segunda-feira, 29 de março de 2010

“Constâncio pirómano”

Tenho que pôr a escrita em dia, por exigência da minha amiga, que me traz cotos de jornais, por vezes circunscritos à notícia que lhe deu no goto, por saber a dificuldade que apresento em detectar a notícia exacta do seu descontentamento, tantas elas são na mesma página. As recentes ocupações de trabalho – num virote – obrigam-me a acumular os tais cotos, que estou agora a analisar, enquanto espero pelas “Questions pour un champion” que também nem essas tenho visto com a pontualidade usual, em tragédia da alma de que me recomponho saudosamente, como em despedida de um amigo.
Foi na semana passada – em vésperas da eleição de Constâncio - que me trouxe o coto que li por alto, e mal abordámos o caso, em consequência do meu virote. Falta, assim, ao meu texto, toda a expressividade que ela imprime às suas exaltações, as quais costumo anotar docilmente.
Creio que saiu no Diário de Notícias, se é que não o tirou de algum “Global” ou “Destak” da minha preferência sintética. É de Diana Ramos, tem por título «Constâncio “pirómano”», expressão da eurodeputada do Partido Popular Europeu, Astrid Lulling, “sublinhando que seria como “dar barras de dinamite a um pirómano” atribuir-lhe o cargo de vice-presidente do BCE (Banco Central Europeu), após a deficiente supervisão em casos como o BPN, BCP e BPP.
Vejo agora as suas razões, quando, ao passar-me a notícia, comentou que já nós disséramos o mesmo que a Ingrid, cuja fotografia séria, de dedo em riste, aparece na notícia, ao lado de outra fotografia do nosso Víctor, não o sorumbático e moribundo das justificações de cá, no inquérito ao BP, mas uma muito sorridente e de língua exposta, como lambendo-se no seu prazer de viver, agora uma vida de espaços mais variados: “Como se pode explicar que um homem que fracassou no seu país seja responsável pela supervisão na Europa”?
Isto perguntou a Ingrid e ficámos ambas muito contentes e orgulhosas por sermos assim tão esclarecidas como uma eurodeputada luxemburguesa, mas eu generosamente alarguei o esclarecimento a toda a nossa intrigada nação, como coisa perfeitamente evidente e incontestável, quando ele, corrido do BP, passou a ser convidado do BCE.
A minha amiga até já tinha considerado, como algo comum entre nós, muito antes deste caso, que “se derem más provas e tiverem que ser despedidos, logo melhores soluções se fabricam para as suas vidas. Fizeram um mau serviço? Vão para Bruxelas!” como eu escrevi no meu blog, em Agosto passado. Este foi só mais um caso a acrescentar aos casos do nosso conhecimento nacional.
Mas a notícia da Diana Ramos aponta também a resposta do nosso Víctor, não sei se captada em simultâneo com o momento do clic sobre a cara radiante da foto citada: “Tenho muito orgulho no meu desempenho à frente do Banco de Portugal”.
A minha amiga falou em vergonha, mas eu achei que não havia razão para a termos, porque se o escolheram é porque o acharam bom, os estrangeiros têm uma visão melhor que a nossa, não se iam enganar ao convidá-lo, nem acreditam no tal apodo desprestigiante de pirómano, embora ele se chame victor que em latim significa vencedor, e se ele se orgulha tanto do que fez cá, é como victor que o fez. Pronto, pois, para fazer o mesmo lá, pois também se chama constâncio.
Et lux facta est para Constâncio (Víctor), que já foi eleito.
Uma “lux” suave, nada a ver com quaisquer sugestões pirotécnicas, ou sequer pirómanas, tenho a certeza. É preciso acreditar nos sorrisos desafogados, sintoma de consciências tranquilas. E que se dizem detentoras de orgulho, caso da do nosso Víctor.

domingo, 28 de março de 2010

Uma notícia boazinha

- Estou aqui a ler uma notícia boazinha, disse a minha amiga radiante, quando cheguei à mesa do café, onde ela, que não descera nesse dia às compras no Pingo Doce, me esperava com o seu Destak, e estendendo-me o meu, que ela tira sempre do cacifo para mim.
- Então qual é? – perguntei curiosa, pousando os sacos, discretamente do lado da cadeira onde ficariam mais disfarçados, por tímido complexo contra a violência na domesticidade.
- Sabe que eu sempre achei que o turismo é que era bom. Com o solzinho a vender à grama, por cá... Mas não digo agora. Já digo há vinte, trinta anos...
- Agora já não é tanto assim. Com tanta cheia e frio por aí, a destruir até os hotéis...
- Mas veja a boa notícia,
insistiu apontando a dedo a página 05 do Destak de 5ª feira, 25 de março de 2010.
Comecei por ler em cabeçalho, em ACIDENTE, a condenação de uma mulher que atropelara três, no Terreiro do Paço, em MUNIÇÕES um arsenal de armas encontradas em casa de um indivíduo de 69 anos, em Setúbal, em ASSALTO, a libertação de dois reféns de um assalto a uma ourivesaria no dia 24, em Alvalade, e achei que nenhuma das notícias correspondia a tal epíteto de “boazinha” do seu apodo.
A minha amiga impacientou-se com a minha falta de perspicácia no manejo das páginas, mais esclarecida do que eu na detecção imediata dos sítios importantes dos jornais:
- É esta! “Cruzeiros”! Leia.
Li. “Primeira fase do Terminal está pronta em 2013” encimando uma foto de um espectacular paquete não nacional, evidentemente, que já lá vai o tempo do “Infante D. Henrique”, do “Príncipe Perfeito”, do “Lourenço Marques”, onde em 44 retornei a Lourenço Marques, numa viagem de 34 dias, já tudo desaparecido nos desperdícios do tempo, e, é claro, com muito menos andares mas com três classes mais o porão... Sob a tal foto do paquete estrangeiro, a legenda que se me afigurou de megalómana “Espera-se aumento de turismo”.
Não posso deixar de transcrever o texto que fez as delícias da minha ambiciosa amiga:
«O novo terminal de cruzeiros de Lisboa, cuja primeira fase estará concluída em 2013, deverá ser “fundamental” para o turismo, com o aumento dos cruzeiros com origem e destino em Lisboa, revelou à Lusa o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado.
A obra vai custar 30 milhões de euros, pagos pela Administração do Porto de Lisboa (APL), que lançou ontem o concurso público, juntamente com a Câmara de Lisboa e a Ordem dos Arquitectos. Para Manuel Salgado, a partida e a chegada dos cruzeiros a Lisboa vai beneficiar “todas as actividades da Baixa” como a hotelaria, a restauração e o comércio. António Costa considera que o terminal assinala “uma nova era no relacionamento” entre o executivo municipal e a APL.»
Ainda perguntei à minha amiga se o que a fazia feliz era a questão da nova era do relacionamento entre o nosso Costa e a tal APL, como chamariz da nossa atenção para o perfil dele, promotor de uma próxima ascensão para um próximo lugar de grande projecção para ele e o seu partido, que eles – os costas e seu partido - não perdem pitada para se promoverem, nem deixam isso para quaisquer mãos alheias, por vezes pouco puras nas intenções.
Mas a minha amiga nem se deu ao trabalho de repelir a sugestão, lançada que estava no tema do turismo, num país, segundo ela, com bastas hipóteses comerciais por o sol se poder vender ao grama, de tão acolhedor que é.
Eu descreio mais no milagre, porque há sempre que contar com as derrapagens, nestas coisas das obras entre nós. Derrapagens no tempo e no custo, o costume.
Mas a minha amiga tem muita fé no Santo António – no de Lisboa ou de Pádua, é certo, não no Costa por autopromoção. Pode ser que sim, que Santo António dê um reforço à obra “Terminal” da promoção do nosso António (Costa, de sobrenome).
A esperança nunca derrapa, quando se tem fé.

sábado, 27 de março de 2010

103

São já cento e três anos. Agora com uma perna danificada. Mas aquilo que alguns disseram, quando a partiu – “é o começo do fim” – não se está a verificar. A minha Mãe recuperou – no mimo – sobretudo no mimo – que se manifesta na exigência da urgência, nos ai ais da sua não habituação às dores mais sérias, na forma como faz convergir sobre ela a atenção alheia.
Admiro a minha irmã, que aqui vem duas vezes por dia, para estar com ela, dar-lhe as refeições principais, sempre eficiente e rápida nos arranjos, e conversar, nos motivos de sempre ou noutros, que a minha Mãe não se limita, afinal, ao seu passado primeiro, no caleidoscópio da sua longa existência.
No hospital, interessava-se, por vezes, por quem a atendia. O auxiliar de enfermeiro, a uma sua pergunta sobre a sua naturalidade, respondeu que nascera perto de Castelo Branco, e logo a minha Mãe comentou: “Eu nunca fui à Beira Baixa”. Fiquei contente com a reflexão que me provava que “o começo do fim” ainda não era para já.
A família que a veio ver, de longe, ficou espantada. É uma força da natureza, na verdade. E embora considere que já cá anda há muito tempo, fá-lo mais por astúcia, para ser contestada e sempre admirada.
Vamos a ver se a fisioterapia resulta. Já se pôs de pé sobre a perna operada. Mas não começou ainda a andar. O médico deu-lhe seis meses para eliminar a fractura. Mas, como eu previa, não gosta das grades da sua cama.
Em vez dos “Parabéns a você”, que logo cantaremos, finalizo com o “Hino de Amor” de João de Deus, cujos vinte e tal versos iniciais, pouco antes de partir a perna, lhe ouvi recitar, na evocação do livro por onde estudou as primeiras letras – “Cartilha Maternal”:
Hino de amor
Andava um dia / Em pequenino / Nos arredores / De Nazaré, / Em companhiaDe São José, / O Deus-Menino, /O Bom-Jesus. / Eis senão quando / Vê num silvado / Andar piando / Arrepiado / E esvoaçando / Um rouxinol, /Que uma serpente / De olhar de luz /Resplandecente / Como a do sol, /E penetranteComo diamante, / Tinha atraído, / Tinha encantado. / Jesus, doído / Do desgraçado / Do passarinho, / Sai do caminho /Corre apressado, / Quebra o encanto; / Foge a serpente; / E de repente / O pobrezinho, / Salvo e contente,Rompe num canto / Tão requebrado, / Ou antes pranto / Tão soluçado, /Tão repassado / De gratidão, / Duma alegria, / Uma expansão, / Uma veemência, Uma expressão, / Uma cadência, / Que comovia / O coração! Jesus caminhaNo seu passeio; / E a avezinha / Continuando / No seu gorgeio, / Enquanto o via: / De vez em quando / Lá lhe passava / À dianteira; / E, mal pousava, / Não afrouxava / Nem repetia; / Que redobrava / De melodia! / Assim foi indoE o foi seguindo. / De tal maneira / Que, noite e dia, / Numa palmeira, / Que havia perto / Donde morava / Nosso Senhor / Em pequenino, / (Era já certo)Ela lá estava / A pobre ave / Cantando o hino / Terno e suave / Do seu amorAo Salvador!

