermos
E de o parecermos
E de o merecermos
Aonde quer que formos
Aonde quer que vamos
Pobres momos!

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Era dantes

“Um assassino estava a ser perseguido pelos parentes da vítima. Chegado à beira do Nilo, caiu junto de um lobo; no seu terror, trepou a uma árvore da margem para se esconder. Mas avistou uma serpente que se erguia diante dele, e deixando-se cair no rio, foi devorado por um crocodilo.
A fábula mostra que nenhum elemento, nem a terra, nem o ar, nem a água oferecem asilo seguro ao homem manchado por um crime.”

Foi o que contou Esopo, numa das suas histórias de homens e bichos, mas o que se passou com este criminoso foi naqueles seus tempos em que os Elementos eram pouco prestáveis ao homem que cometia crime. A Justiça presidia, nesses tempos, aos Elementos.
Não é o que sucede hoje, em que todos os Elementos são favoráveis, e até mesmo o Fogo, que Esopo esqueceu como Elemento da Matéria, não é actualmente elemento castigador, pois os próprios incendiários escapam ao ardor das fogueiras que atearam e que vão iniciar-se, não tarda, nos ardores do verão.
De resto, eles lá estão, no estrangeiro, ou em parte incerta os que cometeram crimes, geralmente no fascínio do ouro, crimes de burla e isso é o que mais há, sem que os tais Elementos estremeçam, e eles também não, que vão burlando todos, aqui e além, impunemente.
É certo que os Elementos da Matéria de que falava Esopo, como os pré-socráticos o faziam, esquecendo aquele, todavia, o Fogo, nada têm a ver com realidades concretas, e por isso o meu exemplo dos incêndios actuais é pura mistificação também.
Porque os Quatro Elementos da Matéria têm a ver antes, ao que parece, com as energias fundamentais do Cosmos, provenientes de uma energia primária, tudo isso contido nas tradições culturais de vários povos. “Na Grécia Antiga, os Elementos correspondiam às faculdades do Homem: moral ou espiritual (fogo), física (terra), intelectual (ar) e estética ou emocional (água)”.
Julgo, todavia, que não era isso que pensava a ninfa Tethys quando apresentou ao Gama, em prémio de repouso e gozo na “Ilha dos Amores”, a “Grande Máquina do Mundo”, “etérea e elemental, que fabricada / Assi foi do Saber, alto e profundo, / Que é sem princípio e meta limitada...” “o Padre omnipotente / Que o fogo fez e o ar, o vento e neve, / Os quais verás que jazem mais adentro / E têm co Mar a Terra por seu centro”. Não, julgo que Camões não atribuiu à sua “Região Elemental”, qualquer significado oculto que as filosofias avançam, para explicar os “Elementos da Matéria”.
Mas a tese do Esopo de que nenhum criminoso encontra acolhimento neles, está hoje bem ultrapassada. Será porque já não têm a Justiça a presidir àqueles.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Doutor com reserva

Hoje, o sr. Casimiro Rodrigues enviou-me o seguinte email, do Dr. Verdasca, em resposta a alguma observação feita pelo sr. Casimiro ao seu amigo, estranhando o novel tratamento que passei a dar ao “capitão” Verdasca, que era como eu o conhecia, antes de passar a saber dos outros seus atributos – e mais o de autor de livros de pesquisa e análise, de muito interesse. Se passei a atribuir-lhe o distintivo de Doutor, fi-lo ao conhecer que, sendo como eu, licenciado, não tinha o direito de lhe recusar tal estatuto, a quem o fez igualmente comigo, por educação, suponho, já que esse distintivo de Dr. funciona entre nós, como o Dr. Verdasca bem explica e é sabido de toda a gente, para os licenciados. Em Coimbra, segundo dizia o sr. França Amado, bibliotecário do Instituto Francês da Faculdade de Letras de Coimbra, bastava usar-se gravata, mas segundo a minha própria experiência desses tempos, bastava usar capa e batina, por isso qualquer caloiro munido do traje era doutor, mesmo sem curso.
A mim, não me incomoda, os alunos chamam “setores” aos professores, a banalização do termo é por demais provada. Só incomoda quem não tem direito a ele, mas eu aconselho a gravata, mais barata que a capa e batina.
Eis o email do Dr. Verdasca:

“Caro Casimiro,
é hábito chamar Dr. ou Dra. a quem tem um curso superior, embora só seja VERDADEIRAMENTE DOUTORA ou DOUTOR quem defendeu TESE de DOUTORADO.

No meu caso, sou licenciado em Ciências Militares pela Academia Militar de Lisboa (curso superior, como os coroneis que você conhece), sou licenciado em Administração de Empresas pela Universidade Mackenzie de São Paulo (Curso superior), tenho o Curso de Língua e Cultura Francesas da Alliance Française de Lisboa, e Pós-graduação (acima de bacharel) em Administração.

Mas isso não importa, é só para sua informação. Se eu não tivesse esses títulos, NÃO aceitaria que me chamassem Dr., caso da Dra. Berta que também é licenciada, segundo suponho.

Abraço, JVerdasca”

Para provar ao sr. Casimiro Rodrigues que eu sou superior a esses distintivos sociais, envio-lhe um excerto de um livrinho – “Melodias do Passado” – que escrevi em tempos:

“...Na escola fazíamos rodas e dançávamos “Que lindo botão de rosa”, “Eu passei por uma terra estranha”, “Aquela menina / Que está no meio / Está na idade de se casar”, e outras cantigas. Mas no quintal da nossa casa brincávamos às casinhas, cemitérios e às escolas. Das folhas de castanheiro fabricávamos chinelos cosidos com agulhas de pinheiros e sentíamo-nos muito felizes com os nossos modelos de calçado que, contudo, duravam pouco pois os pontos rebentavam. Os cacos serviam de louça, os bugalhos de panelinhas, as pedras e tijolos de mesas e bancos, e nos regos apanhávamos flores para enfeitar a casa e erva para cozinhar para as nossas bonecas de trapos, que vestíamos garridamente com panos sobrados de roupas feitas pela menina Conceição, costureira na Lomba da Bouça, que, quando casou, passou a chamar-se senhora Conceição, mudança de estatuto que me causou muita estranheza então, como primeiro contacto com os escalonamentos sociais correspondentes às diferentes etapas da vida. Mas surpresa ainda maior me causaria o caso da menina Francelina, irmã do Américo, nosso companheiro de escola, que, como casou rica, passou ao estatuto de dona - Dona Francelina, claro indício das nossas linhagens medievais, com antecedentes romanos, viria a saber mais tarde. Mais surpreendente, contudo, foi o exemplo da menina Amarilis, rica por natureza, por ser filha do sr. Celestino, dono da loja de cima, a qual, quando casou, também abastadamente, duplicou os distintivos, passando a chamar-se senhora dona Amarilis, duplicado de que eu também viria a usufruir mais tarde, salvo quando são desconhecidos os meus méritos.”

Igualmente no texto “Minha Senhora, Excelentíssimo Senhor” de “Prosas Alegres e Não” colho um pequeno excerto – neste caso, todavia, ironizando a superioridade contida nas expressões referidas no título, quando aplicadas por um “superior” a um “inferior”, marcando as convenientes e altivas distâncias, através de uma fórmula de tratamento perfidamente requintada:
“Não se trata, de nenhuma maneira, de pretender que a grosseria venha impor-se nos costumes ... ainda mais. O “minha senhora” natural e simples não é para aqui chamado. Apenas aponto a afectação, a falsa elegância e a falsa superioridade.”

Para o sr. Casimiro Rodrigues, eu sou a D. Berta e acho graça, condiz com os costumes informais do seu Brasil de adopção. Para outros sou a Srª Berta e ignoro, sobretudo quando neles noto a intenção amesquinhante, denunciante de grosseria de carácter, quando não puramente de falha na educação. O Dr. Verdasca é, naturalmente, uma pessoa educada.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ora, Dr. Verdasca! Não exageremos!

