terça-feira, 30 de junho de 2009

As uvas da nossa vinha

Quando criança, vivi numa aldeia portuguesa com fruta, que eu arrancava directamente das árvores, subindo às macieiras, cerejeiras, colhendo os abrunhos de um pequeno abrunheiro do nosso quintal, na casa alugada.
Mais tarde, em Moçambique, eram bananas, papaias, mangas, laranjas, goiabas, ananases, as frutas da terra, mas tinha saudades da fruta da minha aldeia. Havia também uvas, peras, pêssegos, maçãs, fruta bonita importada da África do Sul, de clima temperado como o nosso aqui. Mas o sabor não era o mesmo do da encantada infância.
Recuperei esses sabores quando retornei, porque eram bons ainda os produtos que chegavam do campo aos mercados. Mas a entrada na “Europa” criou entraves à fruta e a tantos produtos da nossa praça. A nossa fruta não tinha tamanho suficiente para ser vendida nos mercados europeus, incluindo o nosso. Pagou-se aos camponeses para abandonarem as hortas, Portugal caiu na modorra produtiva.
Houve laranjas e tomates destruídos nas ruas, porque não vendáveis nas praças, Portugal secou nos campos. Preservaram-se, contudo, apesar das destruições impostas, vinhos da nossa lavra, alguns com direito a prémios internacionais. Vinho é sempre algo a preservar e não houve Europa que no-lo fizesse dispensar.
As praças abundaram em fruta estrangeira, do tamanho próprio, calibrado, das suas clonagens esterilizadas, sem o sabor do nosso solo não artificial e do nosso sol criador, mas com o tamanho necessário para as nossas importações de povo que se abotoou com a côdea do servilismo, deixando os campos maninhos donde lhes viera antes o proveito, sem saudades das terras verdes de outrora, os velhos cada vez mais velhos, os filhos e netos optando pelas cidades de mais cultura e possibilidades de sobrevivência.
Abriu uma loja da fruta aqui perto. E oh surpresa! A proveniência da fruta, tirando as bananas e as papaias, diz “Portugal”. E também os feijões e os nabos e os grelos. Comi uva da nossa! E figos, e pêssegos, retomei os velhos sabores do passado.
Que se passou? Será que já se pode trabalhar a terra para vender ainda que só como produto caseiro? Serão novas as directivas impostas pela União Europeia, envergonhada com a sua política de intrusão anterior na vida económica dos povos da sua esfera política?
Mas se se quiser que o nosso povo trabalhe agora, que envelheceu com direito a vencimento e a reforma, o nosso povo dirá, gasto, solitário e indiferente: Vai tu.
Porque deve ser muito difícil limpar os campos maninhos, endireitar, de novo, a nossa vinha, para vender as suas uvas, bem mais saborosas do que as de importação.
Destruir é imediato, a reconstrução muito mais penosa.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Moralidade de “fábula”

Quando as coisas nos correm de vento em popa, geralmente com escândalo social, atribuímo-lo à nossa cabeça, ao nosso cérebro escorreito, que nos tornou donos do mundo. Quando os reveses – que os há sempre – dão um piparote no nosso êxito, jamais atribuímos à nossa cabeça a razão do destroço, mas antes à Sorte, ao Destino, à clássica Fortuna.
É o que comenta La Fontaine na sua fábula “A ingratidão e a injustiça dos homens para com a Fortuna”, a respeito de um traficante marítimo que tanto enriqueceu, que os seus dias de jejum, cumpridos devotamente, eram autênticos banquetes.
Gabava-se ele do seu “savoir faire” e do seu talento, a correr riscos e a colocar os seus dinheiros, não ainda nos offshores da nossa modernidade, mas noutros paraísos seria, de igual modo frutuosos, além da sua devoção.
No entanto, as coisas mudaram, os ventos foram-lhe contrários, empobreceu. E não é que desatou logo a incriminar a Fortuna, ou Sorte, ou Destino, Sina, Acaso, de tal despautério? Jamais culpou a sua cabeça, dantes tão talentosa. E La Fontaine conclui: “Le bien, nous le faisons; le mal, c’est la Fortune; / On a toujours raison, le destin toujours tort.”
Veio-me isto à ideia a propósito do que por aí vai de ventos propícios a tantos, que eles não deixarão de atribuir à argúcia dos seus cérebros e do seu “savoir-faire” os êxitos das suas vidas de traficantes terrestres, ingratos para com a Fortuna e mesmo com o “tronco nobre de seus antecessores”, tantas vezes na origem deles, como já Camões explicava. São, realmente, sempre os seus direitos, as suas cabeças, as suas capacidades, os responsáveis e, neste ponto, dou-lhes inteira razão.
Não, não devem nada à Fortuna, tenho a certeza. Quando muito ao nosso “status” reconhecido de hibernação da Justiça, neste espaço em que se movem. Têm, realmente, uma excelente cabeça. E acho que não passa de fábula a moral da história do traficante marítimo, de ingratidão para com a Fortuna, na sua fortuna, de injustiça para com a mesma, na sua adversidade, segundo La Fontaine.
Acredito, realmente, na inteligência dos traficantes com êxito, sejam marítimos, terrestres ou mesmo aéreos. E se, por acaso o perdem, deve-se isso não aos reveses da Fortuna, mas antes à inteligência de outros traficantes, de iguais espaços.
Penso eu de que. Mas sinto inveja.

domingo, 28 de junho de 2009

“Era Salazar que falava nos custos...”

Que nem todos devem agir do mesmo modo, tal é a moral que La Fontaine atribui à sua fábula dos dois burros – um carregado de sal e outro de esponjas, guiados ambos por um condutor em dificuldade com o primeiro, recalcitrante na longa travessia por vales e montes, o sal pesando, enquanto o das esponjas deslizava airoso e elástico para contentamento do seu amo, que por isso o distinguiu, na travessia do rio, cavalgando-o, enxotando o outro que, afinal, acabaria por dar boa conta do recado, derretido o sal na água, atingindo a margem oposta sem esforço. Não assim o das esponjas, cavalgado pelo dono. Iam-se afogando os dois, as esponjas pejadas de água, só salvos com a intervenção de um benfeitor de ocasião.
E aqui voltamos à moral da história, a propósito da frase que ouvi hoje ao Primeiro Ministro, numa das suas inaugurações de obra, chamariz de votos - “Era Salazar que falava nos custos”: Não devemos agir todos do mesmo modo.
Salazar falava nos custos – era o burro que carregou o sal, penosamente, estreitamente, mas salvando-se – e salvando a nação - do afogamento, eficientemente, mesmo na estreiteza da sua governação poupada, a pensar nos custos.
Sócrates que o afirmou, exaltadamente e troçando, a propósito da simultaneidade ou não das próximas eleições, por conta das contas, é o burro ligeiro, carregado com as esponjas da sua empáfia e irresponsabilidade, indiferente aos custos, que num qualquer riacho se pode afundar e o dono – o povo - com ele.
Mas porque hoje é domingo - dia de missa... dominical - acreditemos num benfeitor de ocasião, ou outro. Qualquer um serve. É preciso ter fé. Oremos.

sábado, 27 de junho de 2009

Governo de maioria?

Foi um dos assuntos de que demos opinião, depois das compras, já não nas volutas do “pensativo cigarro”, porque os fumos deixaram de acompanhar, nos recintos fechados, as espirais das nossas conversas flutuantes, e mesmo nos locais abertos, por preocupação pelos efeitos nocivos do tabaco que mata, mas sobretudo passou a incomodar muito, creio que como consequência da participação das escolas nesta onda de abolição do prazer tabagístico. E digo isto, porque quando as minhas netas mais velhas entraram na primária e vinham cá para casa para os encargos das suas responsabilidades escolares, mal eu puxava da primeira fumaça, logo elas, com as mãos servindo de abano, para a esquerda e para a direita, afastavam as espirais do meu fumo, em atitude de preservação da sua saúde e de obstáculo aos meus pensamentos ou, em erudita hipálage, aos do meu cigarro, logo transformados em comentários moralistas e de indignação sobre o respeito devido aos mais velhos.
Realmente, nos tempos áureos da minha juventude sempre o meu pai fumara com bastante pertinácia e nunca a nós, suas filhas, passara pela cabeça criticá-lo por isso ou desviar, com as mãos, os fumos do seu prazer. Mas a juventude hoje manda nos pais e nos avós, e as escolas dão o seu contributo para isso, no empenhamento sobre a preservação da saúde física, prioritário sobre a saúde na educação cívica. A verdade é que na questão da difusão da droga, ninguém convence ninguém a zelar pela sua saúde ou a alheia, e assim vamos apodrecendo, sem abanos de zelo público.
Tratou-se, pois, da questão que anda na crista da onda, a se preferimos um governo de maioria absoluta ou relativa. O argumento a favor da primeira, baseou-se apenas no conhecimento que temos do nosso jeito atropelador, de preferência àquele de racionalidade para um consenso, a bem da Nação, se a proposta do governo for digna de aceitação, postas as cartas na mesa com clareza.
O governo de maioria absoluta “s’en fiche” relativamente às propostas dos outros partidos, e vota só e vai em frente ditatorialmente, sem mais ponderações, ponto final. E há sempre quem diga que só assim se pode governar, mesmo os que defendem a democracia, porque, garantida esta como cliché autoglorificador, não importa que um governo de maioria, que se intitula de democrático, se torne facilmente despótico e até absurdo na sua acção governativa. Como se viu por este. E tem sempre quem o defenda, como estando a construir, mesmo que a construção nos pareça de baralho de cartas, ou da casinha de colmo de um dos três porquinhos. Mas talvez o defendam por serem participantes na mesa do banquete, no “salve-se quem puder” de todos os tempos.
Porque, neste país, vergado ao peso de uma ancestral desinformação, passou a ser-se, ou a favor da democracia ou do contra. E surgem os rótulos - direita, esquerda - com o centro flutuante - mais p’r’à direita ou mais p’r’à esquerda – sem se analisar a sanidade ou a insanidade de tais ditames, e muito menos das propostas governativas.
Quanto à maioria relativa, ela pareceu-nos permitir chegar mais facilmente aos consensos de razoabilidade, pelo menos jogando com o partido ou os partidos que a podem ajudar a decidir, após ponderação de mais que um.
Governo de maioria? Governo de minoria? Governo de união, em prol da nação? Mas será que com tanto défice, tanto domínio de escândalo contabilístico, tanta Justiça em ponto morto, ainda há quem se atreva a propor-se para governar? Viva a coragem de todos esses. Prometo que vou dar o meu voto. E fazer votos para que vença o que mais pareça amar o seu país. Mas estou pessimista.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Um Homem