Muitos anos de vida.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Barco Ébrio

Li um texto no PortugalClub, ao que parece saído no Libération(http://www.liberation.fr/monde/0101625174-jose-socrates-le-portugais-ensable ), , assinado por François Musseau, envoyé spécial à Lisbonne, em 7/3/2010 que tem por título “José Sócrates, le Portugais ensablé”.
Um texto esclarecedor sobre as actividades e o carácter do nosso PM e uma nação à deriva, discutindo um e outras, sem conclusões definitivas, beco sem saída, onde o PM se impõe e vai.
Uma frase surgiu, definidora do nosso país e do nosso PM, que me fez matutar. E traduzir: “ Le Portugal est un bateau ivre dans lequel le capitaine est le plus suspect de tout l’équipage.”.
Deveria ficar triste com a imagem, aparentemente ofensiva, mas depois de traduzir o bonito poema de Rimbaud, senti orgulho. Porque se trata de um extraordinário poema, “Bateau ivre” de Rimbaud, nada a ver com quaisquer conotações negativas que o seu título possa sugerir.
Um poema de rebeldia, dum adolescente de dezassete anos, que como um meteoro surgiu no horizonte literário da França e do mundo, para se apagar literariamente aos vinte e um, encaminhando-se para percursos mais aventureiros de viagens exóticas e negócios lucrativos em África e na Arábia. Um tumor num joelho causaria a amputação da perna, em Marselha, e a sua morte em 1891, aos trinta e sete anos.
Toda uma nova atitude literária, refractária ao tradicionalismo poético, está contida neste poema de visionário, onde simbolismo, surrealismo, busca de efeitos encantatórios através de uma estranha e rara imagística de sinestesias frequentes, e uma nova métrica de transposições constantes, admirável de genialidade num jovem de dezassete anos que tanta influência exerceria sobre os poetas vindouros e sobre o primeiro modernismo português.
(No poema “Bateau Ivre” é o barco que fala, um lanchão usado no transporte de mercadorias que, após ter deixado as vias fluviais, se aventurou pelo mar):

Como eu descia uns Rios impassíveis
Não me senti mais guiado pelos homens rebocadores
Peles-Vermelhas em alta gritaria tinham-nos tomado como alvo
Pregando-os nus nos postes multicores.

Eu era indiferente a todas as equipagens
Transportador de trigos flamengos ou de algodões ingleses.
Quando com os meus rebocadores acabou a gritaria
Os Rios deixaram-me descer para onde eu queria.

No marulhar furioso das marés,
Eu, no outro inverno, mais surdo que o cérebro dos infantes,
Corri! E as ilhas flutuantes desatracadas
Nunca sofreram tumultos mais triunfantes.

A tempestade abençoou o meu despertar marítimo.
Mais leve que uma rolha, durante dez noites
Dancei sobre as ondas, de vítimas eternos baloiços fatais
Sem lamentar o olhar néscio dos faróis .

Mais doce do que para as crianças a polpa das maçãs seguras
A água verde, no meu casco de pinheiro penetrando,
Me lavou das nódoas dos vinhos tintos e dos vomitados,
Leme e arpéu dispersando.

E desde então banhei-me no Poema
Do Mar, de astros penetrado e lactescente
Devorando os azuis verdes; onde, linha de flutuação pálida
E radiante, um afogado por vezes desce pensativamente;

Onde, tingindo de repente os azulados, delírios
E ritmos lentos sobre as rutilações do dia de calor,
Mais fortes que o álcool, mais vastos que as vossas liras
Fermentam as amargas manchas ruivas do amor!

Eu sei os céus estalando em relâmpagos, e as trombas
E as ressacas e as correntes: eu sei a noite,
O Alvorecer a elevar-se como um bando de pombas
E vi muitas vezes o que o homem julgou ver.

Vi o sol baixo, manchado de místicos horrores,
Iluminando longas coagulações violetas,
Semelhantes a actores de dramas muito antigos
As ondas rolando ao longe calafrios sobre os postigos!

Eu sonhei a noite verde de neves deslumbradas
Beijos subindo em lentidões aos olhos dos mares,
A circulação das seivas inauditas,
E o despertar amarelo e azul dos fósforos cantores!

Segui, em meses plenos, semelhante às vacarias
Histéricas, a vaga no assalto aos recifes
Sem pensar que os pés luminosos das Marias
Pudessem forçar o bafo aos Oceanos arfantes.

Choquei, vede, contra incríveis Floridas
Misturando às flores olhos de panteras com peles
De homens! Arco-íris tensos como rédeas
A glaucos rebanhos, sob o horizonte dos mares!

Vi fermentar os pântanos, enormes nassas
Onde apodrece nos juncos todo um Leviatan (1) (
1-monstro bíblico).
Catadupas de águas, no meio das bonanças
E os longes para os abismos cataratando.

Glaciares, sóis de prata, ondas de nacre, céus em brasa
Encalhamentos odiosos no fundo dos golfos pardos
Onde as serpentes gigantes devoradas por percevejos
Caem das árvores torcidas, com perfumes negros.

Gostaria de mostrar às crianças estas douradas
Da onda azul, estes peixes de ouro, estes peixes cantantes.
- Espumas de flores embalaram as minhas partidas
E inefáveis ventosme impeliram por instantes.

Por vezes, mártir cansado dos pólos e das zonas
O mar cujo soluço tornava doce o meu vaivém,
Lançava para mim as suas flores de sombra de ventosas amarelas
E eu ficava, tal como uma mulher ajoelhada e sem ninguém,

Ilha flutuante, balançando na minha amurada as querelas
E os excrementos de aves de olhos louros vociferando,
E eu vogava, quando através dos meus nós frágeis
Afogados desciam para dormir, recuando.

Ora eu, barco perdido sob os cabelos das enseadas,
Lançado pelo furacão para o éter sem ave,
Eu cujos Monitores (1) e os veleiros das Hansas(2) (
1-barcos guarda-costas; 2- Ligas de cidades
Não teriam repescado a carcassa ébria de água;
marítimas na Idade Média)

Livre, fumegante, equipado por brumas violeta
Eu que furava o céu flamejante como um muro,
Que leva, festim delicado para os bons poetas,
Líquenes de sol e ranhos de azul,

Que corria, manchado de lúnulas eléctricas,
Prancha louca, por hipocampos negros escoltada,
Quando os julhos faziam aluir à cacetada
Os céus de azul marinho para os ardentes funis;

Eu que tremia, sentindo gemer a cinquenta léguas
O cio dos Behemots (1) e os Maelstroms(2) espessos,
(1-Monstro bíblico; 2-turbilhões)
Fiador eterno das imobilidades azuis,
Eu sinto saudades da Europa dos antigos parapeitos!

Eu vi arquipélagos siderais! E ilhas
Cujos céus delirantes são abertos ao vogador:
- É nestas noites sem fundo que tu dormes e te exilas,
Milhão de pássaros de oiro, ó futuro Vigor?

Mas, verdade, eu chorei demais! As Alvoradas são enervantes
Toda a lua é atroz e todo o sol amargo:
O ácido amor inchou-me de torpores inebriantes.
Oh! Como a minha quilha estala! Oh! Que eu vá para o mar!

Se desejo uma água da Europa é o charco
Negro e frio onde ao crepúsculo perfumado
Um menino cheio de tristezas, larga, acocorado,
Um barco frágil como uma borboleta de maio.

Eu não posso mais, banhado com a vossa languidez, ó ondas
Seguir o seu rasto aos portadores de algodões,
Nem atravessar o orgulho das bandeiras e das chamas
Nem nadar sob os olhos horríveis dos pontões (1)!
(1-velhos navios ancorados num porto: navegar de porto em porto, como um navio costeiro)

Contra o que sugere, pois, François Musseau, a imagem do barco ébrio e do ministro encalhado até nos vem honrar. É certo que com tanta viagem, a lembrar a do nosso Gama que também descreve trombas marítimas, fogos de santelmo, costumes e violências dos povos percorridos, o barco aventureiro até chegou ao fim cansado, o que não aconteceu com o nosso Gama e os seus nautas que tiveram recompensa farta, no seu regresso, ao encalharem na ínsua de Vénus. E o nosso PM não parece tão encalhado assim, na força do seu discurso altissonante.
Além disso, o nosso Portugal e seu timoneiro, terão sempre a recompensa de serem ilustres, porque citados. No Libération, pelo menos. E poderão dizer, no final do seu percurso, que tiveram um fartote de viagens e maravilhas nestes últimos tempos. Um para desenvolver o país, com os empresários que leva nelas. O outro, para ser desenvolvido. Não tem razão, pois, François Musseau.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Os oportunismos da nossa indiferença

Recebi por email o texto que segue, revelador da extraordinária doença mental que preside ao comportamento de um PM fabricador de “cursos” “colmatadores” das deficiências ancestrais de tanta da nossa tessitura social, cursos fraudulentos cuja construção ficou bem esclarecida no texto de Marta Oliveira Santos.
O texto vinha adulterado, copiado com absoluta falta de cuidado por quem, de tanto se indignar, ficou engasgado nos acentos, em alguma pontuação, por isso dei-me ao cuidado de o rectificar, lamentando que tal pessoa que o fez tenha lançado uma nódoa sobre a professora que o redigiu e que o deve desconhecer.
Eis o texto de Marta Santos:

«Novas Oportunidades
A ignorância certificada
Marta Oliveira Santos1
Marta Oliveira Santos – Licenciatura em Filologia Românica; colaboradora de várias publicações.