Contei à minha amiga que o Dr. Verdasca, colaborador cimeiro do PortugalClub, não concordara com a expressão que ela usara – “Antes que acabe” – no diálogo que transcrevi no texto anterior, com referência aos gastos da viagem do nosso PR a Cabo Verde, com uma pipa de assessores e mais a comitiva de que em geral se faz acompanhar esse tipo de viajantes governantes.
Afirmou o Dr. Verdasca que de facto já tinha acabado há muito o pecúlio da nação, que agora vivia do empréstimo e do corte nos ordenados e aumento dos impostos para pagar aquele à UE, que há muito nos tem beneficiado com ele, mas que agora, não sabemos por que carga de água exige pagamento, pelo menos na opinião do Dr. Verdasca, sempre severo perante as nossas leviandades relativamente à injecção contínua desses milhões, que não há impostos que cubram agora, e muito menos a insignificância da redução nos vencimentos, e por isso até já há quem diga que a redução vai ter de ser de cem por cento, ou seja, vão ter que ser congelados os salários na sua totalidade, mas a gente acha isso descalabro e não acredita, que os tsunamis são só no oriente, e temos as greves para nos protegermos.
Mesmo a minha amiga discordou em absoluto da crítica do Dr Verdasca :
- Olhe só! O “Rock in Rio” é um espectáculo que junta ali milhares. Muito bem organizado, por um pai e uma filha brasileiros que encontraram o Brasil na nossa Bela Vista. Quem olha p’r’àquilo, não há Bruxelas que acredite que há crise em Portugal. Na véspera tinha havido uma tourada a abarrotar de gente, não viu?
Confesso que não dei por essa tourada, mas a minha amiga apenas me deu tempo para acenar negativamente com a cabeça, cortando-me a resposta, embalada no seu discurso entusiasta:
- Dá a impressão de que alguém anda a mentir, quem tem razão é o Sócrates. Mas é pena não ver, para ver a dimensão que é aquilo. As pessoas foram horas antes marcar lugar. Os bilhetes a cinquenta euros ou mais. Era mais gente que p’ró Papa, que até foi à borla, este. Mas o Terreiro do Paço é mais pequeno do que a Bela Vista. Até meteu polícia no Bairro da Bela Vista. Os habitantes pobres também quiseram ver, não se conformaram com a exclusão. Ficou mesmo parecido com o Brasil, com tiros e tudo o mais que é próprio desses casos, além do espaço formidável que o pai e a filha brasileiros acharam, amplo como lá.
Eu, por mim, fiquei na dúvida, entre acreditar nas palavras cordatas do Dr. Verdasca que não costuma exagerar nestas coisas, e os conhecimentos jornalísticos da minha amiga que às vezes peca pelo exagero. Mas neste caso até vou mais na linha de pensamento dela, sobretudo ao ver os milhões de viaturas do nosso parque automóvel, mesmo que repare mais nisso quando não encontro estacionamento no Pingo Doce para o meu Lancia velhinho, como lhe chama a minha neta Beatriz, de quatro anos, especialista em marcas e ultimamente em topar a correspondência entre as horas da manhã e as da tarde – 1/13, 5/17, 12/24..., o meu recente espanto. A minha amiga diz que há mais carros do que pessoas no nosso país e eu acredito, e passa-se o mesmo com os telemóveis, que cada um de nós, segundo as estatísticas, tem muito mais que um, apesar de não ser verdade para todos.
E há outros exemplos que confirmam o nosso bem-estar económico, e devemos viver tranquilos, mesmo o Dr. Verdasca, porque sempre as excepções confirmam a regra.

sábado, 22 de maio de 2010

“Antes que acabe”

- Porque o drama do nosso tempo é que toda a gente tem assessores, montes de assessores. Agora parece que o que os gajos querem é gastar e gozar antes que acabe.
- Mas porque diz isso?
Uma coisa com que embirro é com a deselegância na expressão verbal, sobretudo quando estamos a falar de coisas graves e de pessoas que merecem a nossa deferência, mas a minha amiga nem por isso é sensível às subtilezas do meu espírito a respeito do calão ou de termos mais degradados, sobretudo quando toda ela se alarga nas novidades em primeira mão. Esta parece que a leu no Correio da Manhã. Em todo o caso, gostaria de ser mais esclarecida e contava com a minha ajuda, mas eu sou avessa às leituras pela manhã, ocupada que ando, como a Carochinha, a varrer papéis, sem, todavia jamais encontrar, como ela, a moedinha de cinco réis, por muito que me ache igualmente merecedora do prémio.
- Porquê?! Então não leu que o PR vai a Cabo Verde e leva catorze assessores? Os seis que costumavam ir nesses passeios, passaram a catorze?! Bruxelas critica, e depois eles têm a lata de se deslocar assim! Com mais do dobro dos assessores, numa viagem de milhões! Vão levar os amigos... A que propósito ir a Cabo Verde, o presidente de um paizeco com tantos milhões de dívidas? E se calhar ainda vai levar empresários, como é costume...
- Mas acha que os empresários também vão à borla?
- Porque não, se os empresários são como o Paulino que tem olho? Não vão lá fazer nada, como de costume, mas Cabo Verde dizem que tem praias e paisagens bem boas e até o ex-presidente Soares se arrependeu de não ter deixado aquilo para nós, em excepção de entrega aos seus naturais, que realmente não havia nenhum quando lá chegámos no tempo das naus e portanto parece que o ex-presidente concluiu, passada uma trintena de anos, ou até mais, que os naturais sempre fomos nós, que fomos primeiros...
- Bem sei, e o mesmo poderia dizer de S. Tomé e Príncipe, que, apesar de não ter sido referido pelo ex-presidente, perdido nas contas, ficou registado no “Equador” do Miguel de Sousa Tavares, com muita expressividade, valha-nos isso.
Mas a minha amiga estava possessa:
- Como raio é que um presidente que parece sério não se envergonha das suas viagens, quando estamos a desfazer-nos como nação?
- Sério ele? É igual aos outros. Eu até já tratei essa questão das nossas viagens pós-abril num texto de “Cravos Roxos”. É a nossa alma errante que nos leva a viajar, pode crer. Como dantes. Ora veja:

Georges, anda ver o meu país de viajantes...”
«Diz-se para aí / Que muito bem fazem eles em viajar, / Para poderem conhecer / Os sítios onde se irão divertir / Sempre que o governo o permitir / - E permite geralmente, / Generosamente. / Também viajam para espalhar / O nome de Portugal / Após a sua redução / Territorial, / Que o governo permitiu / Gloriosamente. / “Georges, anda ver o meu país de viajantes...” / Viajam pelo mundo inteiro / - Especialmente o terceiro - / Por causa do petróleo / A importar, / E das pessoas em excesso / A exportar / Do reduzido território. / Também viajam pelo segundo / E pelo primeiro mundo / Procurando esclarecimentos / E empréstimos / E mercados / Recusados / Pelos povos / Incompreensivelmente poupados. / “Georges, anda ver o meu país de viajantes”, / Infatigáveis itinerantes, / Não pelo mar propriamente, / Como antigamente, / Sujeitos a privações, / Mas de avião, / Transportando comodamente / Saudações / Aos povos que nos vão estender a mão / Segundo as nossas petições. / Levam séquito normalmente / Para causarem boa impressão / E granjearem civilizadamente / Amizade e cooperação. / “Georges, anda ver o meu país de viajantes”, / Que completam a sua educação / À custa da nação / Submissa perante a imposição / De se granjear protecção, / Declinada, naturalmente, / E sempre amavelmente. / Mas entretanto, / Os nossos viajantes viajaram / Depois que o seu próprio território entregaram, / Sem terem querido conhecê-lo, / Nem amá-lo, / Nem reconhecê-lo. / Entretanto, / Os nossos viajantes passearam, / E pedincharam / Abrigo para aqueles que o tinham / Antes / E o perderam / Por causa dos viajantes / Amigos de viajar / Pelo ar / Comodamente / E não pelo mar / Como dantes, / Georges...»

Antes que acabe”, disse a minha amiga. Foi a grande lição de Abril, complementada pelo slogan: “Viaje agora e pague depois”. Mas os viajantes são uns, os pagadores são os outros. Nós.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Os apelos do conforto