Tenho à minha frente o último retrato do meu Pai. Uma foto bonita do dia em que soubemos – não ele – do seu cancro. Vem a caminhar, pela calçada da casa, agarrado à sua bengala, com o seu chapéu, o sobretudo, os verdes do jardim em seu redor, a sua figura serena que pouco mais duraria. Um Homem. Foi na antevéspera de Santo António que morreu, há já trinta anos. Também se chamou António. António José de baptismo, António de crisma, por modéstia, apagando o nome supérfluo, como rasgaria os versos a marcas de cigarros em concursos lourençomarquinos, que lhe valeram inúmeros prémios, entre os quais, o primeiro rádio que tivemos na nossa casa. Já várias vezes semeei textos sobre ele e, na saudade de hoje, reforçada pelo receio do futuro para os meus filhos e netos, volto a lembrá-lo na sua firmeza e inteligência, tantas vezes manifestadas no seu trajecto pela vida, na prontidão com que compunha os seus discursos para a família, nas nossas festas de harmonia envolvendo familiares e amigos, no seu amor pelos seus, no seu autodidactismo, no profissionalismo do seu trabalho, na não integração no espírito do salazarismo, obediente mas não subserviente, homem de pensamento livre, mas que jamais traiu os valores a que, como cidadão da sua pátria, prometera obedecer.
Um Homem como gostaria de encontrar ainda hoje. Mas, como a "flor" do “Petit Prince”, por este cultivada com amor, e que ele distinguia entre todas as outras, as figuras dos pais não se repetem, únicas nos corações dos filhos, para todo o sempre.
E é com quase idolatria que o invoco tantas vezes, pedindo à sua hombridade, à sua força moral que interceda para que ainda possamos ter salvação, neste vazadoiro em que nos tornámos como nação.
Ao transcrever um texto que o evoca, é, simultaneamente, a evocação de um passado em “outras partes da esfera, em outros céus diferentes”, como diria Sá de Miranda na "Carta a D. João III", no seu tempo, ainda orgulhoso das proezas praticadas pelos Portugueses, que traduz um pouco do entusiasmo vivido pelo punhado de cidadãos tentando a todo o custo impedir a concretização do trucidar de um país, efectuado à revelia e na surpresa desses que trabalhavam em prol da sua terra.

“EXPERIÊNCIA”
in “Cravos Roxos- Croniquetas verde-rubras”, 1980

«Domingo de sol em Lourenço Marques, 28 de Abril de 1974, três dias já do regime democrático implantado em 25. Em Portugal gritava-se com euforia, nas colónias vivia-se com o pavor do amanhã que chegou rapidamente. Também se gritava muito, é certo, e escrevia-se. E faziam-se discursos inflamados. E punha-se a nu anteriores fraquezas, como por exemplo a do sujeito que anteriormente explorava pretos e posteriormente, cheio de solicitude, alardeou ter estado num congresso como representante de Moçambique perante a bandeira da Frelimo hasteada.
Logo o facto provocou indignado movimento de protesto contra a traição e desse movimento nasceu a FICO (Frente Independente da Civilização Ocidental), que organizou uma manifestação em frente da Câmara Municipal, nesse Domingo de sol de 28 de Abril de 1974.
Eu também fui à manifestação – a essa e à do Rádio Clube, em Setembro – para garantir a minha firme decisão de continuar a defender a civilização ocidental na África, coisa que já fazia há muitos anos. Tinham-me dito que aquilo era Portugal, o que eu sempre cri, tratando de colaborar na manutenção de um Portugal dilatado e rico.
Por isso concordei com a designação de “traidor” atribuída ao tal sujeito anteriormente explorador e posteriormente desejando redimir-se. De facto o 25 de Abril fora todo ele um movimento de traição aos princípios que aprendíamos todos dantes – alunos, soldados, funcionários, burgueses e parasitas – e que passámos a ignorar depois, até mesmo os parasitas.
Entretanto, na manifestação da FICO, falou-se muito, falou-se bem, ainda dentro do velhos esquemas que se provou mais tarde serem abjectos e despidos de valor significativo. Também se cantou a Portuguesa, que largamente se demonstraria ser despida do mesmo valor. Mas eu não cantei. Chorei, pela primeira vez, ao ouvir o hino nacional, sentindo a desagregação em processo na pátria dos navegadores ousados que Camões glorificara.
Voltei para casa mais firme, mais crente de que as forças ordeiras conseguiriam segurar ainda o império em vias de dissolução. O general Costa Gomes falara, de resto, em Angola, pouco antes, e prometera um processo elegante de autodeterminação antes da independência a longo prazo. O general Costa Gomes também aprendera como eu os vastos limites antigos da sua pátria, não vinha a Angola gastar tanto dinheiro na viagem para fazer promessas vãs. Por isso eu estava alegre e confiante e disposta a continuar a colaborar na construção do país.
Além disso sabia por ouvir dizer – que a exploração por mim exercida sobre os pretos não chegou para vir cá verificar isso – que desde a guerra das colónias Portugal enriquecera muito, fizera muitos prédios e desenvolvera muitas indústrias. Não me passava pela cabeça que o exército não quisesse mais fazer casas aqui. Nós lá é que vivíamos com muitas falhas, por falta dos boletins de importação. Mas quando se está em guerra – sobretudo se essa guerra é ajudada a manter pelos povos defensores da paz – vive-se com sacrifícios na esperança dessa paz oferecida pelos povos seus defensores.
Grande foi, pois, a minha surpresa quando, ao chegar a casa com a família, cheios de contentamento por colaborarmos num movimento generoso – e que se provou mais tarde ser traidor e de bandoleiros – recebi um telefonema da família em Lisboa. Nós tínhamos que vir e já, não havia tempo a perder, fala a irmã e o cunhado, chora a mãe, suplica o pai. Eles previam a desagregação, conheciam da política e dos seus fautores, não iam em poesias nem em credulidades ingénuas.
- Oh papá! Mas não ouviste o general Costa Gomes?
E o meu experiente pai, com o seu jeito repentista tão característico:
“- Pois ouvi, minha filha, pois ouvi! Se eu até já ouvi o general Gomes da Costa!”»

quinta-feira, 25 de junho de 2009

“Ela não fala na crise”

Mais uma vez a minha amiga se exaltou quando coscuvilhávamos sobre as notícias diárias, tão pungentes na sua maioria, e contou de uma amiga sua, senhora de vastas alcavalas da vida, a quem ela, já há alguns anos, alertava para os gastos incomensuráveis neste país, as falcatruas, os acidentes de percurso nas obras, que se prolongavam interminavelmente, tal como as da igreja de Santa Engrácia do passado, e com as consequentes derrapagens financeiras de agora e de todo o sempre, por sina velha. Mas em vão a alertara, pois a amiga da minha amiga até se espantara, já que crise não tinha e não reparara na do país.
Mas a douta referência da minha amiga às obras de Santa Engrácia, tornada chavão na língua, da figura de retórica forjada pela lenda, provocou uma certa derrapagem na nossa conversa, pois me apressei a replicar não se tratar, agora, da maldição, como lera na Internet, lançada outrora pelo cristão novo Simão Pires, por pura vingança por ter sido injustamente condenado à morte, acusado de ter roubado as relíquias da igreja, quando ele apenas se entretivera a namoriscar uma tal de Violante, encerrada contra vontade no convento de Santa Clara ali perto. As obras da Igreja de Santa Engrácia, então em começo, jamais teriam fim, segundo o anátema por ele lançado. E assim ficou na lenda, como termo de comparação.
Logo ela, admitindo o seu chavão, como esconjuro banalizado, sublimou-o, arriscando que poderia ter sido só uma vingança sobre os carrascos eclesiásticos a do dito cristão novo, mas o que é certo é que tivera pronto reflexo sobre o país inteiro, muito dado a protelar, a preguiçar, a derrapar, a falsear e a falsificar, a não concluir, pelo menos segundo os cálculos pré-estabelecidos para qualquer obra, de dinheiros sempre dispersos ao longo das morosas obras em curso, geralmente por fraudes ignoradas por conveniência vária, ou só descobertas anos depois.
Nisso concordei e voltámos à sua amiga desconhecedora destas realidades, ou de tal modo assente nelas que preferira ignorá-las, aquando da dita conversa, desviando o assunto, bem situada no seu palacete esplendoroso, como vemos em alguns filmes dos tempos áureos da América. “Ela não fala na crise”, foi o compungido remate da minha amiga.
Ainda referimos como tudo se tem vindo a decompor, de tal maneira que vivemos assentes em puro lamaçal de degradação e escândalo, mas como nos está no sangue, até apoiamos o PM que é um jovem cheio de garra para se auto-elogiar e não responder às questões que o põem em causa, vestindo sempre bem, sempre amado pelos seus e suas fãs, que são muitos, aliás, também como os do nosso cantor de voz frágil, Tony Carreira, protegido e venerado pelo nosso povo amante de festival, mesmo sob sol escaldante, em comezainas para o Guiness.
Rematámos as nossas coscuvilhices com o comentário bisonho de que há muito merecemos o Guiness. E não só pelas comezainas, como a nossa conversa muito bem exemplificou.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

“Foi aqui que tudo começou”