O país encontra-se com uma taxa muito baixa de escolaridade em relação aos países da EU (União Europeia). Logo há necessidade de colmatar esta situação e para isso foram criadas “As Novas Oportunidades”, uns cursinhos intensivos de três meses, no fim dos quais os “estudantes”(agora com o nome pomposo de formandos) obtêm o certificado de equivalência ao 9o ou 12o anos. Fantástico, se os cursinhos fossem a sério! ...
Perante a publicidade aos referidos cursos, aqueles que abandonaram a escola ou, por qualquer razão não concluíram um dos ciclos de escolaridade, esfregaram as mãos de contentes, uma vez que agora se lhes oferece a oportunidade de obterem um certificado de habilitações que lhes poderá vir a ser útil. E como diz o ditado, “mais vale tarde do que nunca”, eles lá se inscreveram. Por outro lado, três meses das 7.00 às 10.00 horas, horário pós-laboral, uma vez por semana, era coisa fácil de realizar. Coitados daqueles que andam 3 anos (7o, 8o e 9o anos) para concluírem o 3o ciclo!!! Isso é que é difícil!
Na rua, no café, nos locais públicos em geral ouve-se: “Ah! Agora, ando a estudar! Ando a fazer o 9o ou 12o ano! Aquilo é porreiro, pá!”
Entretanto, há pessoas com quem contactamos no dia-a-dia, mais próximos de nós, o cabeleireiro, o sapateiro, a empregada doméstica, etc. que também nos confidenciam com ar feliz: “Agora, com esta idade, ando a estudar! Ando a fazer o 9o!” E nós, simpaticamente, sorrimos, abanamos a cabeça e dizemos que fazem bem, sempre é uma mais valia… Contudo, numa dessas conversas, tentei descobrir que disciplinas constavam do curso, ficando a saber que eram Português, Matemática, Informática e Cidadania para o 9o ano; e indaguei ainda como eram as aulas e a avaliação final. E fiquei atónita. Em Português o formando teria que escrever a história da sua vida e a razão por que se inscreveu no curso, sendo o texto corrigido aula a aula pela respectiva formadora; Matemática consistia em efectuar cálculos básicos e apresentar, por exemplo, a receita de um bolo e duplicá-la; para Informática apercebi-me de que seria a apresentação do trabalho escrito e, posteriormente, quem quisesse, apresentá-lo-ia em “powerpoint”; em Cidadania, os formandos apresentavam os diferentes resíduos e diziam em que contentor os deveriam colocar. A nível de Português ainda foi pedida a leitura de um livro e seu comentário, sendo a selecção ao critério do formando, o que deu origem a autores “light”, nada de autores portugueses de renome; a acrescer a este comentário teriam também de fazer a apresentação crítica a um filme e a uma reportagem. Todos estes elementos seriam entregues num dossier, cuja capa ficaria ao critério de cada formando.
Três meses passaram num abrir e fechar de olhos, por isso um destes dias, enquanto aguardava a minha vez para ser atendida num consultório médico, fui brindada com o dossier do curso da recepcionista e respectivo certificado de 9o ano. Engoli em seco aquelas páginas recheadas de erros ortográficos e de construção frásica, desencadeamento de ideias e falta de coesão, (…), entremeados por bonitas fotografias; na II parte, umas contitas simples e duas tábuas de multiplicação; e em Cidadania, os contentores do lixo coloridos com a indicação dos resíduos que se põem lá dentro.
Em seguida, com um sorriso muito branco (nem o amarelo consegui!) e, como bem educada que sou, felicitei a dona do dossier cuja capa estava realmente bonita, original, revelando bastante criatividade e ouvi-a, alegre, dizer: “A formadora disse-me que tinha hipóteses de fazer o 12o ano. Logo que possa, vou fazer a minha inscrição!”
Fiquei estarrecida, sem palavras para lhe dizer o que quer que fosse. “As Novas Oportunidades” são isto? Está a gastar-se tanto dinheiro para passar certificados de ignorância? Será que todos os formadores serão iguais a estes? E o 9o ano é escrever umas tretas e ler um Nicholas Sparks e um artigo da revista “Simplesmente Maria”? E o 12o ano será a mesma coisa (queria dizer chachada) acrescida de uma língua?
Continuando assim o país a tapar o sol com a peneira, teremos em poucos anos a ignorância certificada!»

Um texto de estarrecer. Também já tinha contactado com candidatas ao mesmo certificado, uma das quais, que já tinha feito o Inglês do 9º ano, não aproveitou a “Nova Oportunidade”, talvez por considerar que não era honesta.
Um ministro corredor de fundo, que corre cá e corre lá por onde anda quando vai ao estrangeiro, mostrar, ridiculamente, as suas habilidades de corredor, envergonhando o país, pela desnecessária saliência democraticamente idiota. Um ministro que tomou nas mãos as rédeas do governo de uma nação doente, que aceita ser dirigida por meio de propostas cada vez mais indignas e vexatórias que vão, gradativamente, moldando um povo desde sempre diminuto no seu atraso ancestral, e cada vez mais deficitário em valores, com tais marcas de perversão e abuso imposto por uma governação que poderia ser de mentirinha, mas que é bem autêntica na acefalia, no ridículo, no absurdo.
Não, não há palavras para exprimir a nossa vergonha, e nem tanto pela figura representativa da nação – ou do sítio, como se diz também – mas por nós todos que a aceitamos e nos deixamos moldar e deslizar para o abismo cada vez mais nauseabundo da desonestidade, sem intervir.
A farsa da educação, a farsa dos magalhães, das novas oportunidades - novos oportunismos - a farsa dos compadrios, a farsa da justiça, a farsa dos rabos de palha... E um país votando na farsa, defendendo-se assim contra a seriedade, que impõe regras mais ponderadas e mais honestas. Somos corruptos, sim, passivamente indiferentes ao país que está a preparar mais corruptos e mais ineptos – os nossos descendentes. Os mais corruptos defendendo-se melhor, é claro. Como agora. Não pretendemos mudar.

terça-feira, 23 de março de 2010

Abaixo o dinheiro!

Andamos todos excessivamente refilões,
Cheios de acusações
Contra as imposições
Do nosso Governo socrático
De percucientes e ferinas intenções,
Que a cada passo pretende limitar
As nossas vidas ao estritamente prático
Ou seja, às exigências
De vivermos parcimoniosamente
A fim de cordialmente
Participarmos na salvação da Nação
Que ele tanto contribuiu para perder,
E que está cada vez mais imprestável,
Segundo as condições requeridas
Pelos emprestadores financeiros
Que são alguns dos povos estrangeiros,
Trabalhadores encartados
Para viverem bem e ainda por cima ajudarem
Os deficitários como nós, que arrecadamos
Parcelarmente
Segundo as conveniências
Dos espertalhotes
Que tudo querem para eles e só eles
E nada para nós, os pequenotes.
É por isso que estamos todos fartos
De salvar a pátria e não é só o Henrique Monteiro
Que impertinentemente
Faz o historial dos seus pagamentos
Dos vencimentos
Ao longo dos governos tontos
Que foram os antecedentes
E é também o presente
Do nosso Sócrates inclemente
Sem termos escapatória,
Na nossa secular história.
Por isso, para livrar
Henrique Monteiro da sua insatisfação
Dir-lhe-ei que o dinheiro
Não faz a felicidade de ninguém
De bem,
O que é comum dizer-se.
O próprio La Fontaine o disse
Em “O Sapateiro remendão e o Financeiro espertalhão”,
Embora não seja essa a opinião,
Pelo menos em relação a si mesmos,
Dos nossos espertalhotes de ocasião
Cada vez mais abundantes e indiferentes
Aos Henriques Monteiros da nação:

“Um Sapateiro remendão
Cantava de manhã à noite e mesmo ao serão;
Era maravilha vê-lo
E ouvi-lo.
Ele remendava, remendava,
E enquanto assim fazia escancarava
Os lábios
Mais contente que nenhum dos sete Sábios.
O seu vizinho, pelo contrário, cosido em ouro,
Cantava pouco, e dormia menos ainda;
Era um homem de finança infinda.
Se ao amanhecer por vezes dormitava
Cantando, o Sapateiro, o acordava;
E o Financeiro vá de se planger
Por a Providência cautelosa
Não vender na praça o dormir,
Tal como o comer e o beber.
Ao seu hotel o cantor mandou chamar
E disse-lhe: -“Ora pois, senhor Gregório,
Quanto ganha você por ano?”
- “ Em boa fé, Senhor, por ano,
Não é a forma do meu contar”
- Respondeu, num tom risonho,
O Sapateiro laracheiro – “Eu não junto
Dia a dia; basta que no fim
Eu apanhe a ponta do ano assim,
Cada dia traz o seu pão.”
- Quanto ganha por dia então?”
- Ora mais, ora menos: o mal é, por minha fé,

Que dias há
(E sem isso os nossos lucros seriam mais honestos
Quero dizer menos modestos)
Em que não se deve trabalhar.
As festas são ruinosas,
Prejudicam o trabalho, e o padre cura
Carrega a sua prédica a cada momento
Com um novo santo”.
O Financeiro rindo-se da ingenuidade
Disse-lhe: “Eu quero pô-lo hoje num trono;
Tome estes cem escudos. Guarde-os com cuidado
Para deles se servir, em caso de necessidade.”
O Sapateiro julgou ver primeiro
Todo o dinheiro que a Terra produzira
Há mais de cem anos para a gente.
Para casa voltou, na cave o dinheiro enterrou
E a alegria com ele, consequentemente.
Foi-se a cantoria, a voz perdeu
No momento em que ganhou o causador das humanas penas.
O sono o deixou,
Teve por hóspedes as preocupações
As suspeitas, os alarmes vãos, as inquietações,
Durante o dia sempre à coca dos ladrões
E de noite, ao menor miar do gato,
Era o gato o ladrão.
Por fim, o pobre Sapateiro
Correu a casa do Financeiro,
Que nunca mais acordara:
“- Devolva-me – disse-lhe – o sono e as cantigas
E tome os cem escudos de fadigas.”