22 de Fevereiro de 2010. A minha Mãe partiu o colo do fémur. Longa odisseia vivida numa recuperação que se julgava impossível, pela idade centenária. Mas o fisioterapeuta tem feito milagres.
21 de Maio, quase três meses depois: a minha Mãe percorreu o corredor - uns oito ou nove metros – hoje, sem se sentar, ela própria movendo o andarilho, numa pressa de fome, pois passava do meio dia, eram horas do almoço e aí vai, desejosa de se instalar no sofá, com a mesa posta e a minha irmã à volta, na eficiência de a bem servir. Uma rainha. Tudo agora trabalha bem nela, e as ideias vão-se aclarando, nas evocações, mesmo repetidas, mas que ouvimos sempre – sobretudo a minha irmã, na paciência e até no deslumbramento, de a ver mergulhar no seu passado de filha responsável – mais velha de três irmãs e um irmão, com mais quatro irmãos anteriores. Única da família que resta, e isso a faz chorar por já não ter pai nem mãe, nem irmãos a quem amar e isso nos indigna um pouco, ao lembrar-lhe a família posterior, e ao lembrar a nossa própria orfandade do nosso pai.
Gosta de falar no seu passado de moça casadoira, com muitos pretendentes – e cita as terras desses tais - Cedrim, Sejães, Bispeira, Ladário (mais renitente, esse, que o rapaz tinha muitas terras e de terras e gados estava ela farta), Cambarinho, Souto de Lafões, Carrazedo, um Cipriano, rapaz muito lindo de Lagoa, no alto da serra das Arcas, o seu Carregal. Ficou-se por Destriz, mas o meu Pai virara africano, condição sine qua non para ser aceite e, além disso, era lindo de morrer, com muita instrução, ganha em Macau, com vários prémios de melhor aluno, e com o “honesto estudo” que aliou ao seu engenho próprio, provado em concursos onde ganhou os dois primeiros rádios da nossa vida. Eu já o disse num livro de memórias, mas não me importo de relembrar, que o meu Pai ficou também como figura mágica que nos acompanha, não sei se no coração, mas numa saudade imperecível. São dele as seguintes três quadras aos cigarros Império:
À porta do Céu, Tibério / Pede a S. Pedro um lugar. / - “Fuma cigarros Império? / - diz-lhe o Santo – “Pode entrar”.
“Resume-se a vida assim / Para quem tem gosto e critério: / Deixar correr o marfim, / Fumar cigarros Império.”
“Que dos cigarros Império / Nenhum fumador se prive. / Porque cigarros Império / Quem os não fuma não vive.”
Era todo branquinho, o rádio que o meu Pai ganhou com elas, que me acompanhou longos anos, até que os solavancos de uma descolonização de trambolhões o fez abandonar, num esquecimento que pôs a vasta família na vanguarda das opções de retorno.
Mas retomando a actual lucidez da minha Mãe, a dada altura das suas evocações matrimoniais, saiu-se com a seguinte frase: “É como quem está a comprar uma ovelha!”
Tratava-se das manipulações das famílias para unir os jovens casadoiros, com olho no dote, nas terras respectivas: “É como quem está a comprar uma ovelha” e isso a aproximou, no meu espírito, dos orgulhos de uma Silvia, repudiando, por independência feminina, o namorado Dorante proposto na combinação dos respectivos pais, na peça de Marivaux “Le Jeu de l’Amour et du hasard”, em estratagema de troca de posição com a criada, que, por igual jogo de Dorante, de substituição pelo papel de criado, resultara segundo a combinação da autoridade dos pais.
Mas isso não se passou com a minha Mãe, ela própria moçoila independente, mas, chorando durante o resto da sua vida o não se ter despedido do seu santo paizinho quando partiu para África após o casamento por procuração.
Muito mais histórias recolhi ultimamente dela, mas finalizo com uma quadra que deve ser bicentenária, pois afirmou: "A minha mãe cantava isto!", e chorou, lembrando:
“Aveiro por ser Aveiro, / Por ser marinha de sal, / Não há terra como Aveiro / No Reino de Portugal!”
É que ouço Pedro Passos Coelho afirmar que se sente “confortável, que o PSD não é nenhum partido que apoie o governo”.
E a imagem de força, da minha Mãe correndo de andarilho para o seu almoço, que nos mereceu palmas e aplausos e referências à nova Rosa Mota, desvaneceu-se, suplantada por outras imagens de força maior, dos nossos actuais corredores para os banquetes pátrios, todos confortáveis, todos confortáveis.

Candide

Um dos programas de opinião pública, creio que no canal 24, versou sobre o tema do optimismo. Houve mais senhoras participando do que cavalheiros, e algumas delas cheias de boa vontade de colaborar com o nosso PR no seu apelo à nossa confiança em nós mesmos para conseguirmos avançar no desenvolvimento do país, medida que tanto se impõe para nos levantarmos do chão. Explicaram muito femininamente que é uma questão de postura perante a vida e até que sempre orientaram os seus filhos nessa postura de confiança e crença neles e nos outros, mas sobretudo neles próprios, que isso dá personalidade e mesmo outra dimensão existencial além de vivencial a quem tenha sido alvo da confiança materna – e paterna, está visto, também, conquanto estas distinções de géneros gramaticais vão tendendo a esbater-se, mesmo nos adjectivos da espécie dos citados, pela polémica que gera a sua problemática, no actual contexto cultural português.
Ora, em conversa com a minha amiga, até lhe falei – aliás nem sequer foi a primeira vez – no Pangloss, que ensinou o seu discípulo Candide segundo a virtude - porque se trata duma virtude, senão as senhoras da opinião pública não falariam com tanta convicção e mesmo finca-pé de sabedoria da vida, lembrando o “experto peito” do “Velho do Restelo” que Camões criou para nós – segundo a virtude, repito, do optimismo.
É claro que do Voltaire só se poderia esperar uma troça desmanchada a quem defende essa tese – no seu tempo foi um sábio chamado Leibniz que quis provar que vivemos no melhor dos mundos possíveis, ou no melhor possível dos mundos, ou no possível melhor dos mundos, nem sei bem qual a versão por que optou. A verdade é que todos eles – Candide, a sua amada Cunégonde, Pangloss, que nunca desistiu da sua teoria, nem sequer até prova em contrário, que muitas foram elas, as provas, pois todos eles sofreram as passas por esse mundo fora, autênticos horrores que achei sempre pornográficos, de tal modo foram escandalosos para a minha juvenilidade de leitora adolescente, do livro colhido numa qualquer biblioteca pública lourençomarquina. E por fim lá se foram amanhando com o jardim do cultivo de Pangloss, a Cunégonde já então velha, feia e estropeada das torturas que sofreu, mas mesmo assim muito amada, a provar que o Bem e o Mal se dão mãos, na Terra da nossa amargura e que por isso devemos ficar gratos ao Deus que, bom e poderoso, permite essas dualidades da nossa estranheza.
Ora a minha amiga não estava minimamente vocacionada para tais argumentos de generosa compreensão, e direi mesmo aceitação, e atirou-me logo, com uma energia de céptica altivez, o recorte de uma coluna de opinião, que sacou da mala, coluna chamada Bloco de Notas, assinada por João Vieira Pereira do Expresso, com o expressivo título “Querem reduzir o Défice? Comecem pela RTP”, que é um acervo de informações escandalosas sobre as dívidas, as vaidades e as perdas económicas da RTP, financiada pelo Estado, ou seja, pelo Zé Povo desacautelado e sempre desmantelado, a provar que mesmo que se queira ser optimista – apesar das senhoras boas educadoras nesse sentido – estas notícias arrasam as nossas convicções, a tal ponto que alguns de nós, perante estes casos e outros ainda mais graves que vivemos hoje em dia, podermos exclamar , como fez Camões, já no rasto do lamechas do Job: “O dia em que eu nasci “moura” e pereça...”
E senão, vejamos alguns factos pontuais, citados na crónica de Vieira Pereira, que passo a transcrever, na sua maior parte, por conta do nervosismo da minha amiga inconformada com estas coisas que nos limitam a auto-estima, excepto às senhoras acima referidas :
Espanta-me que a discussão em redor da redução da despesa se cinja às obras públicas. O Estado em Portugal desperdiça potes de dinheiro num sem-número de empresas e serviços. Dinheiro que é gerido ao sabor de um qualquer gestor colocado através do tradicional e pouco virtuoso sistema da cunha, na maior parte das vezes política.
O caso mais aberrante de todos é o da RTP. Respirem fundo e preparem-se para o escândalo que vou começar a descrever.
2000 milhões de euros foi quanto a RTP recebeu do Estado entre 2003 e 2009. Quase 300 milhões de euros por ano.
13,8 milhões de euros foi quanto a empresa perdeu no ano passado, apesar das chorudas transferências públicas.
592 milhões de euros é o capital negativo da RTP.
807,9 milhões de euros é o total do passivo bancário.
298 milhões de euros é quanto a empresa vai receber este ano entre indemnizações compensatórias, taxa de audiovisual e aumento de capital.
20 milhões de euros é quanto a RTP queria pagar pelos direitos de transmissão de 60 jogos de futebol do campeonato nacional, em guerra aberta com a TVI, um canal privado.
Este é apenas um exemplo de como se gasta dinheiro em nome de uma causa que ninguém entende. A RTP não faz serviço público, pelo menos a RTP1. A RTP é afinal financiada para concorrer com a SIC (que pertence ao mesmo grupo que o Expresso) e com a TVI. Só que essas estações ganham dinheiro e a RTP sorve dinheiro. Dinheiro dos impostos e da taxa de audiovisual. ...”