No “Forum Novas Fronteiras”.
Foi um discurso entusiástico o de José Sócrates. Quem disse da sua humildade? Teve, efectivamente, um desfalecimento passageiro, após as eleições, mostrou mesmo contrição, mas o Engenheiro Sócrates, habituado a correr, retomou o fôlego e ei-lo de novo bem embalado.
Tal como os deputados do PC a quem se acusa sempre de terem engolido uma agulha de gramofone, retomando continuamente o mesmo disco, o Primeiro Ministro, em novo élan, reiniciou triunfalmente a corrida, com a contabilização altissonante dos seus desempenhos governativos. Referiu a promoção das energias renováveis, e o seu governo electrónico – sem especificar se foi esse o responsável pela formação de autómatos no seu governo – e as reformas na Educação e na Saúde, não permitindo interrupções que pudessem contestar o valor dessas reformas. Expôs sobre a promoção do acesso aos empregos, indiferente aos aspectos fraudulentos da formação, para esses acessos. Exaltou o apoio às famílias, o abono pré-natal, o combate à pobreza, a modernização, o magalhães, a Europa... E olvidou ingratamente Vital Moreira.
Depois, no programa “Parlamento”, à noite, ouvi os deputados do PCP, do CDS-PP, do PSD que todos desancaram no PS, falando na adjudicação ou não do TGV, na frontalidade indispensável nesse capítulo, por uma questão de lealdade ao próximo governo, para não o condicionar já...
Mas acho que Montalvão Machado do PSD se precipitou, contando com o ovo a sair da galinha. Porque o Eng. Sócrates é que vai apanhar os ovos todos, está a trabalhar afincadamente para isso, ali onde tudo começou, no Fórum Novas Fronteiras. E a deputada do PS, Ana Catarina Mendes, advogada, soube advogar, com estridor, nessa noite, a causa do seu dirigente, recapitulando o discurso que já ouvíramos de Sócrates, ipsis verbis, com idêntica facúndia, sem escutar ninguém e atacando sempre, segundo o modelo Álvaro Cunhal e seguidores, muito em voga no PS ultimamente.
Não se falou nos vários casos de escândalo, nos discursos de patranha, incluindo o do erro sobre os valores da recessão e do desemprego, no desrespeito pelos cidadãos, na habituação do país ao subsídio de desemprego, originador de parasitismo, inércia e falta de brio, no despotismo dos patrões exigindo horas grátis, sob a ameaça chantagista de despedimentos, nas derrapagens económicas, no caso de obras de prazos e preços triplicados no seu final. Porque isso é uma constante nacional, pôs-se um véu sobre a questão, já que o povo pagará, como de hábito.
Entretanto, os dinheiros que voaram, ninguém explica para onde foram, e os implicados continuam impantes, ou serenos ou irónicos. Impunes. E o país está em falência, e as fábricas continuam a fechar, o desemprego a aumentar, a corrupção vivaz.
Mas nem Sócrates, de dia, nem a sua advogada, à noite, falaram nisso. Vê-se que estão cientes de que os ovos lhes caberão, que todos os que se sentem bem, e são muitos neste país, incluindo a imprensa escrita e falada, não deixarão de contribuir para a gemada.
Creio que Manuela Ferreira Leite, apesar das desconsiderações e vilezas de linguagem dos habituais detractores, conseguiu impor a imagem da pessoa corajosa e nobre de que o seu partido precisava e de que o país parecia estar ávido, ganhando as primeiras eleições.
Mas é uma falsa suposição, a da avidez por uma governação mais sensata. Os erros do governo vão ser olvidados ou absolvidos, e só as virtudes contarão, abundantemente propaladas. No Fórum Novas Fronteiras, onde tudo começou. E não vai acabar, em minha opinião abalizada, hélas!
Mas viva o S. João! E que não nos falte nunca o fogo... de artifício.

terça-feira, 23 de junho de 2009

As mesas da escola aberta

Geralmente gosto de ler Isabel Stilwell. É alegre, sensata, escreve sobre assuntos sociais ou pedagógicos, com uma dose de franqueza terra-a-terra, que dispõe bem e nos faz aderir muitas vezes às suas risonhas mensagens. Mas sinto, simultaneamente, que é alguém que se considera um espírito moderno, aberto, sempre pronto a defender as políticas modernas, ousadas, do governo actual, escamoteando deliberadamente as perversões e os erros desse governo, com consequências tão negativas sobre tanta gente, o que a não perturba. Já a tenho ouvido, em mesas redondas, pontificando, com os seus pareceres decididos, e as suas duras gargalhadas, de alguém que morde a vida com gosto, caminho a um futuro que os seus filhos um dia trilharão com igual optimismo e eficácia.
Ontem também a ouvi num programa do Canal 24, que apanhei por acaso, já quase no fim. Por isso não é sobre o programa, com quatro entrevistadas entre as quais igualmente a discreta Laurinda Alves que me vou pronunciar. É apenas sobre uma frase que um dos seus filhos pronunciou, quando era mais infante, sobre a sua atenção nas aulas, e que ela reproduziu, mais ou menos nestes moldes: “Ó mamã, há professores que expõem, impõem apenas, as suas matérias. Como podem exigir a nossa atenção durante tanto tempo da aula? Há outros que tornam as aulas mais atraentes, com várias mesas para os grupos de trabalho. Destes, sim, é que gostamos”.
E a mamã, de concluir, com superioridade, sobre a nota negativa que atribui à aula expositiva, e a nota positiva à da escola aberta, das mesas e cadeiras à volta, em termos de eficácia estratégica.
Perfeitamente integrada, pois, nos moldes pedagógicos da actualidade, indiferente aos problemas de indisciplina e vazio gerados pelo farfalhudo dessas pseudo-actividades que, não digo que não se façam, mas a partir de noções que os alunos deverão dominar previamente. E isso resulta de exposição prévia de saberes, se se quiser colher resultados. Parte do princípio, com sabedoria, que uma aula onde o professor expõe é apenas uma aula sensaborona, com o professor falando, ouvindo-se sem ouvir, o que é falso. Há muitos instrumentos de apoio, o quadro, mapas, gravações, que podem despertar o interesse dos alunos para uma fixação de dados ou uma melhor compreensão das questões, que servirão de apelo à participação daqueles. Se é que é importante pensar em transmitir algo a alguém hoje em dia, ou pretender formar.
Mas as intervenções de Isabel Stilwell não são inocentes, por muitas rajadas de risos que solte, que parecem submeter as outras, embora talvez o façam por delicadeza. Vê-se que toda ela é autoridade sobre os adultos que a escutam ou lêem, sobretudo porque defende a personalidade das crianças, o universo das crianças, universo em que os adultos funcionam muitas vezes de ditadores, papões, bruxas más, e as criancinhas é que são ladinas e sábias e vão construindo a sua vida, impondo as suas regras, submetendo os seus parentes, a sociedade moderna.
La Maison de papier”, de Françoise Mallet-Joris, eis um livro que se lê com prazer e encanto, pela graça dos meninos, crianças com muita personalidade, filhos de pais artistas sempre ocupados, uma casa em desordem onde entram os amigos dos filhos, empregadas várias, com os seus problemas também, e anseios e familiaridades, onde parece não haver disciplina nem formação, mas a todos a mãe atendendo, apesar do intenso trabalho, sorridente, generosa, inteligente, deixando os filhos desenvolver as suas capacidades, sem imposições e escutando-os sempre, respondendo aos seus comentários de crianças simultaneamente ingénuas e filósofas, compensada sempre, mesmo nas suas preocupações maternas, pois que até o filho extravagante, que aparentemente se desvia do percurso normal, se revelará estudante capaz quando chega o momento certo. Um livro cheio de humor, que não deixa de impor uma tese pedagógica - a do não autoritarismo, a da confiança - de superiorioridade sobre as outras, e simultaneamente exibindo a inteligência da mãe, frágil e desordenada, na casa, porque com intenso trabalho intelectual, mas solidária sempre.
Parece-me que Isabel Stilwell quer exibir um pouco essa maleabilidade materna de generosidade e saber escutar o mundo infantil, posta em destaque na “Maison de papier”, salientando altivamente também a sua inteligência e o seu saber, sem considerar os relativismos nem as contingências, nem outras posições, para ela obsoletas, por racionais que sejam.
Mas agora que lhe conheci as gargalhadas de satisfação, não senti o mesmo encanto com que sempre li os seus textos. Porque, generosa e apaparicadora com o mundo infantil, pareceu-me cruel com o mundo adulto, embora rasteira com o mundo do actual governo que apoia incondicionalmente.
No caso dos professores, creio que esfrega as mãos de contente, por a Ministra os ter reduzido às suas nulidades. Mandando-os aprender a dar aulas, sem grande necessidade de matérias, com muitas mesas e cadeiras à volta, em cada sala.
Provavelmente não tardará o dia em que o que se pede nas aulas é que o professor distribua o café do bem-estar aos seus alunos.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Textos reaccionários

A reacção do Sr. Almeida Rato a um texto meu, de simples homenagem ao patrono do Jornal “PortugalClub”, sr. Casimiro Rodrigues, pela sua hombridade, coragem e sentimento pátrio nele demonstrado, além da autenticidade da sua democracia liberal, lembrou-me outras reacções doutros “Almeidas” e minhas dos tempos do início, e por isso transcrevo a sequência dos textos infra, mau grado o seu tamanho, abusando assim, uma vez mais, da liberalidade do Sr. Casimiro Rodrigues, e esperando que o Sr. Almeida Rato os leia com a precisa atenção.
Verificará que não me acobardo com pedradas, que também me foram lançadas em tempos ainda mais temíveis – os do início da sua revolução “democrática”, a que o senhor aderiu, se tinha idade para isso, para poder calar os que sempre se afirmaram responsavelmente livres, e que não viviam submersos no ódio - como tantos construtores de baladas unilateralmente generosas - embora soubessem igualmente criticar os desmandos sociais, que eram muitos, sem terem que subverter, forçosamente, os alicerces da sua nação, que só a ausência de sentimentos pátrios e a presença exclusiva de sentimentos de afirmação própria, pelo atropelo, fizeram destruir, como deve saber por experiência.
Fazem parte do livro “Pedras de Sal” (1974), contido, em 2ª edição, em “Cravos Roxos” (1981):