Portanto, Henrique Monteiro,
Retome a sua alegria,
Desfaça-se do dinheiro
Que diz estar farto de usar
Para a Nação salvar.
Uma consciência clara
Não sobrecarregada
De finança
É a maior fiança
De tranquilidade,
Como bem mostrou
O Sapateiro gaiteiro,
Filósofo por necessidade,
Embora, é bem verdade,
Os tempos dele fossem diferentes,
Sem telemóveis nem automóveis
Nem outros móveis
E mesmo imóveis
- Sobretudo imóveis -
Tão importantes
Para as gentes...

domingo, 21 de março de 2010

Mas as crianças, Senhor!

A minha amiga é muito intensa nas emoções que lança para cima de mim, que me limito a tomar nota sem tomar partido, ocupada que estou a transcrevê-las nos registos do multibanco ou nos das compras do Pingo Doce, quando não nos guardanapos de papel do café, quando me esqueço de levar o bloco dos apontamentos.
Há dias, a propósito de uma frase de João Pereira Coutinho num artigo de jornal “Cavaco não faz favores a Sócrates retirando-o do grelhador”, discordou: “Vai deixar assá-lo em lume brando”. Eu nem entendi bem, pois não vejo Sócrates deixando-se grelhar, acho que nós é que vamos crestando, cada vez mais esturricados no calor das refregas inúteis. Foi, salvo erro, em Braga que discursou e atacou como sempre, tonitruantemente, devolvendo as paradas, como no início do seu primeiro mandato. Vai tudo bem com ele, ele acha que está a trabalhar bem, mesmo que lhe demonstrem que há muita gente aí sem trabalho, que as escolas se estão a transformar em campos de refregas e desleixo, que os Magalhães foram atribuídos sem concurso, que em cada dia que passa a dívida cresce monstruosamente, que... O que se ouviu em Braga foi o discurso do ataque e da vitória, de um homem com grande capacidade oratória, que sabe criar esperança nos leigos como nós as duas, que tanto precisamos dela, como tantos outros como nós, que p+recisam de acreditar nas histórias das boas fadas madrinhas.
Mas hoje a minha amiga vinha de cabeça perdida, fresca a memória de notícias recentes, que nem tenho ouvido, no desequilíbrio actual dos meus afazeres:
- Eu quero dizer mal dos padres, mas tenho medo de ser castigada. Destruíram vidas durante séculos. A minha pele fica arrepiada. Os padres sempre a proibir que se soubesse. Foi preciso chegar ao século XXI, para se fazer justiça em quase todos os países do mundo. E Portugal é um deles. Um dos que fez vista grossa foi o irmão do papa Bento XVI, Ratzinger como este enquanto Cardeal. Até filmes que esses fulanos têm, a comunicação social está a mostrá-los. Deve ser dos crimes maiores que se cometem. Pois em Portugal todos os dias aparecem notícias dessas. Uma rapariga de doze anos abusada sexualmente por uma série de fulanos. Mas só cinco é que foram condenados. Eu não quero acreditar naquilo! Como é possível nos Açores!? Aqueles seres humanos podem vir cá para fora? Mete-me tanta raiva! Eu acho que o mundo inteiro devia rezar para haver um deus para estas crianças. O castigo? Cortar rente? Mas a doença é na cabeça!
A minha amiga queria que eu compartilhasse da sua opinião sobre o crime e o castigo. Eu falei no marquês de Sade que também se divertia a matar as crianças, depois das suas orgias. Repugnante, sim. E antigo, como o mundo. Mas não acredito que se faça justiça, num mundo cada vez mais perverso e cada vez mais adverso nos desequilíbrios sociais cada vez mais fundos. Pobres, sobretudo, das crianças pobres!
Mas ainda bem que a comunicação social dá o alerta. Até quando e até onde poderá fazê-lo? Afinal, o processo da Casa Pia ficou na prateleira!

sexta-feira, 19 de março de 2010

Continuação da matéria do texto anterior – “Prémios”

Hoje, Dia do Pai, decidi transcrever uns textos sobre dois pais – o meu e o de dois dos meus filhos, o primeiro, extraído de “Melodias do Passado”, publicado pela “SINAPSES”, na Internet, em 2007, o segundo, contido no livro “Anuário – Memórias Soltas”, publicado em 1999 pela Editorial Minerva.
Com eles pretendo mostrar que a sociedade em que hoje nos integramos não é melhor nem pior do que aquela em que sempre vivemos – sociedade injusta, de artifício, de benesses a quem saiba merecê-las, junto de quem pode fornecê-las.
Mas sempre vivemos. Não somos piores. Somos iguais. Só que dantes, a disciplina era maior, a perversão mais refinada, o autoritarismo mais absoluto. Hoje em dia, na indisciplina que reina, a estocada pode ser devolvida através da denúncia mediática, por inútil que seja, o poder bem seguro na devoção geral da Nação, que facilmente aceita os desmandos governativos, ilibatórios da sua própria corrupção, ou deles podendo vir a beneficiar.
Porque nos estamos a tornar um povo sem princípios, a mocidade que educamos – tirando os casos da excepção – leva-nos a profetizar uma progressiva dissolução, nas aptidões, nos costumes. Como o Império Romano da decadência, talvez que precisemos de sangue novo dos bárbaros para nos reerguermos do chão.
Eis os excertos do primeiro livro citado:
“(...) Enquanto estivera na tropa, em Macau, o meu pai estudara e fizera o segundo ano do liceu – que nessa altura incluía literatura e noções de latim e agora cada vez mais se limita a simples noções apoiadas em muita banda desenhada para estimular os raciocínios das crianças. Interrompeu o curso graças à discrepância de um superior – um sargento – para quem os versos de Camões “Numa mão sempre a espada e noutra a pena” não faziam sentido, deslumbrado apenas com o irresistível fulgor da espada, mesmo em tempo de paz, mas sobretudo avesso a saídas nocturnas para frequência de aulas, de possíveis competidores futuros nos quadros do exército ou até mesmo em algum curso superior que meu pai gostaria e talvez pudesse ter seguido, conforme lhe ouvi contar, não foram as contingências portuguesas dos autoritarismos opressores específicos da nossa mentalidade de longa data tacanha e mesquinha. Desistiu do curso, mas não interrompeu o seu jeito para a meditação e o autodidactismo que sempre lhe conheci, a par dos ombros um pouco curvos de pessoa modesta, incapaz de singrar na vida por meio de atropelos ou influências alheias ao seu próprio mérito. (...)”

“(...)Por alturas do meu segundo ano, deu-se um incidente importante na sua vida de funcionário. Um desentendimento com o seu director levou-o a ter de responder em processo, que ganhou, porque inegavelmente a razão lhe pertencia. Pôde, entretanto, adquirir mais amplos conhecimentos humanos, através da debandada de alguns colegas previdentes, postos do lado do partido superior contra ele. Lembro-me da sua indignação e também do extenso interrogatório a que respondeu no Esquadrão, sem o auxílio de nenhum advogado, porque a sua probidade advogou, melhor do que ninguém, com grande espanto do seu cepticismo, a causa que defendia. Julgo, todavia, que as respostas do meu pai - que chegámos a conhecer porque nos fez ditar-lhas, para uma cópia pessoal, nas tardes de Sábado, em que (com quanta impaciência delicadamente contida!) tivemos que suspender as brincadeiras por detrás da nossa casa - apresentavam a lucidez e clareza que sempre lhe conheci e lhe valeram a vitória no processo.
Como consequência, porém, da incompatibilidade surgida, foi transferido para Quelimane, a fim de se especializar no conceito de que os poderosos possuem sempre na mão a vara condutora dos seus interesses e respeitabilidade. (...)”