Foi por tudo isto que, tendo respirado fundo, a conselho do cronista, achámos que não havia razões para o optimismo e a confiança de que se falou na opinião pública do canal 24, sobretudo por mães educadoras que lá falaram, e na esteira do que disse também o nosso PR. É que os números apontados neste texto de Vieira Pereira são bastante inferiores aos números que se apontam hoje, da teia da nossa corrupção generalizada.
Estamos, pois, num crescendo de desastre económico eminente, pelo vulcão jamais extinto do nosso tresloucamento moral e largando para cima de todos as cinzas inflamadas da nossa mortalha.

terça-feira, 18 de maio de 2010

A crise agora fica para depois

Falou-se do Cavaco, da sua declaração, não universal ainda, mas bem nacional já, dos direitos dos homens e das mulheres que desejem unir-se pelos sagrados laços do matrimónio unissex, e a minha amiga largou a frase que encima este texto: “A crise agora fica para depois”.
E a minha amiga continuou largada no seu discurso ondulado, avesso a interrupções:
- Vai haver muito casamento. Vai ser uma animação. Há tantos, tantos, que é uma coisa maluca. E vão aparecer muitos que estavam na sombra. Coitado do Cavaco! Concordou com o ar mais dramático possível e imaginário. Custou-lhe muito.
Eu ainda me esforcei por a interromper, a lembrar que o coitado do Cavaco, que condenou a lei liberalizadora, justificando a sua aprovação a pretexto de que o seu veto provocaria nova consulta parlamentar com nova aprovação óbvia, e o que era necessário neste país era começarmos a trabalhar para, pelo menos, tentarmos controlar mais a crise, no fundo falseara a questão, jogando a dois carrinhos – o dos prós e o dos contras – de bem com Deus e de bem com o Diabo, no objectivo, sobretudo, de não perder as futuras eleições presidenciais, votando uma lei iníqua que lhe repugna.
“De mal com os homens por amor d’el-rei, de mal com el-rei por amor dos homens”, foi Albuquerque que disse dele próprio, mas Cavaco também o poderia afirmar, sendo ele, todavia, o rei, um rei de ambiguidades que não enganam ninguém, sério na contestação de leis que a sua seriedade repele, com bons argumentos, aliás, mas cedendo às mesmas leis por imposição dos seus próprios interesses, para captação de simpatia dos que se afirmam de progressistas, de modernos, sobretudo de mais inteligentes e evoluídos do que os tacanhos deste povo que somos a maioria. Um referendo mostraria a tacanhez, mas os evoluídos não o quiseram e Cavaco não o propôs para ficar de bem com quem lhe pareceu melhor, sendo ele um deles pelos argumentos já analisados.
Mas estes argumentos não os disse eu à minha amiga, que continuou com o seu discurso de comiseração, pelas famílias desses que agora já podem usar aliança em vez de brinco. Pensa nos pais deles, nos irmãos deles, que sofrem muito. E conclui:
- Agora só falta terem bebés. Também hão-de lá chegar. Já não é nada que não possa vir a acontecer. Por enquanto, há as barrigas de aluguer, a inseminação artificial... Mas a ciência evolui muito rapidamente.
- Talvez os extra-terrestres tragam umas dicas, um dia destes.
Fui eu que falei, lançando, finalmente, a minha colherada, na verbosidade caridosa da minha observadora amiga. A crise fica para depois. É sempre a adiar.


domingo, 16 de maio de 2010

Uma de rãs

Toda a gente conhece,
Se bem me parece,
A fábula da Rã que quis igualar em tamanho
O Boi, o que foi muito mal, por sinal,
Para uma bichinha
Tão enfezadinha
- Coitadinha! -
Que não se apercebia
De que com isso ia
Deixar este Mundo,
E parar ao Profundo,
E sem mais aquelas
Deixar as mazelas
Das várias querelas
Em que na sua vida
Andou entretida.

Assim nós.
Bem nos esforçamos
Por parecermos
Do mesmo tamanho
Dos povos poderosos
Rasgando as várias vias
Das nossas vaidades
E atamancando
Razões, sem-razões,
Para podermos parecer
Tamanhos como eles.
E assim esticamos
Até rebentarmos.

Eis de Fedro, a fábula
Desta pequena rábula:

A Rã que rebentou e o Boi”

«O pobre, quando o poderoso quer imitar
Só pode o pernil esticar.
Num prado, um dia, uma Rã viu um Boi.
E, tolhida de inveja por tanta grandeza,
A sua pele rugosa se pôs a inchar;
Então, aos filhotes decidiu inquirir
Se, ao Boi, em tamanho era superior.
Os trastes negaram e ela, de novo,
A pele esticou num esforço maior
E voltou a interrogar quem era o maior:
- O Boi, responderam, com ar enfadado.
Então,
Com grande indignação,
Pôs-se a esticar com tanta certeza,
Tanta firmeza,
Que ficou com o corpo rebentado,
Sem qualquer beleza.»

Eis, seguidamente,
A fábula de La Fontaine
Tão viva no original
E que a minha tradução liberal
Amorteceu, por meu mal.
Mas o fundo da questão
É que não é precisa explicação,
Por ser tudo tão evidente.
Tão evidente
Infelizmente,
E saliente
Para a gente:

A Rã que quer fazer-se tão grande como o Boi”

«Uma Rã viu um Boi
Que lhe pareceu de bela estatura
Ela, que em tamanho
Não atingia mais do que a altura
De um ovo, invejosa
E de má catadura,
Incha, estende-se, esforça-se, viçosa,
Para igualar o animal em grossura,
Dizendo: “Vede, minha irmã, com atenção;
É quanto basta? Dizei-me; ainda não cheguei lá?
- Ná! –Agora então? – Não!
- Foi agora? – Nem por sombras, ora!”
A frágil bestazinha
Inchou tanto que rebentou
Arrasadinha, arrasadinha.

O mundo é cheio de pessoas
Que não são mais sensatas do que esta tolinha:
Todo o burguês quer construir
Como qualquer grande senhor:
Todo o principezinho
Precisa de embaixador,
Todo o marquês deseja manter
Pajens ao seu serviço,
Mesmo sem ter
Posses para isso.»

sábado, 15 de maio de 2010

O rescaldo da esperança

Agora que o Santo Padre partiu, depois de nos ter trazido a esperança, compartilhada por todos os que falaram nisso, e foram imensos, inclusive – e sobretudo - o nosso Presidente da República, como seria natural que fosse, voltámos ao comportamento anterior da desesperança e direi mesmo do desespero de muitos, embora o nosso Primeiro Ministro ache que Portugal está no melhor caminho possível, pois vai pagar tudo direitinho com os dinheiros da austeridade de todos os portugueses de boa-vontade, e mesmo dos de má-vontade, mas quanto ao aumento das exportações nem cheirá-las, pois nos falta produção assaz, que essa, não há milagre suficientemente valente para inverter as nossas tendências para o santo ripanço de uma incompetência ancestral, apoiado no sentimento da desesperança de que um bom desempenho no trabalho seja merecedor de um reconhecimento grado, salvo para os pertencentes às etnias da boa adaptação a qualquer remodelação de comando de tipo governamental e não só.
Quanto às importações, continuamos bem servidos, diz a minha amiga, ao constatar a profusão das frutas e outros artefactos da produção estrangeira, entre as quais a chinesa em grande plano de eficácia preçária – e precária - e é por isso que nos sentimos vivendo num país em franco progresso, confiantes nas palavras vigorosas do nosso Primeiro Ministro, que umas vezes diz “assim” – que faz e que acontece - e outras vezes diz “assado” – que faz e que acontece, embora precisamente o contrário do que disse quando disse o “assim” com muita insistência, mau grado os avisos dos responsáveis de então, como Manuela Ferreira Leite, e que agora é obrigado a admitir por imposição exterior, dos que exigem tento e equilíbrio e afirmam que as grandes obras da glória do PM, em promessa, do tempo do “assim”, são para interromper, que os tempos agora são do “assado”.
Mas, “assim” ou “assado”, o nosso PM mantém o aplomb de sempre, e o mesmo potencial de voz tonitruante, como era a de Júpiter, nos seus tempos áureos. O seu tom de voz tonitruante – do nosso PM, não do pai dos deuses romanos, que esse passou - agora é acompanhado do tom de voz suave e expressivamente modulada e quase que direi melíflua, do seu companheiro do maior partido oposto, que se vê que não é tão oposto assim, ambos camaradas eficazes para o desvio dos megalómanos projectos anteriores do tempo do “assim” e adopção das medidas eficazes do actual tempo do “assado” para combater de imediato o défice, com a colheita de dividendos que todos têm obrigação de ceder sem protesto, pelo menos os mais pobrezinhos, que os mais enriquecidos com os dinheiros indevidos, ficarão dispensados de lançar para o monte da nossa trágica condição de empenhados e de pagadores permanentes, com as excepções usuais.
Por isso eu não acredito que a visita do Santo Padre tenha sido frutuosa no capítulo da esperança, embora o nosso PR, que é um homem digno e que fez um impecável discurso de adeus ao Papa, ache que nós temos que confiar mais em nós para sairmos da fossa em que nos atolamos.
Tanto a minha amiga como eu própria achamos que não chega confiarmos em nós. Penso que já disse porquê, mas posso repetir, que tem a ver com o “assim” ou o “assado” dos discursos de falsidade do nosso PM que, de idêntica dimensão de vanidade e de auto-saliência, nos empurram infalivelmente para o tal atoleiro, agora bem acompanhado pelo camarada de olhão que lhe segue o rasto.
Mas também o nosso PM não acha isso, que vamos viver com mais esperança agora, depois da visita de Sua Santidade. Aqui entre parênteses, não vá o diabo tecê-las, até penso que deve ter sido por isso que lhe baixou o estatuto, chamando-lhe várias vezes “Sua Eminência”. Porque o nosso PM não pede, de facto, a nossa esperança, pede o nosso esforço. Aliás, impõe-no. Ouvi-o há bocadinho. O esforço de todos, menos o das excepções.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Nostra culpa