1º Texto: “Madalena e as Pedradas”, o último da minha colaboração na “Página da Mulher” do “Notícias” de Lourenço Marques, mas publicado noutra secção – “Tribuna Livre” - por algum arrojado orientador dessa Secção, provavelmente saneado a seguir:

«Sempre ouvi dizer que pertencíamos a um povo subdesenvolvido e pouca cotação tínhamos no mercado da desenvoltura internacional. Essa situação humilhante, conquanto verificada também nos outros séculos, atribuía-se exclusivamente à tal ditadura subjugante que não deixava libertar os espíritos num caminho próprio e amplo, apesar de o José Régio se atrever a gritar que ia por ali e jamais por onde o mandassem, mesmo que o mandassem com vontade. Ele tinha a dele e dali não arredava pé.
Afinal, desde que se impôs a todos nós um outro regime de liberalização de ideologias, tenho-me apercebido de profundas transformações, que se reflectem numa imprensa dinâmica e arejada, e nas próprias vozes dos locutores, mais viris e orgulhosas, explicando, timbrada e eloquentemente, os pontos de vista dos diversos sectores de opinião.
Com imenso prazer, observo que somos tão cultos como os outros povos, com ideias vastas de reformação da mentalidade burguesa. Fala-se já, naturalmente, nos assuntos que eram tabu há dias, como a homossexualidade masculina e feminina, o amor livre, suponho apenas que do sexo fraco, pois o forte já o praticava, devido a uma maior cultura, a referência irónica às faces maceradas dos peregrinos de Fátima, subentendendo uma crítica à crença devota do nosso povo resignado, pelo menos o que não habita na vila morena.
Também os anarquistas já se atrevem a bramir alto e bom som que não querem construir nada, pois na desordem residem os seus princípios, tão válidos como os dos adeptos da construção.
Creio que é geral este meu sentimento de orgulho por pertencer a uma nação que tão depressa se identificou com o progresso e a desenvoltura de ideias, e até mesmo ultrapassou eloquentemente muitos outros países, no arrojo delas, embora, é certo, neles as tivesse colhido subservientemente.
A única coisa que destoa, parece-me, nesta explosão toda marcada pela intelectualidade, é um idêntico espírito de interesse e emulação prevalecendo em ambos os regimes. E a consequente falta de humanidade e de liberdade, apesar da democratização actual, manifesta nas exigências para que se destituam ou castiguem os indivíduos que trabalharam em organizações do Estado, como a Pide e outras, constituídas por funcionários que talvez se tenham limitado a cumprir o seu ofício.
A Bíblia diz-nos que Cristo se opôs ao apedrejamento da Madalena, a pretexto de que ninguém era suficientemente puro ou isento, para lhe lançar calhaus.
Os nossos democratas recentes, que pretendem iniciar a reconstrução do seu Estado por meio da violência e do ódio deveriam rever o passo bíblico, antes de lançarem a primeira pedra.
Talvez isso obstasse ao lançamento das seguintes.»


2º Texto:” TEXTO EXTRAÍDO DA FOLHA INFORMATIVA Nº 10, DE 25/5/74, DOS DEMOCRATAS MOÇAMBICANOS, EM RESPOSTA AO ANTERIOR ARTIGO “MADALENA E AS PEDRADAS”:
«Despudoradamente, os Fascistas começam a erguer as suas vozes para implorar clemência para os carrascos da PIDE.
A última em data, que saibamos, foi a de um artigo publicado na “Tribuna Livre” do “Notícias” de 20 do corrente, com a hipócrita alegação de que aqueles carrascos estavam a cumprir ordens. Este tipo de repugnante e inconsistente tentativa de desculpa já foi utilizado para com os facínoras do Nazismo. E não vingou porque foi considerado uma afronta à consciência humana.
Exigimos em nome dos Direitos do Homem que essas vozes se calem e deixem que a justiça siga o seu curso: os carrascos não serão metidos em masmorras, não serão torturados, não serão julgados em tribunais especiais, serão tratados como homens, embora a justiça a fazer-lhes se mostre implacável a punir os monstros que trabalharam para a PIDE / DGS.»


3º Texto: “QUEM SÃO OS CARRASCOS?” (Resposta ao texto anterior, já não publicado pelo “Notícias”)

«A Folha Informativa nº 10 dos nossos Democratas ataca um artigo da “Tribuna Livre” de 20 do corrente o qual, por ser meu, me proponho defender dentro da independência de pensamento que sempre norteou os meus actos e cujo direito reivindico:

1º - Parece-me infantil o apodo de fascista a mim ou às pessoas que, como eu, apenas se sentem humanas e desejam uma paz construtiva e não perturbada por malquerenças ou ódios vingativos, pouco propícios a esse pretenso clima de realização.
2º - Quanto ao meu fascismo despudorado, posso garantir aos nossos democratas que, em escritos vários neste jornal, corajosamente impugnei os erros da nossa sociedade, quando esses erros atentavam precisamente contra os Direitos Fundamentais do Homem. Prova o facto, o corte sofrido por alguns deles pela ex-Comissão de Censura, conquanto, para meu espanto, muitos outros tivessem passado impunes – o que revela certa maleabilidade de concessões da ditadura fascista. Desafio os nossos Democratas, agora eufóricos numa exaltação de iluminados, a esclarecerem se alguma vez se atreveram, em tempo da tal ditadura, a manifestar idêntica independência de expressão. Se o fizeram e foram “censurados”, é tempo agora de lançarem à luz as suas obras de incompreendidos.
3º - Exigem os nossos Democratas que essas vozes se calem, em nome dos Direitos Fundamentais do Homem. Creio bem que entre estes se conta exactamente o da liberdade de expressão, antes reprimida – embora não totalmente – e agora permitida. Pergunto, pois, aos nossos Democratas, em nome de que princípio exigem o silêncio dessas vozes, apenas porque contrariam as suas. Será que a liberdade concedida não poderá manifestar-se senão dentro do seu programa democrático? Mas isso seria uma incompreensível adesão dos seus princípios aos princípios fascistas! Não me parece justo que eles assim se queiram identificar com o regime tão energicamente repudiado!
4º - Quanto ao castigo dos carrascos, apenas pergunto porque omitem então o castigo dos crimes – e tão bárbaros! - cometidos pela Frelimo contra os seus próprios irmãos – ou até, mais discretamente, os processos usados pelos Tribunais Civis nos interrogatórios das mães solteiras, desejosas de legitimar os seus filhos, interrogatórios cheios de minúcias vexatórias e atentatórias da dignidade humana, perante indivíduos alheios ao caso, o que os nossos advogados Democratas sempre consentiram, sem que isso lhes perturbasse a digestão.»


4º Texto: “A Propósito da Madalena”:
«Além da imposição de silenciar a minha voz discordante feita pelos democratas autoritários em 25/5, mais duas vozes ironizaram a respeito da minha “Madalena e as pedradas”, em 24/5. Uma foi a de Joaquim Fonseca no artigo da “Tribuna Livre” – “Respondendo” – outra “As Pedradas e a Pide” de Guilherme da Silva Pereira.
Ao primeiro, continuarei a lembrar, apoiada por exemplos que o sr. Joaquim Fonseca deverá conhecer, que desde o nosso início como nação independente, incluindo os sessenta anos de dependência dos Filipes, a nossa posição na vida intelectual sempre foi considerada de dois ou três séculos na rectaguarda de todos os outros povos, apesar das honrosas excepções de sempre e mesmo de agora, possivelmente até nelas se incluindo o sr. Joaquim Fonseca.
Por obra e graça de uma faceta do nosso temperamento comodista e leviano, gostamos de alijar sempre as culpas dos nossos desmandos para cima dos outros. Neste caso o cabeça de turco foi Salazar primeiro, Marcelo Caetano depois, quando, segundo parece, o primeiro morreu pobre – o que não sucedeu com muitos dos que viveram sob a sua ditadura e se mostram tão revoltados com ela, por ser muito achincalhante para os democratas. Quanto a Marcelo Caetano, eu sempre ouvi dizer que, se mais não fez a favor do povo, foi porque as peias que o limitavam – possivelmente por muitos dos tais democratas ditos achincalhados – superavam a sua boa vontade.
Povo amorfo, o nosso? Mas quantos se não foram erguendo desse estado de atonia? Com dificuldade e sacrifícios, sim. Na dificuldade e sacrifícios é que se criam os verdadeiros homens, não nas facilidades.
Porque a liberdade terá que ser forçosamente condicionada, caso contrário assistir-se-á ao espectáculo degradante de que a nossa nação tem sido palco desde 25 de Abril: uma besta-fera de instintos soltos, arreganhando a dentuça onde perpassa o ódio, a vileza, a traição, a cobardia, o egoísmo, o servilismo iníquos.
Bem triste é tal espectáculo de jovens e adultos ululando iniquidades, reivindicando direitos que não possuem, todos na pressa febril de atingirem uma cimeira que não pensam obter por forma mais serena e consciente, trabalhando com solidez e coragem, esforçando-se por a merecerem realmente.
Deu-se ao povo a liberdade e o povo apenas clamou vingança. A Pide subjugara o povo, dizem. Não contesto a validade das observações. Pergunto apenas se será caso único, se cada país não terá a sua organização policial mais ou menos severa e se é lícito que os cidadãos de um país tramem na sombra contra a sua pátria. A mim, pelo menos, que a amo, impressiona-me muito todo este desbragamento anti-patriótico dos apoiantes dos movimentos de libertação.
Ora, os que exigem o castigos dos Pides, pretendem, afinal, apenas cobardemente, lembrar aos africanos (num zelo receoso angariador das simpatias dos mesmos), quanto foram maltratados por nós, incitá-los desse modo contra nós, que até vamos vivendo – salvo as excepções da regra – todos com relativa bonomia.
Sou professora e tenho colegas africanas professoras. Meu pai não era professor, era guarda-fiscal, nunca teve carro nem mobília de sala de visitas e eu costumava brincar descalça nos meus tempos de criança, para poupar as sandálias. Peço muita desculpa ao sr. Joaquim Fonseca por esta curta evocação da minha infância, muito menos erudita do que a outra bíblica da Madalena, mas igualmente aliciante.
Eu não confundo valores, não senhor. Não confundo o conceito da justiça com o da vingança. O Dr. Raposo Pereira, já observei também que me poderá elucidar através de documentários sinistros sobre as actividades da Pide. De facto, não os tenho lido nem ouvido por ser muito impressionável a essas referências impressionantes. Limito-me a analisar com muita atenção os desenhos dos democratas de Quelimane, muito estilizados – os desenhos, não os democratas – sobre as diversas formas de tortura da Pide. É certo que a delicadeza do traço prende-me de tal forma o sentido estético que perco em breve a noção do objectivo desses desenhos. Claro que o “Massacre de 3 de Maio” de Goya, ou o “Suplício de Sisamnes” de Gérard David (para não citar as bocas abertas da fome dos nossos pintores locais), me fazem mais facilmente enquadrar nos ambientes satânicos, mas deve ser porque as cabeças destes desenhos democráticos estão reduzidas a bolas. A gente não lhes nota a expressão de sofrimento e é por isso que não vibra tanto. Mas tanto os desenhos dos democratas de Quelimane, como os documentários do dr. Raposo Pereira, democrata daqui, são muito elucidativos, realmente.
O que a mim me torna céptica por vezes, como já disse na minha “Madalena...” é o reconhecimento da fraca idoneidade de certos indivíduos para acusar outros. Até tenho observado que muitos desses com muita pressa de acusar os outros, a breve trecho saem da liça, vencidos igualmente por acusações vexatórias.
Já vai longa esta diatribe, de tal modo que já nem vale a pena alargar-me a respeito do comentário do sr. Guilherme da Silva Pereira, que no meio da sua objurgatória apaixonada, reveladora de uma refinada sensibilidade, só me parece ter falhado num ponto: o do notório servilismo em relação ao Dr. Raposo Pereira, contrabalançado pela deselegância com que se refere à “senhora Regina de Sousa” (meu ilustre pseudónimo). Em época de democracia, ou somos todos doutores ou todos senhores. Não é, sr. Pereira, por meio de atitudes puerilmente desprestigiantes, que um homem revelará a sua superioridade máscula nem a sua educação, embora, é certo, eu não tenha a veleidade de supor esta última como um objectivo da sua refinada sensibilidade. Entristeceu-me apenas a atitude servil em relação ao doutor, reveladora de fraqueza de carácter, apesar da exaltada indignação contra os Pides.
São muitos os criminosos ainda a monte, diz o senhor. Ai, pois são, acredito, sr. Pereira, não penso pôr em dúvida essa verdade dramática. Que Nosso Senhor deles nos preserve sempre.»