Eis o segundo texto: “História Curta
«Órfão de pai aos nove anos, numa família de mãe e mais quatro irmãs, trabalhou cedo para ajudar. Numa aldeia portuguesa. Era brioso e cumpridor, era estimado. Serviu a pátria, fez a guerra em Angola, trabalhara em Moçambique desde os catorze. E estudou. À noite. Casou, dois filhos, curso técnico, universidade, retorno à pátria com a descolonização.
Por concurso, entrou em empresa poderosa. Trabalhou sem faltas, sem truques de atestados médicos para melhor preparação para os exames do Técnico. A empresa estava acima de tudo, o curso podia arrastar-se. Formou-se tarde. Engenheiro civil, quarenta e sete anos.
A empresa abriu concurso para colocar engenheiros. Mas preteriu os seus próprios técnicos de curso recente e idade madura, para exigir técnicos jovens, apoiados em boas notas, apoiados em bons empenhos.
Honestidade, zelo, competência, a empresa ignorou tudo isso. Só queria técnicos jovens. Os técnicos de formação recente e idade madura não eram precisos. Continuariam nas suas funções de funcionários zelosos e competentes. Amadureceram a zelar pela empresa, envelheceriam continuando a zelar.
A oportunidade de aplicar os seus conhecimentos foi-lhe negada. Quarenta e sete anos. Uma vida de trabalho e de estudo arrastado. Acima de tudo contara a empresa.
Mas a empresa ignorou o zelo, a empresa não deu oportunidade. Quarenta e sete anos. Mangas de alpaca.»

quinta-feira, 18 de março de 2010

Prémios

Romena de origem, costumava aparecer à mesa da esplanada, para vender os produtos da sua sobrevivência: canetas, calendários, Bordas d’Água, isqueiros de cozinha... Era alegre e simpática, e quando não lhe comprava nada, geralmente contribuía para a sua sobrevivência com a esmola da minha desistência, convicta da inutilidade dos considerandos acerca da dignidade humana. Disse-me que se chamava Bianca, mais tarde vim a saber, quando lhe fiz o contrato para o subsídio, que o nome real era Mariana, mudara-o quando veio para Portugal.
Num dia de cansaço maior, a minha filha sugeriu-me que a contratasse para umas horas semanais nos trabalhos da casa. A Bianca veio um dia por semana para as limpezas em maior escala. Mas era nova, 23 anos, não sabia trabalhar bem, voluntariosa e rebelde a ensinamentos. Cinco euros por hora, durante um ano e meio, forneci-lhe talheres e louças, as panelas necessárias, alguma roupa de bragal, para pôr casa com o seu rapaz romeno. E antes de lhe nascer a filha, esperta no seu saber de convívio com as conterrâneas, pediu-me o contrato que lhe daria direito ao subsídio. Mas um dia, exasperada por tanta moleza e rebeldia, despedi-a. Não se importou muito, porque tinha o subsídio.
Largos meses passaram, encontrei-a várias vezes a vender os calendários da sua opção. Mas não lhe comprei nenhum, nem lhe dei mais as esmolas das minhas dúvidas sociológicas.
Soube que a minha Mãe partira uma perna e perguntou se não podia voltar. O esgotamento levou-me a aceitá-la três horas por dia. Verifiquei que a Bianca crescera. Tomou conta da casa, assumiu as suas limpezas com mais rigor, participa na ajuda à minha Mãe, alegre e terna, merece o prémio de mais um euro por hora.
Lembro-me de que, logo após o 25 de Abril, para se justificarem os nossos insucessos no desporto olímpico ou outro qualquer, corria o slogan do “perder ou ganhar tudo é desporto” e bravos éramos nós, que concorríamos sempre sem glória. Carlos Lopes, Rosa Mota, outros nomes foram surgindo a valorizar a nossa participação desde sempre deficitária e a encher-nos de brios, contribuindo o sucesso para se alargar o leque das disciplinas desportivas para competições. Afinal, os prémios são extremamente estimulantes, daí que apoiemos os que poderão projectar-nos exteriormente, ainda que mesmo só a pontapear.
Mas o negócio vem a par do êxito, e a tal educação do corpo, apanágio dos jogos gregos de outrora, deixou de ter sentido. Hoje joga-se para arrancar dinheiro, como se estuda no mesmo sentido. A última foi o prémio em dinheiro aos alunos brilhantes de escolas portuguesas, sem conhecermos os critérios que levaram à atribuição de tal brilhantismo. Uma política da actual Educação, para atrair a simpatia para o Governo que a defende e assim justifica, com um meio de corrupção nos jovens, a corrupção actual dos adultos.
Dantes, havia quadros de honra para os alunos que os mereciam e que estudavam por gosto, estimulados, é certo, talvez, também nas suas vaidades ou desejos de saliência. Mas tudo isso era positivo, porque a ambição e o brio pessoal são qualidades positivas quando levam ao desejo de aquisição de competências. O 25 de Abril aboliu os quadros de honra, na sua pseudo-bondade para com os menos favorecidos pela inteligência ou outras capacidades. Creio até que as propostas dos democratas de simplificação de competências visava a sua própria projecção, ultrapassando, com as suas novas leis massificadoras, outros a quem o estudo favorecera gradualmente. E assim os capitães se alcandoraram nos postos superiores, sem terem que seguir os estudos sempre massacrantes para quem não gosta de estudar.
Parece que o quadro de honra se instalou novamente nas escolas. Não é do meu tempo de docência. Mas o dinheiro, mola real do progresso, é actualmente também atribuído aos melhores da nação, tal como ao melhor professor, ao melhor dos melhores de qualquer coisa. Dão-se prémios aos melhores. Nas empresas, nos bancos. É estimulante.
Já não se fazem, é certo, concursos, as empresas vão buscar os melhores alunos às escolas, talvez lhes paguem melhor do que aos outros trabalhadores, que ao longo da sua vida de trabalho apenas se limitaram a cumprir com mais ou menos brio, dependendo este do profissionalismo de cada um, sabendo, de antemão, que o seu trabalho jamais seria valorizado. Eram bons profissionais por dignidade pessoal, por amor à camisola, por competência própria.
Mas os prémios de remuneração dos melhores são excessivos entre os que dirigem – os bancos, as empresas, os donos do capital, afinal, que o obtiveram, tantas vezes, por meios iníquos.
Premiar um juiz para não ser corrupto? Premiar um banqueiro, um gerente de uma empresa para o mesmo efeito? Afinal, é o Estado que paga a esses, quando há derrapagens, os contribuintes é que pagam, os donos dos capitais mal ganhos repoltreiam-se nesses fundos das suas glórias, e cá por baixo o povo vai gemendo sob as políticas dos governantes que não pedem contas, não castigam, não exigem reposição dos tais prémios astronómicos. Para não serem corruptos, mas sendo-o com mais gana ainda. Que o dinheiro sem critério os corrompeu mais e mais. Entretanto, vão distribuindo uns premiozitos aos alunos mais competentes, provavelmente arbitrariamente mais competentes, ou ao professor que assim se revelou, provavelmente também arbitrariamente, a este ou àquele da sua definição de valor, mais ou menos arbitrária. Porque fruto de acefalia, de absurdo interesse, de egoísmo, de mentira, de desprezo pela nação que só prezam nas eleições.
O povo paga sempre, e vai pagar por tudo isso, não sendo aumentado nos tempos mais próximos. Só a gasolina. E o arroz. Para o enriquecimento dos gerentes dos bancos e dos donos das empresas que os vendem. O prémio é desses. Os outros premiozitos servem para corromper, para disfarçar, para seduzir.
O prémio de um euro a mais por hora à Bianca é real, pese embora a dificuldade em o conceder. Depende do seu mérito actual, honestamente reconhecido. Por isso, estimulante. Mas o afirmá-lo é risível, eu sei.

Nem o tomate

Somos um povo de ex-agricultores.
Sempre estudámos na nossa História que Portugal era, de longa data, um povo agrícola, habituado à enxada e à charrua, à foice e ao arado, instrumentos da nossa força criadora, de trabalho de sol a sol, sem necessidade de sobrecarregar os espíritos com outra cultura que não fosse a física. E assim nos governávamos.
Também tínhamos as salinas, também apanhávamos a lenha das nossas fogueiras, habituámo-nos às rolhas da nossa exportação, por conta dos sobreiros do vasto Alentejo, o vinho do Porto, graças a umas encostas soalheiras e xistosas propícias, e sobretudo à participação inglesa de longo alcance, concederam-nos uma glória geral, conquanto que em sobressaltos, devido, por vezes, a um menor cuidado numa fabricação batoteira consuetudinária. Plantámos os pinhais necessários para os embarques nas nossas “naus a haver”, no tempo do rei trovador, para assim obter, posteriormente, o “trigo do império”.
Tivemos lanifícios reconhecidamente qualificados, graças ao gado ovino da nossa pastorícia acompanhante da nossa agricultura, como esta, pois, desprovida dos “horizontes da mente e da memória”.
Mas a ambição das riquezas na época das naus descobridoras fez-nos desertificar os campos, e vir para Lisboa viver de estadão. Já Sá de Miranda o critica, na sua “Carta ao Senhor de Basto”, condenando os costumes de grandezas inusitadas:
«...Não me temo de Castela,
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa
Que, ao cheiro desta canela,
O Reino nos despovoa....
Ouves, Viriato, o estrago,
Que vai dos teus costumes?
Os leitos, mesas e os lumes,
Tudo cheira: eu óleos trago;
Vêm outros, trazem perfumes.
E ao bom trajo dos pastores
Com que saiste à peleja
Dos Romanos tão vencedores,
São mudados os louvores:
Não há quem te haja inveja.
Entrou, há dias, peçonha
Clara pelos nossos portos,
Sem que remédio se ponha:
Uns dormentes, outros mortos,
Alguém pelas ruas sonha.
Fez no começo a pobreza
Vencer os ventos e o mar,
Vencer quase a natureza:
Medo hei de novo à riqueza
Que nos venha a cativar.(…)
Direis, e eu não vo-lo nego,
Mas quereis também que diga?
Este mundo é armado em briga,
Não busqueis nele sossego,
Nem numa alta ermida antiga. .......»

Mas já antes dele, Duarte da Gama tinha escrito umas “Trovas às desordens que agora se costumam em Portugal”, contidas no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende que vêm em apoio dessa tese de desorganização geral, provocada pelas vaidades e ambições trazidas pelos Descobrimentos - trazidas agora pelo maná de dinheiros estrangeiros usados à tripa-forra, na facilidade do seu ganho:
“Não sei quem possa viver
Neste Reino já contente,
Pois a desordem na gente
Não quer deixar de crescer;
A qual vai tão sem medida
que se não pode sofrer:
não há aí quem possa ter
boa vida.

Uns vejo casas fazer
E falar por entre-solos
(= a ocultas)
Que creio que têm mais dolos
Do que eu tenho de comer;
Outros guarda-roupa, quartos
Também vejo nomear,
Que já deviam de estar
Disso fartos. ......