A minha amiga estava deveras pesarosa. Disse que tinha pena de me ter dito que se iam gastar milhões com a vinda do Santo Papa, quando, afinal, lera posteriormente que fora custo zero. Eu ainda tentei consolá-la, dizendo que não me parecia que tivesse sido, mas ela não gosta de se enganar e faz muita fé nas suas leituras. Felizmente que eu não faço tantas, e por isso a minha alma fica tranquila, porque não fui eu que levantei a atoarda da despesa milionária. Mas fica aqui a rectificação – não foi milionário, foi custo zero – para tranquilizar os orgulhosos pruridos da minha amiga a respeito das fontes onde colhe o conhecimento, que eu levianamente logo utilizei, sem ter também estudado o assunto e por isso também me sinto responsável por ter ter feito fé nas primeiras leituras sem esperar pelas segundas.
Além disso, ela até estava com pena do Papa, em virtude do excesso de movimentação a que é forçado com a sua vinda cá, para nos trazer esperança. Eu achei o Santo Papa uma simpatia, e nem se me dava de ser por ele abençoada. Também gostei muito da recepção e de tudo o que se fez em beleza cá por Lisboa, o altar, a gente atenta, a alegria geral, a Praça do Comércio um encanto, a merecer o regresso do seu nome antigo, bem mais nobre, tão bonito estava como Terreiro do Paço, além do Tejo como pano de fundo mais os navios e o Cristo Rei ao longe, na outra margem, com o retrato de Bento XVI em grande.
Do que eu não gostei mesmo foi da designação de “papamóvel” para o automóvel que transportou o Papa. Como explico? A palavra automóvel que virou substantivo, era inicialmente um adjectivo aposto ao substantivo “veículo” – “veículo automóvel”, isto é, um carro que se move por si mesmo, sem tracção exterior, segundo os elementos híbridos da sua formação – “autós”, elemento grego, pronome demonstrativo significativo de “mesmo”, “próprio”, “ele”, e “móvel” do adjectivo latino “mobilis”.
Era um carro de uma alvura espiritual, para transportar uma figura representativa dessa espiritualidade, a condizer com a figura doce do Papa. Porquê a designação grotesca, onde o elemento “papa” poderia funcionar, em português, como forma verbal, caso fosse separado por hífen do termo seguinte o que daria inadequadas conotações de riso, a lembrar papa-hóstias, papa-figos, etc? No caso de “papa” ser tomado numa natural acepção substantiva, parece rematada tolice, pois ninguém jamais se lembraria de atribuir a designação contrária de imóvel a nenhum ser vivo, e menos a um papa, mentor espiritual da cristandade.
Não foi escolha nossa, mas adaptação da designação italiana do carro por eles feito exprès para a segurança papal.
Mas fez-me pena – creio que não foi propositado, mas pareceu-me pedante, a escolha de uma designação grosseira, por puro preciosismo provinciano, a uma coisa simples que era o automóvel papal.
Mas o nosso PM também tratou “Sua Santidade” várias vezes por “Sua Eminência”, e também julgo que não foi propositado.
O Papa nos perdoará, que há muito andamos em penitência.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Gedeão na berra

Não resisto à tentação de transcrever o texto da minha filha, que, na sua escola, vai aprendendo os novos percursos da função que exerce, com a maleabilidade possível, não suficiente, contudo, para os novos enquadramentos de uma pedagogia de pseudobenemerência, sinónima de idiotia ou de acefalia gradualmente generalizada a que a geração de adultos descendente do Maio 68, e compactuada com a sua doutrina, tem acentuado a eficácia – na educação dos filhos, na orientação pedagógica e cultural, no desrespeito pelo seu significado clássico.
Sendo um texto singelo, de relato circunstancial, como os seus pares – Camões e a Leonor descalça e graciosa, Rodrigues Lobo e uma Leonor mais sofisticada da hipérbole barroca, Gedeão e o sentido dinâmico e sensual do descritivo da corrida de lambreta com o namorado, e do vestuário, de uma Leonoreta bem moderna nos anos sessenta, expressivos de uma sociedade a abrir-se à trepidação e à desconcentração, ele contém igualmente o sentido amargo de uma realidade bem distorcida do senso comum – a realidade desta “geração auricular” da primeira década do século XXI, marcada pelo atrevimento de uma indisciplina inócua – pondo também o texto, ao contrário dos precedentes, duas pessoas em confronto, dois mundos – a geração jovem desatenta e avessa a orientações que exijam esforço pessoal, a geração adulta preocupadamente crítica.
Eis, pois, o texto, de Paula Lacerda:

«Sozinha, com os seus phones...»

«Mote
Sozinha, com os seus phones,
segue, altiva, pela estrada.
Vai em frente, Leonor,
que estás bem acompanhada.


Entro na rua da escola
com o meu Passat animado,
o espírito já se me enrola
no Ibn abençoado!
E a pé, pela rua fora,
vem jovem apessoada.
No meio da rua rola,
completamente aluada.
Meu carro estanco, então,
lançando o pé ao travão:
a Ninfa, muito segura,
não se desvia da rua;
nem se digna tomar nota
de que alguém, com atenção,
travou… e, devagar continua
da rotunda até à lua…
Ela, no seu pé, segura,
e eu atrás, sem paciência,
ao volante da viatura,
praguejando da indolência
e sem sequer perceber
porque lhe não chega aos ouvidos
a fúria dos meus sentidos,
a música do meu motor…

Finalmente, estacionamos.
Passo ao pé, à sua frente.
Constato, com pertinência,
que tem phones escondidos,
sob o cabelo que cai.
Ao resto do mundo indiferente,
a ideia sobressai
de que ouve só o que entende,
abençoada Leonor!

Geração auricular,
avançando para o lugar
em que o mundo é só seu.
Intimista e concentrada,
com a couraça ilustrada
da surdez que ela escolheu.»

Visita aérea

A minha amiga está mesmo escandalizada com a visita papal que nos vai custar uns milhões e eu esforço-me por a acalmar, porque acho que milhão a mais ou a menos pouco monta na nossa generosa maneira de ser e de estar, de povo habituado a receber e a dar, com igual liberalidade, embora com superavit no caso do receber, pelo menos a título pessoal. Até evoquei a propósito uma embaixada portuguesa ao papa Leão X, em 1514, conduzida com trombetas, tambores e animais raros na Europa de então - um cavalo persa, um rinoceronte indiano, um elefante que virou mascote papal, além das pedrarias e dos cruzados aos milhares, que não só provaram a nossa abastança da altura, com tanto descobrimento afortunado feito no tempo do rei venturoso, como muito ajudaram aos luxos do Vaticano de então, já enriquecido, aliás, com a venda de indulgências aos fiéis, segundo bem escreveu Gil Vicente, no seu Auto da Feira, referindo a ignóbil simonia, mas por pura rebeldia anti-clerical a merecer condenação, que não deixou de faltar.
Também expliquei à minha amiga que, se estivéssemos nos tempos da ditadura salazarista ela não poderia protestar tão expostamente, correndo o risco de ser denunciada e feita prisioneira pelos esbirros dessa época, como tantos disseram que foram (para as benesses dos novos tempos), caso eu fosse dos falsos amigos chamados bufos, capaz de traições dessas. E logo ali protestei, com elegância, o meu não enquadramento nessas vis manobras do savoir faire universal.
Achei é que os papas que cá têm vindo ultimamente, é certo por conta do nosso milagre de Fátima, nada mais fazem do que retribuir as ajudas ofertadas pelo Venturoso ao papa Leão X, pois as presenças papais num país sem a dimensão de antigamente, são bem prova de apreço de quem não se importa de aqui vir, a este espaço limitado, trazer-nos a bênção das suas santas pessoas.
Ainda para mais correndo o risco de levar com uma lufada de cinzas vulcânicas, como no caso do papa Bento XVI, embora a minha amiga também proteste que aquelas puderam lixar o tráfego aéreo português, mas para o papa Bento elas vão desviar-se para ele poder cá vir nas calmas.
Às vezes não compreendo as ironias da minha amiga. O que eu sei é que a nossa inquietação está a pedir um milagre e só vejo a possibilidade de este papa no-lo fazer. Mas a minha amiga, sendo devota sobretudo do Santo António, refere alguns pecados que a imprensa tem trazido ultimamente a lume contra ele, no tempo em que ainda era só bispo. Por isso tenho as minhas dúvidas no milagre dele.
Mas felizmente que ainda há muitos que não têm.

domingo, 9 de maio de 2010

“Olhai os lírios do campo”