Aqui está pois, nesta sequência de textos já tão ancestral, o motivo por que desejei elucidar o sr. Almeida Rato sobre a estima que sinto pelo Sr. Casimiro Rodrigues, como proveniente de uma certeza: a de que este não me censura ou amputa os textos, como o fizeram aqueles que citei relativos aos textos antigos – os da Folha Informativa nº 10 de há 36 anos atrás - ou os jornais de agora, referentes aos textos recentes, ou mesmo como o próprio sr. Almeida Rato faria, fosse ele qualquer coisa como director de um jornal qualquer.
Posso concluir, pois, que “Mesas Censórias” são de todos os tempos e os “Censuradores” também, não houve realmente evolução. Salvo para o caso dos verdadeiros “Democratas”. Como o Sr. Casimiro Rodrigues. Com ele “Os Lusíadas” estaria a salvo. E Gil Vicente também.

domingo, 21 de junho de 2009

Um clássico brasileiro, um clássico universal

O sentimento de fragilidade que de repente nos envolve, nos desaires de uma política de aventureirismo e ausência de escrúpulos que envergonham quem - e seremos a maioria – sempre se pautou pela confiança na estabilidade ao nível das instituições, e nos poderes organizados para proteger os cidadãos – antes da viragem que trouxe o caos – levou-me a atentar numa personalidade curiosa – a do Sr. Casimiro Rodrigues – que, indiferente a comentários, com a força real da pessoa honrada e amante da sua Pátria, decidiu criar um espaço que servisse para fazer transparecer opiniões silenciadas, mau grado a democracia, ou liberalizar opiniões mais ou menos contundentes contra a impertinência das políticas do individualismo e da injustiça que são as que temos.
Apesar do risco dos ataques maliciosos ou menos educados daqueles que não sabendo mais que debitar as patranhas de um pseudo-saber feito dos chavões de uma falsa humanidade, ou apenas ocos e grosseiros, Casimiro Rodrigues, a todos acolhe, a todos responde, a todos pretende, singelamente, orientar, na calma da sua sinceridade, no destemor da sua frontalidade.
Lembrei-me de um texto que em tempos escrevi, sobre uma obra do seu Brasil, como um Padre-Nosso que se reza em momentos de “vidas severinas”, para lho dedicar, e ao seu Jornal, com toda a simpatia:


“Vida e Morte Severina”

«A leitura de um poema narrativo em vários quadros, de João Cabral de Melo e Neto - “Vida e Morte Severina” - mostrou-nos como a simplicidade, clareza, simbolismo, riqueza linguística, não isenta de vocabulário popular e terminologia específica de costumes, objectos e natureza do nordeste brasileiro, podem ser sinónimos de dimensão clássica, pela denúncia, neles contida, de sofrimento, agressão, e exploração de um povo sacrificado numa terra agreste, onde se morre “de velhice antes dos trinta / de emboscada antes dos vinte, / de fome um pouco por dia / (de fraqueza e de doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade, / e até gente não nascida)” e cuja única saída é “a de saltar, numa noite, / fora da ponte e da vida”, depois de ter chegado ao fim da sua viagem, pelas margens do rio “Capibaribe”, o melhor guia na busca do Recife, mas ele próprio, por vezes imprestável com a seca, confundindo-se com a paisagem árida.
Poema narrativo, particularizando uma situação específica de um povo, representado por um “Severino da Maria”, nome comum a muitos mais, ele é igualmente símbolo da vida humana, no sentido do absurdo representado pela luta sem esperança, ante o irreparável da morte, mas deixando também uma mensagem de confiança com o milagre do nascimento de mais uma vida, ainda que ela venha a ser “uma vida severina”.
As influências mal se sentem no texto, ou apresentam um pendor singelo e até popular e infantil - a Bíblia (trata-se de um auto de Natal pernambucano), histórias de fadas e de bruxas (nas cenas dos dons das ciganas e das previsões dos vizinhos, juntamente com as dádivas - da pobreza mas também da alegria solidária, quais pastores de Belém - à criança que nasceu), mas, sobretudo os jeitos, as falas e os costumes mais ou menos grotescos dos participantes populares, ao longo da viagem, e os dizeres conceituosos por vezes de uma brutalidade que remete para o negativismo do conceito.
E tudo isso num ritmo fácil de redondilha que nos lembra “O Fidalgo Aprendiz”, de D. Francisco Manuel de Melo, na auto-apresentação inicial do criado Afonso Mendes: “Sou velho, já fui mancebo / cousa que, mal que lhe pês / virá por vossas mercês; / nasci no Lagar do Sebo / faz hoje setenta e três”. Compare-se com a auto-apresentação de Severino: “O meu nome é Severino, / não tenho outro de pia. / Como há muitos Severinos, / que é santo de romaria, / deram então de me chamar / Severino da Maria: / como há muitos Severinos / com mães chamadas Maria, / fiquei sendo o da Maria / do finado Zacarias. / Mas isso ainda diz pouco: ...”
Mas, mau grado a facilidade do ritmo poético e da linguagem aparentemente também singela, a peça vale por si, na simplicidade dos seus utensílios, sem artifícios nem rebuscamentos, e todavia uma obra-prima de extraordinária dimensão humana e universalidade de conceito. »

sábado, 20 de junho de 2009

“Porque não havemos nós de tomar arsénico?”

É a srª Teresa, esposa fiel do sr. João da Esquina, tendeiro de profissão, mãe extremosa da menina Francisquinha, que, em insistência matreira com o marido, repete insistentemente a frase “Porque não hás-de tu tomar arsénico?”, no jogo de sedução em torno de Daniel, filho de José das Dornas, de visita médica, em substituição de João Semana, o velho médico da aldeia. Daniel receitara ao sr. João da Esquina um tratamento à base de arsénico, insistindo na eficácia dele na alimentação dos cavalos, o que indignou João da Esquina, não só pelo desprimor do confronto cavalar, como por já estar de prevenção contra as modernices do novo médico, apregoadas exuberantemente pelo pai babado José das Dornas, a respeito duma tese muito apreciada pelos professores do filho, que versava sobre a ligação do homem aos símios, do conceito original na época.
E a srª Teresa, pressurosa de filar o recém-médico para genro, na sua teia de simpatia, vai reproduzindo, em leit-motif sagaz, intervalado com a conversa do receituário médico de Daniel, a frase insidiosa que leva o marido aos arames.: “Ó homem, porque não hás-de tu tomar arsénico?”
Nem Júlio Dinis, ao escrever “As Pupilas do Senhor Reitor”, imaginaria o efeito simbólico do seu enredo simpático sobre a nossa sociedade de arteirices e imposições, de gente acomodada ao arsénico, de gente impondo o arsénico.
Pois aqui estamos nós a ler estas notícias sobre a Ministra da Educação e o Primeiro Ministro, em novo jogo sedutor, para a apanha de votos legislativos, minimizando a avaliação, responsável pelas injustiças, subversões e pelos traumas sociais de vária ordem, e pela deseducação com efeitos pesados sobre o futuro da nação, cada vez mais ínfima e enferma, quando antes foram surdos a qualquer apelo ao bom senso, na alteração das suas exigências, a primeira suavemente recusando agora “passar atestados de incompetência aos professores”, o segundo, finalmente, soltando o pseudo-grito do Ipiranga para os professores, a tudo afeitos: “Gostaríamos de não ter cometido o erro de apresentar uma avaliação tão exigente, tão complexa, tão burocrática”. Não acrescentou “tão nula”, mas podemos ultrapassar isso.
A moda do rebaixamento à Bill Clinton, pedindo desculpa à nação americana pelas facadas que deu no seu matrimónio, tendo sido perdoado, pegou cá, estamos a ver. Sem facadas matrimoniais - que essas até merecem sorrisos de conivência e simpatia. Basta compor um novo discurso, basta compor um novo facial de seriedade e mansidão.
E nós... porque não havemos de tomar o arsénico? Torna o físico dos cavalos mais luzente e vigoroso, segundo a versão de Júlio Dinis, pela boca do simpático Daniel. Tomámos o arsénico da imposição, tomemos o arsénico da séria mansidão.
Duma maneira ou de outra, remédio já não haverá para o nosso físico.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

As lousas

Inês Pereira: “Marido, cuco me levades / E mais duas lousas.”
Pêro Marques: “Pois assim se fazem as cousas”.