Todas estas referências vêm a propósito das conversas com a minha amiga sobre o estado desordeiro da Nação, uma constante com intermitências, e foi provocada inicialmente pela constatação que, nesta “desordem” sem trovas, até o tomate é de importação. Como as uvas e os limões. Somos um povo de ex-agricultores, mas há muito o somos, afinal. Com intermitências, nos arremedos das boas governações, que não ajudaram nunca, contudo, à conscientização do homem de trabalho, sempre reduzido a alombar, para os senhores. Mas com ambições também.
Hoje foi-nos oferecido um jornal do PC. E logo a minha amiga:
- Toda a gente sabe como é que se salva o país. Todos têm as soluções todas. Olhe p’ra isto – (mostrou o jornal): - Soluções há-as aos molhinhos. Estão aqui todas. Não são eles que governam, é certo. Para a demonstração. Por isso explicam tudo direitinho, como deveria ser.
Falámos ainda em Paulo Portas, que daria um bom Primeiro Ministro, pois tem revelado capacidades de observação, com propostas de remediação que parecem sérias. Com Manuela Ferreira Leite para Presidente da República, para impor o rigor da hombridade. Utopias de uma ingenuidade a posteriori. A Nação os repele, interessada na desordem.

segunda-feira, 15 de março de 2010

O trânsito

O Dr. Salles Da Fonseca enviou-me o seguinte email, a propósito do texto “A Cama” que as provas de apreço que me tem manifestado e o meu reconhecimento da sua “fundura” humana, como patriota e “chevalier sans peur” e provavelmente “sans reproche” também, me fizeram remeter-lho.
«As pessoas ficam teimosas quando chegam a idades avançadas ou chegam a idades avançadas porque são determinadas?
Creio que é a segunda versão a dona da verdade. Só quem sabe o que quer é que assume atitudes de mando como essas que descreve tão bem no seu texto. O nosso problema - dos assistentes - é que esses nossos queridos velhotes já não têm condição física para o exercício do mando e somos nós que temos que executar o que eles determinam.
Sempre entendi que essa atitude não é de egoismo, pieguice ou qualquer outra fórmula de menoridade mas sim da tal férrea determinação que os fez chegar a tão longevos.
São fantásticos, estes nossos velhotes...
Assim consigamos um dia estar à altura deles.»
É bem reflectido este seu ponto de vista, prova de sábias certezas de caminheiro da vida. E na continuação do meu retrato de admiração pela minha Mãe, que, reduzida a uma condição de diminuição física, se revelou tão forte ainda, quer nos seus gritos, quer nos seus gemidos, quer na sua ladainha de afirmação de presença, quer em gestos inesperados da sua ânsia de libertação dos seus incómodos.
E nós censurávamos o seu egoísmo que fez algumas noites – de dia estava mais acompanhada por nós – as enfermeiras levarem-na para outro quarto, para não incomodar os outros doentes. Mostrávamos-lhe as outras senhoras também operadas, mais contidas nas suas manifestações. Mas a minha Mãe, de cabeça perdida, só queria um bacio que a fizesse soltar os gases do seu problema fecal.
Veio para casa e tudo fizemos para lhe diminuir o sofrimento. Sumos de laranja e de limão com água e açúcar, azeite na barriga, microlax, laevolac da receita médica, as primeiras noites foram de tormenta, e grande era a nossa alegria quando conseguíamos obter algum resultado. Mas aos êxitos iniciais seguiu-se a fase das bolas, duras bolas que se alojavam no ânus e a faziam gritar de dores. Expus o caso a uma naturista, vendeu-me um produto de frutos e fibras. Foi a salvação. Na primeira noite, após o primeiro comprimido – anteontem – chamou, ensonada, já sem gritos. Tinha a fralda não com bolas mas com fezes que tinham escorrido sem dor. Dormiu a noite inteira, esgotada pelo dia trágico de apelo pelo bacio, pela sanita do seu único reconhecimento, na contínua constatação da sua inferioridade de dependência, no seu pudor envergonhado de quem nunca se vira em tais assados: “Ao que a gente chega!”. Eu também ferrei num sono feliz, ao pensar que o seu problema estava resolvido graças ao “Frutos & Fibras” da ORTIS, que "favorece um trânsito intestinal natural”. Quando, na manhã seguinte, meio ensonada, acudi ao seu apelo, pisei um monte desse “trânsito” de que me não apercebera, no chão, sob as grades. Antes mesmo de acudir à minha Mãe, tratei de lavar o chinelo e o chão, pensando que, tal como nas noites anteriores em que se deslocara sozinha para fora do colchão, obstinada na ânsia de resolver o seu problema fecal, agora, na cama de grades, impossibilitada de fazer o mesmo, despejara a fralda que arrancara, no chão, sozinha, sem gritos, e só depois chamara. Tratei de a limpar e, com o auxílio do meu marido, repusemo-la na posição normal, esperando que alguém acudiria para a mudar mais tarde. E dormiu. Mas continuou a defecar, numa quantidade que me deslumbrou, lançando de si as fezes armazenadas de anos, se é possível. Tomou quatro comprimidos, ao todo. Vou suspender o “tratamento”, pois ainda esta noite lhe mudei a fralda três vezes e continua a pedir que a leve à casa de banho, ou ao bacio. Ei-la que me chama. Quer o bacio.
A minha amiga acha que eu não devia contar isto, a minha Mãe não gostaria que falasse dela, a contar destas mazelas íntimas. Outros o acharão também. Mas a minha Mãe, para mim, é um símbolo. A forma desesperada de querer ser auto-suficiente, de não se sujeitar a estas misérias da incapacidade física, peixe ou fera ou outro qualquer outro bicho contorcionando-se nas malhas que o prenderam, superiorizam-na, pela não entrega, perante a ironia trágica do "Céu sereno".
Creio que este narrado vai ao encontro do lindo texto de Salles da Fonseca. Mas a “férrea determinação” da minha Mãe encontramo-la hoje, na mesma, nos jovens que pretendem ir longe nos seus destinos, nos mais velhos que pretendem consolidar os seus.
Outros destinos se preparam, em termos pessoais, entre nós. Porque os destinos da Nação estão há muito consolidados. Na indiferença acéfala dos que a governam e dos que a querem governar a seguir. No “trânsito” nacional, causado pelo “trânsito” pessoal que vai sendo fabricado ao sabor das ambições, no desprezo pelo espaço que nos abriga, no desrespeito pelos que aí vivem, sempre em questiúnculas de mando, em arremetidas às cegas à sacola do poder, mesmo sabendo quanto esse poder é irrisório, porque já nem nos pertencerá qualquer dia a parcela de terreno em que vivemos. Mas a férrea determinação está bem visível, quer nos que governam, quer nos que se propõem governar a seguir, supondo que lhes chegou a vez de esfacelar mais um pouco, em seu proveito.
A “férrea determinação” da minha Mãe resulta do pudor de quem não deseja expor as próprias mazelas, porque criada no preconceito do corpo mostrável. A daqueles que se agitam para o “osso” é desprovida desse sentimento.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Eutanásia

(Resposta ao texto “Septuageneidade” de Edmundo dos Santos Figueiredo)
Começo por agradecer as palavras de apoio, referentes ao texto “A Cama”. E por referir, também com gratidão, a elevação do pensamento, acompanhando a elegância de forma do seu texto.
Mas o meu texto simples não enveredava por esses caminhos da eutanásia que Edmundo Figueiredo extrapolou do meu texto. Creio que se circunscrevia ao problema da prisão que a doença ou a idade trazem no percurso da vida, bichos que somos, debatendo-nos nas malhas da impotência. Para além, é claro, do amor pelo ser que nos deu o ser, que não está ainda preparado para o perder, mau grado as idades respectivas da mãe e da filha, que na juventude se admite levianamente como suficientemente recuadas e inúteis já, para se aceitar facilmente o seu termo.
Mas o medo da morte preside ainda no cérebro da minha Mãe – eu quando penso na minha é com saudade pelos meus, que iria deixar, não com aquele apego que sinto enraizado na mulher de fibra que sempre foi minha Mãe. E quando agradeceu deslumbrada o êxito da sua operação – “A Ciência está tão evoluída! Eu não senti nada!” – apercebi-me melhor dos seus terrores antes dela, julgando que não sobreviveria. E agora que a ultrapassou, continua voluntariosa, abusando egoisticamente dos que a tratam, exigindo protecção reiterada, embora vá considerando que é tempo de partir, em humilde chantagem para merecer a graça divina da não anuência a tal decreto, do que por honesta convicção da sua veracidade. Aliás, toda a sua vida última, desde que atingiu o centenário, tem girado à volta do seu medo e da sua exigência de atenção para consigo, numa esperteza egoísta que nos enfurece e simultaneamente nos faz rir, pelas suas capacidades de comando inalteráveis.
Daí que nunca a ideia da eutanásia me ocorreria, por respeito pela vida, por amor também, por muito que a degradação atinja o homem na ratoeira do destino.
Admito opiniões diferentes, como admito o suicídio, admito a liberdade de opção de cada um, admiro a coragem que tais opções fazem pressupor, mas talvez porque não sofri ainda tanto que me levasse a um acto tão consciente ou tão tresloucado, eu creio que jamais optaria por tal gesto de valentia. Será por atavismo, também, no respeito por uma religião que não pratico, mas na qual fui criada e me fala no pecado de atentar contra a vida.
Mas, por simpatia para com Edmundo dos Santos Figueiredo, talvez ainda menos septuagenário do que eu própria, transcrevo para ele um texto sobre a liberdade da opção final que nos anos setenta escrevi, e que está contido no livro “Pedras de Sal” de 1974, em 2ª edição no livro “Cravos Roxos”, de 1981.
Dedico-o, igualmente, à minha colega e de longo tempo amiga, Fernanda Sá Pires, mulher franca e sem papas na língua, Viscondessa de um Vale qualquer, pelas suas palavras de apreço, que não posso deixar de agradecer. Servirá para desanuviar, com um humor mais alegre do que o de agora, porque mais felizes então – por sermos jovens, talvez, ou por não sabermos ainda o mundo que nos esperava:
“A ESTAÇÂO DE EMBARQUE”
«As ocorrências de grande repercussão dramática sobre a cidade transmitem-se aos nervos das pessoas sensíveis ao dramatismo das ocorrências. Por isso, como pessoas sensíveis, temos discutido com animação um desses acontecimentos últimos.
A Flávia, moça de carácter recto, condena os suicídios espectaculares na via pública, com consequências psicológicas sobre as almas infantis e até cardiológicas sobre os adultos desprevenidos e horrorizados.
A Telma, sempre reflectida e metódica e ressentindo-se além disso de vagas influências chaplinescas e leituras eutanásicas, dispõe que a melhor maneira de se embarcar para o porto sem regresso é a botija de gás aberta sobre o corpo adormecido a comprimidos.
A entusiástica Joaninha acha muito românticas as mortes à Werther, com a bala misericordiosa após a despedida desesperada à digníssima Carlota.
Cá por mim não pensara no caso, achando que cada pessoa tem o direito de escolher a sua morte, já que não teve o direito de escolher o seu acto de viver.
A Sócrates foi imposta a morte e portou-se tão impassivelmente que para sempre ficou recordado pelo seu estoicismo final. É natural que ainda hoje tenha adeptos, os quais desejem tornar-se gloriosos também pela sua morte, forma de realização que não possuíram talvez em vida. Todos sabemos, de resto, que basta morrermos para sermos descritos em termos muito louváveis e imortalizantes, pois só na sepultura deixamos de causar preocupações, ou de fazer sombra.
Por isso, se desejarmos embarcar desta para a melhor, num curto voo estatelante, ou com o gás misericordioso ou a pistola romântica, ninguém precisa de se preocupar muito com isso. Com efeito, há imensos que para lá embarcam sem ser de livre vontade e possivelmente até deixando atrás de si um cortejo de saudades mais reais e mais discretas.»