O texto é de António Cerveira Pinto. Saído no blog “A Bem da Nação”. Um texto extremamente bem escrito sobre o problema da Educação, a propósito do programa “Plano Inclinado” da SIC, que Cerveira Pinto considera arrastado, com alguma pertinência. Também me parece a mim, mas pela inutilidade de uma chamada à razão de uma Nação que cada vez mais vai petrificando numa irracional bestialidade de mau agoiro, comandada por dirigentes que tudo fizeram para estilhaçar o sentido nobre do termo, de formação do espírito, instrução, reduzindo-o ao sentido primeiro, de criação dos animais, cultivo das plantas.
Cerveira Pinto acentua duas tendências no ensino, desde a década de setenta, o da “massificação” e o da “qualidade”, este “diversificado, cada vez mais especializado e sujeito a critérios exigentes de avaliação”.
O primeiro “orientado para as estatísticas e para a ocupação de exércitos crescentes de indivíduos sem lugar no mercado de trabalho, nem sequer nas actividades de diversa índole, burocrática, educativa, médica, social, ambiental, etc, que os governos têm vindo a promover... Um ensino tolerante, sobretudo destinado a ocupar os tempos livres da juventude enquanto cresce, proporcionando-lhes ambientes cognotivos e criativos tendencialmente imersivos... Tudo o que as mais recentes e escandalosas reformas educativas têm vindo a introduzir no nosso sistema de ensino...”
“Mas também houve, há e haverá sempre um ensino reservado à formação das elites dirigentes e à produção efectiva do saber, onde a exigência e a competição são cada vez maiores...”
Em tempos passados havia também duas espécies de ensino: o técnico, mais voltado para as técnicas comerciais ou industriais, dizia-se mais tolerante do ponto de vista cultural, o liceal sendo um ensino direccionado para os quadros futuros, naturalmente de formação cultural mais exigente.
Dei aulas no ensino liceal e no ensino técnico, nunca soube distinguir tais disparidades, e ajudei a formar brilhantes alunos na Escola Comercial que, ingressados na Secção Preparatória, correspondente ao 6º e 7º anos do liceu, puderam singrar pelo ensino superior.
Sei quanto a unificação do ensino, concomitante com a massificação geral, técnicas e liceus reduzidos à designação genérica de escolas secundárias, conduziram ao estado caótico que a tal tolerância pedagógica, acompanhada que foi pela permissividade a todas as indisciplinas propostas pelas “mais recentes reformas pedagógicas” contribuiu para fortalecer.
Não vejo é como, num país com tais parâmetros educativos, se pode falar em ensino dirigido às elites, como afirma Cerveira Pinto. Sabemos o modo de formação apadrinhado de algumas dessas elites governativas ou outras. Por altura da Queima das Fitas vemos a falta de compostura de tanta dessa mocidade de futuros educadores, saída das universidades. Não vemos razão para acreditar nela, a não ser naqueles que, vivendo à margem desses desconchavos educacionais, por motivos vários – interesse cultural, acompanhamento familiar, bom nível educativo, etc – podem formar as tais elites referidas.
Transcrevo os dois parágrafos finais deste enigmático texto:
“Enquanto não formos capazes de pensar numa sociedade pós-capitalista, onde a actividade humana substitua a exploração do trabalho, ou pelo menos possa caminhar a seu lado como horizonte possível de libertação sem se ver castigada por regimes irracionais e improdutivos de sujeição disciplinar ao Estado fiscal, a discussão sobre a crise educativa será sempre um tumulto de vozes sem sentido.
Olhai para os artistas livres, apreciai o perfume de um botão de rosa prestes a desabrochar e só depois falai de educação. Não é trabalho aquilo de que precisamos no futuro. Mas sim de arte, de partilha de bens e serviços, de festas e de um novo horizonte amoroso. É muito mais difícil do que disputar as migalhas minguantes dos orçamentos. Mas é sem dúvida muito mais estimulante para a nossa sensibilidade e para a nossa inteligência.”

Deciditamente, não compreendemos a tese de Cerveira Pinto. Podemos aceitar a discordância sobre um programa condenatório, dum modo geral, do que vai mal no ensino, ou no país, atribuindo tal discordância a uma visão cegamente chauvinista, ou, como neste caso, a um entendimento superior e vaidoso de um problema já sem solução, e cuja discussão na praça pública fere os nervos desse alguém superior.
Mas após uma análise pertinente do ensino, em que se parece condenar as políticas educativas, concluir com observações utópicas sobre as transformações sociais que implicam uma mudança radical das estruturas mentais humanas referentes aos interesses que têm regido o evoluir das sociedades – a luta natural pelo capital, o esforço de cada um para alcançar o seu bem-estar, passando embora pelos atropelos de quem consegue alcançar mais, para finalizar com o apelo a uma vivência na liberdade sem sujeições, nem a princípios nem a convenções, parece isso antes uma proposta de troça, uma inesperada consideração anárquica bastante desonesta.
Em boa verdade vos digo que longe vão os tempos em que Cristo pregava esses desprendimentos materialistas, ou, segundo o Evangelho de S. Mateus (6. 34): “Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo”
Por isso finalizo este comentário alargado com o breve comentário que nesse texto apus, com a indignação de quem discorda destas formas perversas orientadoras da opinião pública com a autoridade de um pseudo-saber que não é mais do que armadilha para converter inocentes. Ou idiotas.

“Parece-me bem leviana a forma como se avalia o actual sistema educativo português. Para docentes briosos, para discentes também, que vivem actualmente as misérias de uma contínua degradação nos saberes e nos comportamentos escolares, para os portugueses que desejariam para o seu país um desenvolvimento que não lhes pode ser proporcionado no actual estado de coisas, sujeitos sempre à infâmia de serem considerados os últimos a nível europeu e não só, considerar que arte é do que se precisa para a resolução das nossas misérias culturais, morais, económicas etc, creio que só para rir. Se é que não se esteve a rir de todos o senhor que subscreve o texto.”



A crosta

Recebi por email excertos do texto de Eça de Queirós, escrito em 1871, no primeiro número d’ “As Farpas”, que, todavia, completei, segundo texto procurado na Internet:


«Aproxima-te um pouco de nós, e vê. O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há príncipio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo! Toda a vida espiritual, intelectual, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As quebras sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se quem puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguer. A agitagem explora o lucro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número das escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casebres ignóbeis, sustentando-se de sardinhas e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora; a população ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto a intriga política alastra-se. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais. Não é uma existência, é uma expiação. A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete que de norte a sul, no Estado, na economia, no moral, o país está desorganizado - e pede-se conhaque! Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão! »

Eça era de facto muito pessimista, adepto do bota-abaixismo de que hoje se enferma também, sobretudo os velhos do Restelo de que é de bom tom falar, para escaparmos à analogia com o povo inerte ou o roedor de sardinhas – no seu tempo ainda não distribuídas às metades por pessoa, senão ele tinha-o dito - e emborcador de vinho que hoje tende a diminuir uma nesga, substituído por outras matérias de consumo mais moderno e potente, como convém, para continuarmos na via da desesperança que encurralou o jovem Eça aos vinte e seis anos e lhe ditou o estro criador, para os anos seguintes da sua criação.
Outras coisas há, no seu texto, desactualizadas, de que o voltarete é a mais arcaica e os casebres ignóbeis também vão sendo substituídos. Para todos os efeitos, o dinheiro das colónias, da emigração ou da União Europeia foram revitalizando a paisagem, mas a devoção insciente continua cada vez mais exuberante, como se prova actualmente com a visita papal extenuante que vai ter a ocasião de observar as marcas do nosso sofrimento devoto no genuflexório ambulante dos nossos peregrinos sem arrimo.
Noutras coisas evoluímos também bastante, e particularmente na exploração dos preços das casas, mais de venda do que de aluguer, que subiram em flecha, na permissividade garantida pelos governos à burguesia, de que eles fazem parte, numa política de construção abrutalhada, para lavagens de dinheiros, diz-se, os tais dinheiros provenientes de furto, droga, trapaça, o costume. E as velhas casas das Lisboas antigas vão aluindo de envelhecimento e corrosão, na inércia dos governos ou das câmaras municipais, a braços com as dívidas avolumadas de governos anteriores e dos seus próprios.
Dívida ao estrangeiro dos empréstimos, cobrança de impostos para pagar aquela, já era assim, e assim continua cada vez mais acirradamente. Mas fez-se obra e quer-se continuar a fazer, traçando os caminhos da nossa modernização e do enriquecimento vil da conveniência e da desonestidade.
O texto lá está a dizê-lo e muito mais. Somos os mesmos trapaceiros de então, com um PM a comandar e um PR a deixar andar, por conveniência própria, para não comprometer o seu futuro nem o da sua família.
Num país onde a família se vai esfacelando em violências de estarrecer, tais sentimentos presidenciais, de apego ao cargo por apego à família são de respeitar. Daí, o seu discurso vazio. Mas na seriedade da preocupação.
Como uma crosta sórdida, mal fechada, de vez em quando deixando escorrer o pus da pústula não curada, aqui estamos, inteiros e vurmosos, como Eça nos descreveu. Sem esperança.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Um tema caprino