É a Inês Pereira que, casada em primeira mão com o escudeiro Brás da Mata, o qual, depois do enlace se revela excessivamente machão, quando antes era maviosamente doce, embora interesseiro, por ser pelintra, como era o costume dos escudeiros, teve a sorte de o marido ter sido despachado para os anjinhos, no norte de África, não a lutar mas a fugir dum mouro pastor, que por sinal não devia ser da raça berbere.
Digo isto por ter visto recentemente no canal Discovery, no programa “Sobrevivência”, um jovem percorrendo o deserto inóspito, comendo, à maneira dos ascetas da Tebaida, e quem sabe se o próprio Cristo nos quarenta dias das tentações do Satanás, carochas cruas, cobras venenosas assadas, depois de cortada a cabeça, e extraída a pele, alimentos para repor as proteínas, como ele vai explicando, os interiores dum camelo morto que repõem a hidratação com a água de uma bolsa junto ao estômago, além da pele daquele para se cobrir na noite gélida do deserto, um tórrido percurso de dia, por contraste, até atingir as escarpas do Atlas, para aí procurar água pura e um sapo que mastiga, depois de descer e trepar todos aqueles picos com que Hércules carregou momentaneamente aos ombros o céu, em substituição do gigante Atlas, mas por mero interesse, enganando-o, o que foi acto pouco honrado, conquanto de actualidade conhecida.
O oásis surgirá por fim, além de outros contactos com os simpáticos berberes, que forneceram ao viandante o camelo morto que ele abriu, água suja para beber, leite de camela, tudo reconstituintes orgânicos, uma porcaria.
Claro que, se não tivesse os acompanhantes da televisão para gravar a odisseia e dar uma mãozinha, julgo eu, nem teria sobrevivido mesmo com os gafanhotos das proteínas, mas mantêm-se invisíveis e a gente julga o rapaz completamente desprotegido, embora marchando rapidamente, tal qual o nosso engenheiro Sócrates nas corridas das pontes.
Nem sei mesmo se o programa do Discovery vem expressamente para nós, que também tentamos sobreviver, conquanto ainda sem as carochas, e sem televisão a testar a nossa luta.
Tudo isto para explicar que o próprio engenheiro Sócrates também deve estar numa de travessia do deserto, mas penso que ele vai encontrar muitos berberes para lhe acudir com o leite necessário, contagiados pelo novo facial de modéstia e simpatia, com que nunca responde às questões mesmo de uma moção de censura, mas em jeito tenaz de revisão das suas obras. Concedeu, mais tarde, que tinha investido pouco na cultura, do que se arrependeu, mas não reconheceu que fora responsável pela incultura, com que lesou toda a Educação Portuguesa, fazendo finca-pé nos resultados positivos, obtidos pelo recurso às cruzinhas da resposta múltipla dos testes. Um exemplo apenas, este que cito. O resto... é silêncio, um manto de silêncio, dos que se curvam e salvam a pele, dos que reconhecem a inutilidade de tanta revolta sentida. E criam depressões graves até por estarem longe ainda da reforma.
Mas, retomando a minha Inês Pereira, isto é, a de Gil Vicente, esta, que inicialmente pretendia um marido bem-falante e de maneiras cortesãs, que, como vimos, foi morto por um mouro pastor, quando fugia, o que a fez desprezá-lo, em atitude de grande precocidade feminista: “Para mim era valente / E matou-o um mouro só”, Inês Pereira resolveu casar em segundas núpcias com o pacóvio do Pêro Marques, indo às cavalitas dele, que ainda por cima carregava duas lousas, encontrar-se na ermida com o ermitão, seu namorado de ocasião e dizendo, entretanto:
Marido, cuco me levades / e mais duas lousas
E Pêro Marques, de concluir com generoso garbo:
Pois assim se fazem as cousas”.

E assim, também por cá se fazem as cousas. O Engenheiro Sócrates pode sossegar, sem precisar de mudar a sua personalidade, como o Brás da Mata, embora de forma oposta: Brás da Mata mavioso dantes, torna-se em déspota depois. Sócrates déspota antes, manifestando-se modestamente ameno e solidário agora.
Não precisa disso. Temos por cá muitos berberes generosos, e muitos Pêros Marques amistosos habituados a carregar com as lousas. De longa data.
Sempre as cousas se fizeram assim, neste país de mansidão. E assim continuarão, que há sempre os que não gostam de mudanças, quando estão de bem com os Sócrates que os souberam acorrentar às lousas do seu domínio.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

A reposição dos Exames para uma sociedade mais firme

O tema da Opinião Pública na Sic foi hoje sobre exames. Gostei de ouvir vozes abalizadas de professores a defenderem a necessidade dos exames e não só de Português e Matemática. Era necessário um retomar de questões em exames das várias disciplinas, que contribuíssem para uma chamada à responsabilização, com efeito moderador sobre a indisciplina escolar, segundo o parecer experiente de uma professora que interveio.
Foi como se ouvisse uma estranha música celestial, há muito extinta do nosso espaço mental. Mas a disciplina só seria possível desde que se repusessem, igualmente, provindos do Ministério, conceitos de exigência e respeito, que não significam necessariamente subserviência à autoridade do professor, mas uma conscientificação imprescindível sobre a função de cada um.
Creio que a banalidade, o exibicionismo, a futilidade, a acefalia tomaram conta da nossa sociedade, como consequência da degradação do ensino. Disso nos apercebemos, sobretudo, quando assistimos a determinadas programações televisivas, mesmo das elites sociais, que se dirigem requebros mútuos sobre as vestimentas, os penteados ou as jóias, ou comentam sobre os comportamentos privados, próprios ou alheios, publicitados na imprensa chamada cor de rosa, em vazio poderoso que definitivamente nos arremessa para o refugo do mundo dito civilizado.
E cada vez será pior, porque trinta e cinco anos passados, continuamos a debitar as mesmas tolices pedagógicas que destruíram o equilíbrio e instituíram o atraso e a deficiência como crosta, cada vez mais densa, cobrindo este pobre país sem rumo, que nem aqueles jovens realmente conscientes conseguirão já fazer eliminar, quando por seu turno assumirem as rédeas da governação ou dos seus próprios ofícios.
Mas o escutar as críticas dos opinadores do Canal 5 da Sic, fez-me evocar os inícios dessas transformações pedagógicas nos anos sessenta e setenta, a que tentei, com a coragem do desespero, objectar em inútil intervencionismo. Nessa altura preparava-se já a desordem que se traduziu no golpe de Abril, convinha desestruturar, instituindo o caos e a anarquia, desresponsabilizando, invertendo a ordem e a justiça, fazendo trepar de voo para lugares cimeiros os que não tinham competência, muitas vezes, sequer para lugares da base.
Mas destruir é mais fácil. O despertar das consciências, no abismo de desordem mental para que os sucessivos governos sucedâneos a esse golpe contribuíram em políticas educativas propiciadoras do atraso, da mediocridade e da irresponsabilidade, não resultará nunca mais. Nem mesmo – e sobretudo - com a estranha força maquiavélica de uma actual ministra da Educação, que alardeia princípios de sanidade educativa e só consegue sanear quem já deu provas de ser educador são.
Embora sinta que estou abusando deste espaço, com transcrições de textos antigos, achei que poderão servir de reflexão a quem se interesse pela questão, tão relevante na construção ou destruição do país, e assistida por tantos de nós, no decorrer do tempo.

É do livro “Prosas Alegres e Não” (1973) que transcrevo o texto “Exames e Doçuras”, como pobre alerta contra a irracionalidade e a perversão que iam avassalando gradativamente o sector educativo, em liberalidades trazidas de fora, de um “Maio de 68” transgressor, que nos apressámos a copiar, sem termos a qualidade cultural favorável a recuperação, como tem a França e os outros países em que a formação do Homem foi sempre ponto assente, mau grado os desníveis sociais resultantes de variedade de factores:

Tudo nesta vida são modas, e uma das modas actualmente em moda é a da contestação, do ataque às estruturas, do apoio a tudo o que transforme o vale de lágrimas da vida de antanho num vale de delícias ou jardim edénico, onde tudo seja fácil e mais doce.
Referimo-nos especialmente a determinado sector desta urbe lourençomarquina, autêntico oráculo do saber pois, revelando vastidão de cultura em todos os campos, discute, com muitos dados e alguns dardos, todos os assuntos, no propósito louvável de mostrar que todos somos ceguinhos e só eles vêem. Também falaram de exames, tendo-os desapoiado.
E no entanto, esses mesmos que assim contestam a validade dos exames, são os primeiros a criticar a incompetência e impreparação dos professores e a deficiência do ensino em geral.
Ora não nos parece que a eliminação dos exames contribua grandemente para aumentar o nível mental da nossa gente. De facto, somos um povo abúlico, muito de “deixar correr”, com energia e vivacidade apenas para discutir futebol e saias às esquinas ou pelos cafés. E política, também, sim senhor! Todos somos competentes para construir e orientar os meandros da política nacional e estrangeira, os que o fazem de facto é que não percebem nada.
Em nossa opinião, a eliminarem-se os exames, desaparecerá, pelo menos por uns meses, aquela efervescência natural do período, forjadora de uma nova vida, com o fervilhar estudantil. A eliminarem-se os exames, mais incompetências se formarão, pois bem sabemos como transitam alguns alunos aos anos imediatos, com deficiência apenas numa disciplina, mas na realidade deficientes em duas e às vezes três, com a nova lei da “nota votada” pelo conselho de turma. A eliminarem-se os exames, a selecção e apuramento deles resultantes desaparecerão igualmente.
Ora, apesar dos atractivos da vida remansosa, não nos parece que seja essa a mais plena de significado e de realização. E os exames significarão, para o estudante, maior apreensão de elementos culturais, desejo de vencer um novo ano, e para alguns mais briosos, desejo de o fazer com brilho. Os exames trarão a revisão das matérias, trarão o interesse pela luta, o gosto pelas próprias disciplinas de estudo.
Se há desvantagens nos ditos exames, a maior ainda supomos que seja a não correspondência exacta, em muitos casos, entre o valor próprio e a nota obtida, pois todos sabemos como o nervosismo próprio da ocasião é tantas vezes desfavorável ao aluno mais aplicado, enquanto o à-vontade e descontracção de outro mais incompetente, o ajudam na sua relativa ignorância.
Os estudantes têm sido cada vez mais beneficiados (?) com a dispensa de exames para os que atingem determinada média, com a cada vez maior limitação de matérias, com a possibilidade de transitarem com deficiências, etc., mas a triste realidade é que, de ano para ano, o nível intelectual dos alunos vai diminuindo, transformando a missão docente, tão bela em princípio, cada vez mais em tarefa de pura frustração e desorientação para o professor mais cônscio.
Por isso não concordamos que se eliminem os exames, pois esse facto só irá favorecer a preguiça, a ignorância, o torpor dos nossos estudantes, para quem as aulas são apenas sinónimo de aborrecimento, de que reagem por algum caso mais ou menos anedótoco provocador da gargalhada, única forma de os despertar da passividade com que, dum modo geral, escutam a lição do professor.”


Do livro “Anuário – Memórias Soltas” (1999), transcrevo o texto “A PROPÓSITO DE UM TEXTO “PEDAGÓGICO”, com que, uma vez mais inutilmente, tentei chamar a atenção para a nossa crise educativa, com reflexos fundos na nossa crise social:

“Qualquer Língua, como veículo preponderante da comunicação, requer um trabalho minucioso “ab initio”, em torno da expressão escrita como da expressão oral.
Quando a cada passo somos bombardeados na rua, nos meios de comunicação, nas simples frases dos nossos alunos, com dislates linguísticos atentatórios do próprio bom senso, sentimos quanto se torna premente o retorno a um ensino mais exigente e mais sério.
Quando lemos as composições de alunos dos cursos complementares subvertendo totalmente as normas da pontuação, da acentuação, da ortografia, da translineação, das mais simples normas da coerência discursiva, achamos que, sem um “volte-face” pedagógico que reponha a seriedade no ensino, condenamos irremediavelmente a nossa Língua a uma progressiva corrupção e a um primitivismo vil e indecoroso, mau grado as excepções cada vez mais circunscritas a elites, quando o objectivo seria a sua generalização.
Quando uma estratégia precipitada de apuramento de capacidades discursivas elege uma prova geral de acesso à categoria de documento decisivo, minimizando - ou, pelo contrário, superlativando - o trabalho de três anos de Complementares, e originando situações de graves injustiças, condenamos o processo que, entendendo camuflar a própria responsabilidade na impreparação discente - por motivo de uma dinâmica geral de ensino sem seriedade - se propõe estabelecer mais um travão irrisório no acesso ao ensino superior antes de reformar os princípios básicos, distorcendo os valores, indiferente às capacidades reveladas ao longo de três anos, e promovendo incapacidades, através de critérios díspares e subjectivos de correcção de provas.
Consideramos quão indispensável se torna o retorno a uma pedagogia menos centrada no lúdico e na facilidade e mais apoiada em suportes construtivos do entendimento, como sejam a interiorização de valores por meio de um trabalho de memorização das estruturas básicas, sem que esse processo seja demagogicamente ironizado como próprio de psitacismo acéfalo, bem mais confrangedor na recitação balofa de princípios políticos do mundo adulto, ou no palrar sem conteúdo de tantos oradores de pacotilha, sem que ninguém se lembre de lhes apontar a acefalia ou o psitacismo inócuo.
Porque o desenvolvimento da inteligência e do entendimento passa também pela interiorização de conceitos e de estruturas linguísticas que favorecem uma progressiva clarificação das ideias, com o concomitante domínio da expressão oral e escrita.
Por isso, no ensino básico, indispensável se torna o regresso à aquisição de conceitos em função do respeito pela formação dos alunos e de idêntico respeito pelo valor das matérias veiculadas, quer sejam os valores morfossintácticos da língua, quer as tabuadas, quer a história e a geografia nacionais, quer os conceitos simples ligados ao universo físico que rodeia o aluno.
O programa “Rua Sésamo” que as criancinhas de três e quatro anos seguem perfeitamente absortas, repetindo posteriormente o alfabeto ou os números que ouviram, não se afasta do princípio, e bom seria que as escolas primárias o repusessem como motivação dos alunos das primeiras letras. Hoje, aliás, a tecnologia oferece meios extraordinários de motivação das aulas, meios audiovisuais que tão depressa introduzem o aluno no mundo da música ou da recitação, como o levam a viajar nos espaços temporais da história, ou físicos da ciência, da geografia e da arte. Tais programas não podem deixar de favorecer o gosto pela aquisição de conhecimentos e o despertar das inteligências pelos mecanismos de reflexão que propõem.
O que especialmente nos choca nas programações emanadas dos órgãos processadores, é a excessiva preocupação pelo bem-estar dos alunos. Como se, pelo facto de impor normas de conduta mental e cívica, a escola tivesse forçosamente de significar espaço de mal-estar e de desfazamento total com o mundo da família e da sociedade em que se integram os alunos! Acentua-se a “décalage” , e de tal maneira que cada vez mais a família e a comunidade são chamadas a interferir no foro escolar.
Tais princípios, que a reforma educativa segue com zelo subserviente, encontramo-los expressos nas pedagogias adeptas da escola activa e construtivista, e não resistimos a citar o texto “Comment combattre l’échec scolaire en dix leçons” por Philippe Perrenoud, Genève, 1985, cujo título nos chamou a atenção para a “poção mágica” de combate ao insucesso que ele fazia prever. Parece-nos de grande utilidade o seu conhecimento pelos docentes, quer pela justeza de certas observações indispensáveis a uma clarificação de princípios, quer pelo utópico e menos pertinente de algumas propostas que, ao invés de elevarem o ensino formando valores indispensáveis ao progresso, implicam antes uma descida do nível geral, ao pretenderem limitar o insucesso através de uma diversificação, em cada aula, de estratégias e graus de ensino incompatíveis com o peso horário de cada disciplina e com a carga numérica dos alunos por sala.
Do mesmo documento consta a tentativa de colmatar o desajustamento entre a escola e o meio, pela minimização do papel do professor, reduzido a “animador de grupos”, pela minimização dos conhecimentos a transmitir, já que se parte de uma definição de objectivos em que pontua o mais pequeno denominador comum dos saberes exigíveis, e pela maximização do papel do aluno, chamado a colaborar, a transmitir as suas próprias aquisições do meio exterior à escola.
Tais premissas vão de encontro à preocupação explícita nos nossos programas educativos de definir “escola” como espaço de “bem-estar”, e tudo isso nos parece de uma demagogia fútil e provinciana, que vive em êxtase perante o estrangeiro, para obter o estatuto de evoluído, sabendo que essas teorias pedagógicas não são aplicadas lá fora, onde se pede competência, responsabilidade e compostura aos alunos, nem cá dentro nos próprios institutos de línguas, exigentes de aplicação e de esforço mental.
Pretender integrar o aluno no mundo adulto pelo apelo constante às suas próprias experiências e à sua criatividade, é proporcionar a anarquia mental e física, é favorecer a indolência, é destruir a cultura e desautorizar o professor, é pretender arrancar do nada o que se traduzirá em resultado nulo, é contrariar o princípio clássico de que o engenho e a criatividade são fruto de um progressivo estudo, é, enfim, usar de sofisma e dolo com os professores e os alunos, já que os exames finais são exigentes das suas competências específicas, indiferentes aos princípios pedagógicos tão amoravelmente descritos à partida.
O mal-estar da escola provém, sim, das deficientes condições em que geralmente nela se trabalha, no desconforto de salas e átrios pingando quando chove, sem aquecimento, sem bibliotecas nem laboratórios atraentes e funcionais que ajudem à formação dos nossos alunos.
Nesse mal-estar não tocam os programas facundos e falazes. É do outro, desse que impõe disciplina e rigor, que transmite e exige conhecimentos aos atribulados alunos, condenados a ultrapassar a precariedade das suas breves experiências, pela exigência de uma teorização cada vez mais lúcida e organizada. Esse mal-estar é que choca as sensibilidades dos programadores, com a adesão imediata dos alunos sem interesses nem brio.
Todo este alarido das pedagogias que põem em causa a função da escola e o papel do professor não passa, quanto a nós, de snobismo derrotista, criador de fantasmas, e no fundo hipócrita e mais perverso do que a imagem da escola e do professor tradicionais - dogmáticos, bloqueadores, fechados ao mundo - que elas criticam. Porque o “espaço de prazer” em que pretendem converter a escola, pela flexibilização dos saberes e dos contributos, falseia a realidade do mundo competitivo e cruel que espera o jovem à saída da escola, o qual lhe exige a competência que à partida lhe retirou.
Sem negarmos o valor duma interacção equilibrada entre a escola, a família e o meio, parece-nos utopia pretender uma identificação desses espaços em que se movem as crianças, uma uniformização absurda, que contrasta com o mundo compartimentado criado pelo homem.
Por esse motivo, consideramos o texto citado um atentado à dignidade da cultura e daqueles que para ela contribuíram através dos tempos, para além do seu efeito corrosivo sobre a formação dos nossos jovens, quase diríamos de tão grave consequência como a que é ocasionada pelos efeitos da droga, porque tão propícia, como esta, à puerilidade. (1990).”