quinta-feira, 11 de março de 2010

A cama

Foi uma cama bonita, que há uns anos, quando a minha Mãe passou uns tempos cá em casa, comprei para ela, atida ao preceito de que a minha Mãe gosta de se estender, às vezes no sentido do comprimento, outras no da largura, ou até na diagonal. As camas cá de casa, tirando a nossa, eram de solteiro, das crianças, enquanto não desertaram. Quando a minha Mãe veio definitivamente para cá, há uma dúzia de anos, ainda dormiu numa dessas, mas, logo que pude, comprei-lhe uma bonita, de madeira, com cabeceira e pés ondeados e quatro esferas da mesma madeira nas pontas. Quando regressou à sua casa, ofereci-lhe a cama, para as visitas.
Mas os noventa anos trouxeram a minha Mãe de volta, e passou a dormir numa cama de madeira prensada, dum conjunto de mobília de quarto com que eu presenteara um filho independente que, ao casar, o devolveu. De facto, nunca gostei dessa cama, dura e pesada, mas a minha Mãe não se importava e nela foi envelhecendo mais.
Quando partiu o colo do fémur, por se ter apoiado a uma porta que julgava fechada e cedeu, decidi trazer a cama bonita de casa dela, para a instalar cá em baixo, no escritório, e não ter que subir as escadas para o seu quarto do primeiro andar, tais como os restantes.
Trouxe do quarto dela um armário condizente, para as suas roupas, o quarto ficou um primor, com vasos, fotos, quadros, os livros na estante do anteriormente escritório, um maple e as almofadas. E o rosário – aliás, terço – também em madeira, pendurado a um dos lados da cabeceira da cama, e que adquirira a uma qualquer missão interessada em difundir missal e terço, em troca da espórtula conveniente, que tudo neste mundo se esportula, até mesmo os terços. A minha Mãe não teria grades na cama bonita, poderia deitar-se na vertical na horizontal, na diagonal, como quisesse, se pudesse.
É claro que a minha irmã censurou a pressa e a anjice na colocação de tal cama. A uma pessoa que ficaria acamada, convinha uma cama articulada e as respectivas grades. A minha Mãe teria que se habituar às grades.
No Hospital, ela provou que a sujeição à cadeira de rodas e à cama de grades ultrapassavam o seu entendimento e que os seus jeitos desesperados de libertação, para a solução do seu problema intestinal, no sítio certo e não em fraldas dela desconhecidas, provocavam animosidade em quem tinha que a atender, nem sempre respeitando a idade de todas as liberdades, numa nova infância apelativa de ternura e não de tanta impaciência. Como ela sempre disse, nos seus complexos de mulher que se recusa ao fim da vida, os velhos “cheiram mal”. Não sei onde foi buscar isso, mas tem razão. E não são só os velhos que incomodam. São todas as situações de fragilidade, e sobretudo na doença, que a vulgarização nos hospitais banaliza, sobretudo nas suas enfermarias, pois que os quartos particulares merecem o estatuto da respeitabilidade e atenção adequadas. O meu filho mais velho, sensível à morte do seu Pai, considerou há dias quanto a morte eminente reduz o homem, até – e sobretudo – junto daqueles que têm o poder de manipular os derradeiros momentos das vidas que a sua função obriga a limpar e alimentar e tratar e que muitas vezes abusam grotescamente desse poder. Já o afirmei, em relação ao meu Pai, que não teve a assistência tão contínua como a minha Mãe, no Hospital onde morreu, não só porque havia as condicionantes das horas das visitas, mas porque havia as condicionantes dos horários de trabalho.
Veio a minha Mãe para casa, para o seu quarto novo, para a bonita cama da sua liberdade, em que nem sequer reparou. O primeiro dia foi de apelo constante, impondo movimentação contínua. Veio o médico no segundo dia, que receitou também para as dores e para o sono. Dormiu melhor, mas acordou várias vezes para ser limpa das fezes do seu cativeiro. Mas as aflições de obstipação não aceitam – tal como já no Hospital – o uso da fralda protectora. A casa de banho é o lugar da sua fixação. Ou o bacio. E ontem, pelas onze da noite, ao deixar-me adormecer do rodopio da véspera, no sofá, acordei em sobressalto, ouvindo uns ruídos esquisitos. Corri imediatamente ao quarto improvisado: a minha Mãe gozava a sua liberdade no meio das muitas mantas em que se enrodilhara, tendo-as puxado para o chão, para onde descera, sem gritos, por isso julgo que com todas as cautelas da sua esperteza, de mulher que na juventude plantara, ceifara, carregara à cabeça pesadas cestas. E aprendera também a nadar no rio da terra, experiências que lhe cimentaram o carácter voluntarioso.
O certo é que se apeara da cama, caladinha que nem um rato, quando, geralmente, com assistência, se rebela com os gemidos e gritos do seu mimo. Quis procurar a sanita, ou o bacio, mas a incapacidade não a deixou avançar. O meu marido desceu ao meu apelo petrificado, chamámos os filhos e genros, que num instante compareceram, apesar da distância.
Entretanto, o meu marido lembrou que era melhor a minha Mãe dormir no colchão, no chão. Vá de retirar as partes da bonita cama, a cabeceira e os pés com as esferas de madeira, que eram a minha vaidade. Ficou no colchão, a minha Mãe. Mas de manhã tinha já a perna sã de fora, para disparar à procura do bacio.
A cama de grades vem aí, desfeita a ilusão da liberdade proporcionada pela bonita cama da minha ternura. A idade não ajuda à recuperação, apesar da fisioterapia. Nunca mais a minha Mãe se deitará livremente, segundo o comprimento, ou a largura, ou na diagonal da cama.
Mas as grades para a cama articulada terão que ser suficientemente altas, caso contrário, voltará a cair, na busca do seu conforto, e na linha da sua teimosia voluntariosa e dominadora, que a impotência conduzirá gradativamente à perda da razão. Quanto eu desejaria não ter razão, na minha profecia angustiada!

domingo, 7 de março de 2010

“Caminheiro de Mim”

Há dias assim. Deu-me no goto a canção de Ricardo Martins. Nem esperei pelo final, e muito menos pelas restantes, para agarrar no telemóvel e enviar o meu voto: 760207004. Mas pouca gente concordou. Nem sei que lugar alcançou. Nem interessava, pois só convinha o primeiro, merecedor do destaque na Eurovisão.
“Caminheiro de mim”. Bonita letra, de uma imagística suave e simples e todavia com a dimensão de uma vida humana, nos seus sentimentos e anseios, casando-se com a universalidade dos elementos da natureza e da criação humana da sua metáfora. Uma toada condizente, não estridente, e necessariamente repetitiva nos seus grupos frásicos paralelos. “Venho (2)”, “trago (1)”, “sou (6)”, os verbos iniciais da sua ordem progressiva de pensamento - origem, acompanhamento, definição - daí os versos de “ser” abundarem, na procura de uma autodefinição mais completa. A par disso, o acompanhamento ao piano pelo próprio autor e intérprete da canção, Ricardo Martins, o nosso Andrea Bocelli.
Não ganhou, a minha canção preferida, preterida por muitas outras, e sobretudo por uma retorcida “Há dias assim”.
Ouço-a pela Internet, donde tirei a letra. E aqui a apresento, em homenagem sentida a este jovem a quem auguro um excelente futuro na composição e interpretação musical portuguesa:
Venho nas asas do vento
Lá donde um lamento se torna maior.
Quando no peito sofrido
Se sente o gemido da palavra amor.
Venho dum rio de pranto
Que solta num canto todo o seu chorar,
Corre do corpo p’r’à alma
A nervosa calma de quem sabe amar.
Trago do mar e da serra
O segredo da Terra que me viu nascer
Sou trovador num caminho
Cantando sozinho em cada anoitecer.
Sou a guitarra magoada
Tangendo a toada que há no meu penar
Sou serenata da lua
Que brilha tão nua à luz do teu olhar.
Sou o poema uma chama
Que arde e que ama, que explode num ai
Sou uma dor poderosa
Cortante e teimosa que fica e não vai.
Sou caminheiro de mim
Vagueio sem fim até que o destino
Coloque um ponto final
No bem e no mal de ser peregrino.