O amor da liberdade
Não é compatível com a democracia
Que informa que a liberdade acaba para um
Onde começa a liberdade do outro um.
Embora não seja tão verdade assim,
Parece-me a mim
Com tanta falta de respeito
Como preceito.
No tempo de La Fontaine
Em que a democracia não existia,
Segundo parecia,
A sua fábula d’ As duas Cabras
Prova-o sobremaneira.
Mas, se pensarmos bem,
Hoje em dia também,
Quer se queira ou não se queira ,
A democracia é só uma balela
De gente tagarela.
Vejamos, pois a fábula
“As duas Cabras” da minha cábula:

«Mal as Cabras acabaram de pascer
Certo espírito de liberdade o seu Destino
As faz procurar: partem em viagem
Para os lugares da pastagem
Menos frequentados pelo ser humano
Nem sempre humano:
Ali, onde lugar houver
Sem estrada e sem caminhos,
Mas sim um rochedo, um monte
Vergado em precipícios,
É onde estas damas
Vão passear seus caprichos
Em busca de benefícios.
Nada pode deter
Este animal trepador.
Duas Cabras, pois, se emanciparam,
Ambas tendo pata branca;
Cada uma por sua banda
Os baixos prados largaram:
Uma contra a outra caminhava
Ao acaso do passeio.
Um rio ali de permeio
Tinha uma prancha por ponte.
Duas doninhas somente
Se poderiam cruzar
Sinuosamente
E de fronte, sobre esta ponte.
A rápida onda e o fundo rio
Deveriam fazer tremer
As amazonas de receio
Pelo seu desvario.
Apesar de tantos perigos, uma das ditas donzelas,
Com ar sagaz
E sem mais aquelas,
Pousa um pé sobre a prancha, e a outra o mesmo faz
Da outra banda.
Imagino ver, contra Luís o Grande
Filipe Quarto avançar
Para a ilha da Conferência.
Paciência!
Assim passo a passo avançavam
Nariz contra nariz
As nossas aventureiras
Que, ambas altaneiras,
Até ao meio da ponte não quiseram
Uma à outra ceder. Elas tinham a glória
De contar, na sua raça, segundo reza a história,
Uma, certa Cabra de mérito sem par,
Com que Polifemo presenteou Galateia;
E a outra a Cabra Amalteia
Que a Júpiter amamentou.
Como nenhuma recuou
A queda foi inevitável:
Ambas à água caíram
E nem sequer baliram
A chamar pelas mães
Sem tempo para tais ais,
Ou mé més , como se queira dizer,
O que foi bem detestável.

Este acidente não é invulgar
No caminho da Fortuna,
Da Sorte, Dita ou Destino,
Fado, Sina, Desatino,
Como lhe queira chamar
O Humano pequenino
Pequenino.»

Eis aqui mais uma fábula
De todos bem conhecida
De duas cabras amigas
Da liberdade
Mas não ainda
Da igualdade e da fraternidade.
Eu julgo mesmo que estas duas
Condições
Não chegarão a existir
Enquanto cada homem só a si se ouvir
Sem objecções.
Nem preciso de citar
Os exemplos que por aí
Polulam de egoísmos e falcatruas,
Para não me enervar.
A verdade é que andamos
Todos por aqui
Numa estreita ponte onde só cabe
Um de cada vez.
Mas como todos procuramos
A outra margem
Do rio que atravessamos
Todos de uma só vez,
Em vez de esperarmos,
Educadamente,
Quando nos cruzamos
Na estreita ponte,
Logo nos empurramos
E caímos
Para nos afogarmos
Indecentemente.

E vamos cair
E vamos cair
Embora haja sempre
Os que podem fugir
Que podem fugir.

Mas também
Como apoio à lição,
Sobre o amor à liberdade
Para não referir só La Fontaine
Cito ainda a Blanquette,
A cabra do sr. Séguin
Do conto de Daudet,
Das “Lettres de mon Moulin
Tão amada pelo dono
Que tudo fez para que não fugisse.
Mas fugiu.
E procurou a montanha
E os seus ínvios caminhos
Por muito que lhe custasse.
A última vez
Contra o lobo lutou
Até ao amanhecer
Sem o dono lhe valer.
E assim morreu
E assim morreu.

terça-feira, 4 de maio de 2010

“Parece que temos aí uma fartura...”

- “... de economistas, que sabem o que se deve fazer e o que se não deve fazer!”. Ai, mete-me cá uma raiva!”
Isto foi o que disse a minha amiga, depois de eu lhe ter referido um pouco do “Prós e Contras” que vi ontem, com muita gente sabedora e muitos olhos atentos e esbugalhados da assistência impotente, tal como os que, como eu, assistem do sofá ao debate das nossas aflições, que a minha amiga nem isso, por não fazer cedências aos prazeres espirituais do sofá, preterindo-os a favor dos do Morfeu.
A minha amiga também falou no Cavaco Silva, que no início, estando preocupado, e aconselhando prudência, como de costume, considerava que não estávamos tão mal como a Grécia, mas mudou de opinião a respeito das grandes obras públicas que o Sócrates mantém como ponto de honra e até mesmo ponto-chave da sua carreira triunfal na reconstrução do seu país de grandes oportunidades todas novas.
Cavaco Silva segue mais a linha do actual pensamento do ministro das Finanças Teixeira dos Santos, cada vez mais de mãos na cabeça, sede do pensamento, e só não desgrenhada por ter o cabelo cortado à escovinha, creio que por achar que temos de poupar mesmo nos penteados.
O nosso Primeiro não pensa assim, contudo, que mantém o tamanho do seu cabelo, conquanto embranquecido e não pintado, penso que para poupar nas tintas, e só peço a Deus que me deixe colorir sempre as minhas cãs, embora saiba quanto isso depende da manutenção do subsídio de férias e do 13º mês da nossa relativa abastança, e digo relativa porque parece que estamos todos empenhados e já soa que os vamos perder – o subsídio e o 13º mês - e portanto, no meu caso pessoal, embora redundante, do que peço desculpa, mas uso a redundância para frisar melhor o meu problema, no meu caso pessoal, pois, perder também a possibilidade das minhas pinturas capilares o que me desfeia ainda mais, que a idade não contempla vaidades. É por isso que eu acho que a Marilyn Monroe teve muita sorte em morrer cedo, que assim manteve intacta a sua beleza. Há males que vêm por bem, sempre ouvi dizer, por isso ela virou mito, e um mito é sempre um mito, um nada que é tudo, como disse o nosso inteligente Fernando, Pessoa de apelido.
A minha amiga continuou no seu monólogo, que ela é que fez as despesas da conversa no nosso encontro doméstico, tal como o Vaqueiro com que o nosso Gil Vicente se iniciou na arte dramática com que nos brindou magistralmente.
Mas o Vaqueiro de Gil Vicente, fez um monólogo elogioso, ao palácio e ao rei D. Manuel e família, a rainha D. Maria inclusive, que se tratava de homenagear, pelo seu parto do futuro D. João III, mais um Pio do nosso catálogo de gente piedosa que proliferou ao longo dos tempos até chegar ao nosso Primeiro, mais pio ainda do que os restantes, por querer salvar a nação a todo o custo, isto é, com muitos custos, pelo menos para a maioria de nós, que há sempre uma minoria mais protegida, e não só pela protecção do enternecimento alheio, mas pela auto-protecção do enternecimento próprio.
Disse ela então, a minha amiga, no seu monólogo antes atrabiliário, que anda com a bílis alterada, ao contrário do monólogo laudatório do Vaqueiro aparolado, e vou transcrevê-lo sem mais tergiversações, que até é uma vergonha tanta derrapagem na minha história de bla bla bla sem consequência:
- Estão a ser julgados uma série de galifões, entre eles aquele que foi presidente da Câmara de Lisboa no caso do Parque Mayer, o Carmona Rodrigues. Veja as notícias, que eles vão aparecer todos. O mal dos países é serem roubados. Não é só o nosso. Na Grécia, na Espanha, tem sido uma pouca vergonha de corrupção. Na Itália o Berlusconi... Eles não aguentam com tanta fortuna. Carregam nas costas com tanta fortuna, tão grande, tão grande, que eles não aguentam. É por isso que o Zé povo não consegue. É como no Brasil, é como Angola, como Moçambique... O Dubai... Os países são roubados.
Mas vi nas notícias que o ex-presidente Carmona foi ilibado. Como todos os presidentes e mesmo não presidentes. Todos os galifões, afinal, das nossas glórias nacionais. Actuais.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Ressurrexit, est hic

Ouvi ontem Herman José, pela primeira vez, depois do seu reingresso na RTP. “Por Outro Olhar”, se chama o programa, que, segundo a minha amiga, só tem o defeito de ser dado tarde na noite. “Ressuscitou, mas estão a pôr-lhe o programa à meia noite”, disse ela com a cólera da indignação, por desejar ver o programa sem cedências das suas horas de sono. Estava habituada a horários mais nobres para o seu querido Herman, e acha que os directores de programas desperdiçam tolamente os aspectos de originalidade, diversão e cultura que o actual programa demonstra, arredando-o para horas incompatíveis com o cansaço dos dorminhocos, como a minha amiga.
Muitas vezes temos falado de Herman José, dos tempos da sua genialidade, na comicidade e poder de comunicação inteligente, quando a sobriedade se limitava à marotice, à desconstrução e desmistificação do senso comum, que o fizeram criar quadros inesquecíveis e sketches de “antologia” teatral. Apreciávamos a sua arte de pôr a ridículo tantas das vulgaridades de políticos ou figuras mais ou menos públicas, ou os quadros históricos de personagens reduzidas a tamanhos comezinhos, excluídas as suas importâncias, malbaratadas as suas grandezas.
Os seus companheiros nas sucessivas jornadas – Lídia Franco, Helena Isabel,Victor Sousa, Maria Ruef, Ana Bola, Joaquim Monchique e tantos mais – primaram na criação dos respectivos papéis, de ruptura, beleza, graça, traduzindo trabalho, inteligência, disciplina, que proporcionaram horas de gáudio, nos horários nobres a que nessa altura tinha direito, como estrela fulgurante, várias vezes reconhecida, por um público que o premiou continuamente.
Mas Herman exagerou, na sua vontade de desferir os seus golpes de sanha contra os convencionalismos da boa ordem social. Tornou-se obsceno, desbocado, repelente. E foi castigado por isso.
Nunca percebi como, sendo pessoa culta e trabalhadora, se deixou resvalar na senda do dislate contínuo, nos quadros grosseiros de uma obscenidade inútil, numa apresentação exterior provocatória, no desrespeito por todos a quem, pessoa carinhosa, parecia amar de facto – os seus pais, as crianças, as velhinhas, os jovens ou adultos dos seus programas e entrevistas, reveladores de uma desenvoltura mental incompatível com a ordinarice e o grotesco dessas suas saídas de má memória.
Senti, realmente, pena, mas admiração também - pela coragem da não desistência, talvez por continuar a acreditar em si - quando, abandonado e maltratado pela vida, e talvez desprezado pela sociedade, parecia mendigar uma nova oportunidade de actuação, junto daqueles que, afinal, eram seus amigos e lhe ofereceram nova oportunidade, por continuarem a acreditar nele.
Vi ontem pela primeira vez o seu novo programa, e tive pena de ter falhado o primeiro, a que a minha embirração tornava indiferente.
Por Outro Olhar” apresenta gente entrevistada por Herman José: o real – nas suas reais qualidades de comunicador, de pessoa culta, alegre, educada; o fantasiado – o “outro olhar” da mesma personagem, nas suas qualidades de criatividade, engenho, uma graça extraordinária na captação bem irónica da nossa realidade, na desvalorização das grandezas humanas, de uma forma alegre, engraçada, sem deboche. Sóbria.
Bem-vindo, Herman José.

domingo, 2 de maio de 2010

Os afectos na infância

De um livrinho para crianças, repousando como lhe compete, na gaveta das arrumações, livrinho a que pus o nome de “Festa no Colégio”, composto por breves dramatizações para as crianças da Irmã Leonor do Colégio “Amor de Deus” de Cascais, compus um dia o trecho que segue.
Da gaveta o tirei hoje, Dia da Mãe, Domingo, 2 de Maio, em homenagem às Mães de todos os tempos e aos meninos pequenos, cuja ingenuidade as professoras de agora ajudam a manter nos trabalhinhos que com eles fazem para oferecerem às suas mães. Assim fez o Bruno, meu neto, que ofereceu à sua Mãe, além de uma caixinha de aparas de sabonetes perfumados, uma linda flor num vaso de papel por ele pintado, formado de uma coroa de rainha que a sua mamã teve que enfiar na cabeça, na festa da sua escola.
Alguma vez as Mães foram rainhas para os seus filhos. É necessário manter.

DIA DA MÃE, 84

TODOS:
Vinte de Maio, Domingo,
É hoje o Dia da Mãe.
Festejemos este dia
Como sabemos tão bem.


MENINA: Mãe, aperta-me o vestido!
MENINO: Chega-me o sabão e a escova!
MENINO: Sinto-me meio perdido
Nesta barafunda toda!

MENINA: Ensina-me a tabuada!
MENINO: Não percebo este problema!
MENINA: Com tanta coisa a aprender
Não há ninguém que não trema!


UM GRUPO: E a Mãe tudo resolve:
Veste, calça, lava, lida
Ajuda-nos nos deveres
Dá confiança na Vida.

TODOS: E hoje, vinte de Maio,
É dia das nossas Mães:
Vamos dar-lhes um abraço,
Vamos cantar ”Parabéns”


MENINA: Eu não me limito a isso:
Vou dar à minha um desenho
Que pintei com muito amor
E todo o jeito que tenho.

MENINO: Um ovo feito em madeira
Gravei também muito bem,
Recordando este dia
Para o dar à minha Mãe.

MENINO: Com treze molas de roupa
Fiz moldura adequada
Onde colei o retrato
Da minha Mãe adorada.

MENINA: Num sabonete cheiroso
Alfinetes fui espetar
Entrelaçados com lã
P’r’ós seus lenços perfumar.

MENINA: Num papel que desenhei
Recortei um belo anjinho
Que colei p’r’à minha mãe
Que o pendurou com carinho.

MENINA: Eu fiz à minha uns versinhos
Cheios da minha afeição.
Ela já os leu e gostou
E apertou-me ao coração.

MENINA: Eu fiz um pano da louça
MENINA: E eu uma pega em croché.
MENINO: Eu, uma caixa p’r’ós fósforos
MENINO: Eu, um saco p’r’ó café.


TODOS: Dia da Mãe, dia grande,
Embalado de harmonia,
Cantemos à nossa Mãe
P’r’ó viver com alegria.


MENINO: A minha trabalha muito
E às vezes não tem paciência,
Ralha-me e até me bate
Quando faço um disparate
Desses de bradar ao Céu,
Mas depois fica bem triste
E quem tem pena sou eu.

MENINO: Em vez de apanhar tareia
No quarto sou enfiado,
Até me compenetrar
Do erro tão sem-razão.
Não concordo com o método
Pois sinto-me sempre humilhado,
Mas acabo por perdoar
Como é minha obrigação.

MENINA: A minha não me castiga:
Escuta-me atentamente.
Ela prefere o diálogo
Que pela nova ciência
Nos torna mais responsáveis
Segundo a norma corrente.

MENINA: A minha dá-me miminhos
Comigo às vezes quer brincar;
Conta-me histórias bonitas
P’ra eu depois recontar.


UM GRUPO: Mas há meninos sem Mãe
Lançados no mar da Vida,
Sem carinho de ninguém
Que lhes dê sentido à vida.

OUTRO GRUPO: Por isso demos valor
Ao bem que temos em sorte:
Sem esquecer nosso Pai,
Nosso guia e nosso norte,
Amemos a nossa Mãe
Que nos leva a ser alguém
Que às vezes nos dá castigos
Mas nos livra dos perigos,
Que a cada passo nos salva
Sempre cheia de carinho,
Sempre atenta aos nossos passos
Tal como um Anjo da Guarda
A iluminar o caminho.


TODOS: DIA DA MÃE este dia,
E os outros que o são também.
Agradeçamos a Deus
Por termos um Pai e uma Mãe
E o seu amor como guia.
DIA DA Mãe este dia
Todos os dias também.

sábado, 1 de maio de 2010

Nervos de aço

Falámos nos nervos de aço que o nosso Primeiro disse ter e precisar e concordámos com ele. A minha amiga ainda referiu a “palha de aço” do seu conhecimento e do meu, quando a usamos para raspar sujidades demasiado incrustadas e que não saem nem com os detergentes mais potentes. Às vezes também vamos buscar as facas de aço, inquebráveis, para o mesmo efeito, quando nem a palha de aço as tira.
Mas vimos por aqui que, indiferente à palha e às facas, o nosso Primeiro vai utilizar antes os seus nervos, como matéria prima, não, portanto, para limpar a sujidade que reina por aí - que isso é trabalho hercúleo, como já o demonstrei a respeito das estrebarias do rei Augias, nas quais Hércules usou a força para canalizar dois rios em enxurrada salvadora, e a inteligência, por ter preferido essa estratégia à limpeza a seco - mas para lhe fazer frente, em muralha de aço, como já dizia o povo dantes, ao companheiro Vasco, a quem impunha força, nesse tempo primitivo em que o povo é que formaria a muralha de aço, da sua união com o Vasco.
O nosso Primeiro não precisa do povo nem da união, é ele a muralha de aço completa, com os seus nervos de aço, sem precisar da palha nem das facas da mesma matéria-prima, na estrebaria que estamos a criar, creio que com a ajuda do nosso Primeiro.
Mas, mais forte do que Hércules, e mais inteligente ainda, já que visualizou bem os problemas da sua estrebaria, em que é parte activa, ele tudo leva de vencida. Com os seus nervos de aço. E o seu regozijo de alma tranquila, indiferente ao ruído e ao fedor em volta.