sábado, 6 de março de 2010

Fábula domingueira

É a versão grega do episódio da expulsão dos nossos pais bíblicos do paraíso edénico, a troco de muito sangue, suor e lágrimas, que o Jeová não era brando nos castigos.
Esopo intitula a sua fábula de “Hermes e a Terra”:
Depois de ter modelado o homem e a mulher, Zeus ordenou a Hermes que os pusesse na Terra e lhes indicasse o sítio onde escavariam a sua gruta. Hermes cumpriu o seu dever, mas a Terra, no início, mostrou-se reticente e, como Hermes a intimasse a obedecer à ordem de Zeus: “Cavem, então, toda a terra que quiserem”, exclamou, “porque ma devolverão com muitas lágrimas e lamentos”. A fábula aplica-se a quem pede emprestado sem grande pejo, mas a custo paga a dívida”.
Embora mais poética a criação do homem e da mulher no mito grego, ambos fruto de modelagem divina e não por extracção grotesca de um osso masculino na explicação bíblica da criação da subjugada Eva, o mito grego é mais desconcertante, metendo ao barulho uma Terra vingativa, sem que o pobre casal humano tenha sido chamado a decidir. Ao menos, na versão bíblica, o casal já se mostra responsável, creio mesmo que politizado, desobedecendo a ordens superiores, e revelando, na sua face oculta, um sentimento de vergonha e de receio pelas consequências do seu pecado.
Mas enquanto a história bíblica se fica por aí, com a simples expulsão para a Idade de Ferro, como castigo definitivo, no caso de Esopo, pressente-se a continuidade da intriga e do suspense, ao fazer depender do casal a maior ou menor desfaçatez na ocupação do espaço Terra, com as consequências anunciadas.
Não sei como foi nos tempos de antanho. Nos de ogano, penso que descendemos de preferência do mito grego, na constância da nossa vivência de débito sem pejo.
Embora as lágrimas e os lamentos recaiam antes sobre as vítimas dele, não sobre os escavadores da terra.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Alerta vermelho

Hoje falámos nos desastres ecológicos, nos horrores que nos últimos anos têm desabado sobre o espaço terráqueo. Considerámos que o homem é bastante responsável neste ciclo de catástrofes, e que a natureza se vinga por a não respeitarmos, constantemente poluindo, e rasgando, desenterrando as riquezas do seu interior - o petróleo, as pedras preciosas, o minério, a pedra para a construção - destruindo as árvores para fazermos o papel e as mobílias do nosso bem-estar, enviando para a atmosfera os gases da nossa comodidade viageira, os gases da nossa indiferença destrutiva. Hiroshima! Onde vai isso?!
No tempo de Salazar, plantavam-se árvores, agora os incêndios destroem-nas.
Lembrei à minha amiga uns versos que se cantavam na escola primária da minha infância, que ela não conhecia:
Ó meninos, plantai árvores
Para enriquecer a Nação.
Vós dizeis que viva a Pátria,
A Pátria do coração!
A Escola que há-de erguer-vos
À vida, à glória imortal,
Nós somos a carne, os nervos,
O sangue de Portugal!
E usámos uma retórica adequada, personificando a Terra, que, com o seu ventre ferido, toda ela se rebela, abrindo as fendas da sua doença, escarrando as ondas alterosas dos seus tsunamis, mudando a temperatura das antigas estações do ano, em balanços de morte e miséria espalhados pelo mundo inteiro.
Contei ainda que, na aldeia da minha infância, o homem respeitava a terra, cultivava os campos, lavrando, semeando, plantando, regando, colhendo. Com o suor do seu rosto. Era bom, era sadio. E trabalhoso. E a terra cheirava bem, os aromas da vegetação encobrindo o cheiro do estrume da sua fertilidade. Os tractores vieram ajudar, alguns aprenderam técnicas de produzir melhor e com mais lucro, também os adubos mudaram..
Mas a maioria das terras agora é desprezada. O subsídio cobre a sobrevivência, Muitos dos campos outrora cultivados, com amor, apesar do suor, estão desprezados, desde que importamos por ordem superior.
E a Terra também se ressente disso.
Seria preciso voltar atrás.
A propósito, lembrei um texto dramatizado, com que há anos explicitei para os alunos as diferenças entre o texto narrativo e o dramático. Ainda hoje me parece ter relevância. E não só para os meninos, que devemos educar. Nós, adultos, também precisamos de lembrar. Por conta dos meninos que vão ficar depois de nós.

Dramatização de um texto lido:


A ÁGUA E O HOMEM

A FONTE:
Sou feliz! Vou correndo
Mansamente
Gota a gota
Pingo a pingo
Para à Terra me entregar.
Vou fazê-la produzir
Flores e frutos sem par.

O RIO:
Eu aqui vou a saltar
A alimentar as raízes
Ouvindo as aves trinar.
Salto das minhas margens
Para fornecer o pão
Ao Homem que é meu irmão.

O MAR:
A vida nasceu em mim.
Grandes cardumes de peixes
São belos raios de prata
A alumiar meus abismos.
Abraço todos os rios
Que se atiram para mim
E à Terra os devolvo
Para dar à Terra a vida
Que acabaria sem mim.

A NUVEM:
Venho do mar e regresso
À fonte da mais alta serra.
Já fui rio e já fui onda
E quero nascer de novo
Gota a gota
Pingo a pingo
Mansamente
Eternamente
.

A TERRA:
Muito bem! Muito obrigada!
A todos vós agradeço
A vida que vós me dais.
A fonte formou o rio
O rio vai dar ao mar
Do mar nasceu essa nuvem
Que me vai fertilizar.
E com isso ganharão
As plantas e os animais,
Os seres que em mim habitam
Todos são favorecidos
Nesta cadeia de amor
Nesta perfeita união
Entre a fonte e o rio e o mar
E a nuvem que do alto
Me irá fertilizar.

O ESGOTO:
Ih! Ih! Ih! Ah! Ah! Ah! Ah!
Estais então convencidos
De que da vossa união
Os Homens beneficiam?!
Mas os Homens não se importam!
Eis-me aqui, cheio de força,
Despejando as impurezas
Forjadas pelas mãos dos Homens
No Mar, no Rio, na Fonte,
Matando os peixes e as algas
Poluindo os ares e o monte
Em enxurradas de força.
Ih! Ih! Ih! Ah! Ah! Ah! Ah!

A CRIANÇA:
Meninos, vamos unir-nos
Para salvar a natureza:
O que Deus fez está bem feito.
São bons e belos os rios
E as fontes e as nuvens e os mares,
Não podemos poluí-los,
Não podemos ofendê-los,
Não podemos alterá-los.
Temos de os respeitar
De os amar,
Se nos amarmos também
E à Terra que é nossa Mãe.
Quem assim o não fizer
Está condenado:
Será destruído
Autodestruído
Por sua mão imolado.
Por isso gritemos todos:

TODOS
Não, à poluição!
Não, à poluição!
Não, à poluição.
À poluição
NÃO!!!


quinta-feira, 4 de março de 2010

“Até dizer chega”

Texto do livro “Pedras de Sal”, de 1974, editado em 2ª edição em “Cravos Roxos – Croniquetas verde-rubras”, de 1981:
«E Portanto...»
«Eu acho que só progrediremos com Moçambique independente. E portanto só a Frelimo corresponde aos anseios da população. E portanto só seremos fortes e livres sob o domínio da Frelimo que tem estatuto.”
A maioria das pessoas interrogadas pelo jornal “Notícias” exprime-se assim. Matutaram longamente no caso, vê-se bem, e portanto fazem as suas deduções com lógica matuta.
O processo de politização encetado pelo jornal “Notícias” revela esmagadora maioria de adeptos da dedução. De cada quatro pessoas que respondem de cada vez, três, pelo menos, respondem do modo supracitado.
Isso obriga-nos a todos a ponderarmos a questão para, se formos nós os interrogados da próxima vez, também deduzirmos assim, pois é a resposta mais inteligente e essa inteligência vai transparecer na nossa fotografia.
Eu só tenho pena que não me tenham perguntado a mim sobre o referendo e a independência e tirado o retrato. Havia de dizer que não ao referendo – estávamos tão bem assim! – e havia de dizer que sim ao Samora Machel, por causa do bem-estar dele, que quando viaja para a Zâmbia para travar as conversações vai no avião particular do Kaunda e é recebido no palácio deste com o estatuto, enquanto o desprezado Mário Soares fica no hotel sem avião, coitado, por falta do estatuto.
E havia a minha resposta inteligente de transparecer no meu retrato, mas tudo isso não passa de sonho, que o “Notícias” não quer lá todas as fotografias e portanto não posso também deduzir.»

Vem o texto a propósito da conversa com a minha amiga, indignada com a despesa implícita na viagem dos governantes e C.ia a Moçambique, em avião a abarrotar de ansiosos de diversão por conta alheia.
- Estão a gozar até dizer chega. Viagem a Cahora Bassa, lautos repastos nos Polanas da terra...
- Mas vão oferecer também os seus préstimos, não acho que vão só gozar. Sócrates vai emprestar recursos que suponho não nos pertencem, e que servirão essencialmente para os governantes de lá poderem vir cá também gozar até dizer chega. Ou há moralidade...
- Agora é que o TGV vai ao ar. Devem gastar as últimas tarifas do empréstimo europeu...
- Sim, mas é uma boa vingança para Mário Soares, por conta do estatuto. O Samora Machel lá saberá, junto dos anjinhos, que também já temos estatuto, dilatado a uma comitiva de muito peso. A evolução é uma teoria que a prática entre nós justifica até dizer chega.