Mas a maioria da massa estudantil, cada vez mais desmotivada e debilitada para o “espectro” dos exames, que há muito se eliminou das suas competências, dificilmente seria reconduzida a essas ancestralidades educativas.
Nem compreendo mesmo como o programa da Sic se atreveu a trazer à luz, tão atrevidamente, o tema sobre a necessidade dos exames!
Foi um risco deliberado. Cautela é coisa sempre indispensável. Tal como a canja.
Mas o risco maior, quanto a mim, é ainda o de poder vir a ser apodada de fascista.

terça-feira, 16 de junho de 2009

“Tenho que me calar”

É a minha amiga que diz, acrescentando seguidamente: “Nosso Senhor castiga”. Eu respondo beatificamente que Nosso Senhor é bom, mas ela tem larga experiência de desastres vividos e também dos lidos, para se intimidar logo com as consequências, assim que protesta ou se indigna.
Acho que o seu complexo não passa de superstição, coisa que eu condeno, atida que sou a uma real devoção, dissipadora de outros mitos. Ou então são resquícios dos conceitos da justiça de Talião, e isso ainda é mais condenável desde que Cristo pregou sobre a fraternidade, com os homens todos filhos de Deus, embora não declarasse a igualdade entre os irmãos, essa só apregoada pelos Franceses e suponho que nunca seriamente generalizada.
Logo a minha amiga exemplifica o seu conceito contando daquela vez, Dia da Mulher, já nem sei quando – menos, talvez do que os vinte ou trinta anos que recorda o Guerra Junqueiro, quando partiu e deixou a velha ama chorando... E daí, até talvez sejam mais, nem sei ... Mas agora choramos nós o passado terrivelmente distante. Não tivemos, é certo, ama para nos chorar, por no nosso tempo existirem os biberons e os leites substitutos dos maternos, embora sem a qualidade dos de agora, além de que as nossas mães cumpriam escrupulosamente os cuidados da sua esfera de trabalho, tal como nós cumprimos, até com mais sobrecarga e variedade de deveres, não nos pesa na consciência o termo-nos jamais eximido ao desempenho das nossas responsabilidades.
Como ia informando, decidimos festejar o Dia da Mulher, nesse dia distante, apanhando o combóio para Belém para visitar os Jerónimos. Quando chegámos a Belém já chovia, mas arrostámos intrepidamente a borrasca, à chuva sem guarda-chuva, por imprevidência, pois não contámos com a mudança climática, os Boletins Meteorológicos da época, muito falíveis nas informações sobre o tempo.
Tive que ouvir a minha amiga, encharcada e com a consciência pesada por se ter desviado do seu recto dever de tratar do almoço da família, partindo para Belém de comboio, embora comigo, que sou isenta, embora também me encharcasse: “Nosso Senhor castiga sempre”.
Mas visitámos o monumento, e ainda tivemos tempo de comprar os pastéis de cerveja na casinha perto da dos de Belém, e retomámos o caminho do redil, para cumprir a nossa obrigação diária.
Contudo, ficou à minha amiga o jeito, de cada vez que se indigna com os pecados alheios: “Tenho que me calar. Nosso Senhor castiga sempre.” Por isso, eu própria de repente assustada, lhe chamo profeta Elias, e até mesmo evoco as descrições apocalípticas de S. João, com receio do fim próximo. Mas acho que é mais da nossa idade.
Vê-se que anda atemorizada com as consequências do excesso de protestação sobre o excesso de desaires subitamente desabando sobre si. Eu refiro os que desabam sobre mim, mas solidária como sou, lembro-lhe os que desabam por aí aos molhos, e não é por culpa do Nosso Senhor, que felizmente tem as costas largas. É então que cai em si. Mas logo se levanta, fogosa, criticando, para a seguir fazer a contrição chantagista: “Tenho que me calar. Nosso Senhor castiga sempre”.
Geralmente é a causa pública que a faz roer nos políticos. Mas hoje tive o prazer de também eu apresentar um exemplo do meu protesto. Foi no lugar do pão, num centro comercial que até apresenta um pão razoável embora com o rabo de cavalo a varrer as prateleiras sem touca.
Gosto de analisar a farsa do saco de plástico ora enfiado na mão para tirar o pão, ora tirado da mão para os trocos da caixa registadora. Mas hoje, quando cheguei, a menina do rabo de cavalo sem touca estava a atirar para as caixas dos pães, com as duas mãos, os pães que o padeiro tinha acabado de trazer nos cestos. Mãos sujas do trabalho, diria a nossa Hermínia democrata. E sem sacos de plástico a proteger o pão e os futuros comensais. Mais ninguém estava lá e só eu vi. Para o próximo cliente, o saco seria enfiado. Eu saí sem pão.
A ASAE sabe destes casos, mas só foi eficiente no início, e mesmo irracionalmente severa, bem ao nosso modo, por ter a vara na mão. Agora terá recebido outros meios, também ao nosso modo, para se portar com menos profissionalismo. Os rabos de cavalo e os sacos de plástico em aparência irão permanecer, no jogo da sua farsa democrática, para todos os gostos.
Mas já me sinto com complexos de culpa . A minha amiga pegou-me a mania: Deus castiga. Tenho que me calar, que o mal só recai sobre os bons como nós, já o dizia Camões:
Os bons vi sempre passar / no mundo graves tormentos; / e para mais me espantar / os maus vi sempre nadar / em mar de contentamentos...”
É melhor não ligar ao rabo de cavalo bamboleante nem à farsa dos sacos da apanha do pão ou da apanha dos trocos. Vou ser superior às contingências da nossa ASAE.
Não posso passar sem pão.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

“Who? What? Where? When? Why?... How much?”

Versou sobre as Sete Maravilhas Portuguesas escolhidas entre as vinte e oito propostas de Maravilhas Portuguesas, um dos temas da nossa erudita conversa de hoje.
Sim, porque não nos limitamos a dissertar sobre a alta de preços, as doenças, as amigas, a família, as infracções diárias apontadas na comunicação ou por nós vividas, a crise, também exploramos outras temáticas, mais consentâneas com a nossa formação cultural, colhida fresquinha nos jornais Global ou Destack distribuído por jovens ou apanhado nos escaparates do Pingo Doce ou da CGD, que assim compensa as avarias frequentes das suas caixas automáticas, difundindo cultura. Não quero, com isto, minimizar as outras fontes de colheita informativa, sobretudo da minha amiga que já as traz de casa, fresquinhas, mais aliviada do que eu nos preparos domésticos matinais.
E assim, ela frequentemente se indigna. Ora com os rabos de cavalo das moças que vendem pão, a varrer o pão das prateleiras porque a touca não os cobre, e a ASAE não os detecta por muito que balancem fora da touca ou mesmo sem touca, ora com as avarias das tais caixas automáticas, ora com a falta de civismo das pessoas, sobretudo nas bichas das caixas registadoras, tudo é motivo de protesto para a minha amiga. Vê-se, pelo seu jeito irónico, que não lhe falta veia dramática.
Mas também se dá bem com gente feliz sem lágrimas, nos cafés onde vai com outras amigas, a vida não corre mal para todos, mesmo agora, graças a Deus, pois contam graças e estão de bem com o que está , o status, e creio que também com Deus.
Por isso atacou em cheio a respeito do tal programa das maravilhas portuguesas que se provaram ser sete, depois de bem aferidos os pormenores valorativos. Julguei-me até, tanta foi a violência da pergunta, em tempos recuados de docência, ensinando a composição da notícia jornalística aos meus discípulos – o primeiro parágrafo, contendo a síntese do acontecimento, com a inclusão de dados respondendo às interrogações do lead: “Quem?”, “O Quê?”, “Onde?” “Quando?”, “Porquê?” – cinco WW em inglês, o português falhando na homogeneidade das siglas - o corpo da notícia, com os parágrafos sequintes, naturalmente mais desenvolvido em pormenor objectivo.
Tratou-se, pois, do programa da RTP (“Who?”) acerca das Sete Maravilhas Portuguesas no Mundo (“What?” ), obtidas em zonas do Mundo (“Where?”), tais como Índia, Brasil, Marrocos, Cabo Verde, Macau, onde os Portugueses deixaram registo de presença. Para o “When?” teríamos que referir o tempo gasto nas filmagens dos locais e dos encarregados da transmissão, além do espectáculo final no dia 10 de Junho de 2009.
Posso acrescentar o “Which”, enriquecendo desta forma o meu post, com referência aos tais monumentos, mas, utilizando já o corpo da notícia: Basílica do Bom Jesus em Goa, Fortaleza de Diu, Fortaleza de Mazagão em Marrocos, Cidade Velha de Santiago em Cabo Verde, Igreja de S. Paulo em Macau, Convento de S. Francisco de Assis da Penitência em Ouro Preto, Convento de S. Francisco da Ordem Terceira em S. Salvador da Baía.
Mas a nossa referência traduziu-se na pergunta violenta da minha amiga, como se eu fosse responsável pelos gastos, pergunta circunscrita a um “how much?” que faria parte também do desenvolvimento da notícia: - “Olhe lá, quanto acha que deve ter custado um programa destes?” Objectei mansamente que não nos dizia respeito. “ - Claro que diz. Ou julga que a RTP não é entidade estatal?”
Fico sempre entalada quando a minha ignorância é posta em cheque. Objectei patrioticamente que o programa tendia a assinalar a nossa vasta epopeia e, como li na Internet, a “preservar um legado que é de toda a humanidade”, criando uma “mestiçagem cultural” extremamente enriquecedora. Mas sobretudo que nos daria projecção, com massagem ao nosso ego, por consequência, junto daqueles que podiam estar esquecidos da nossa gesta marítima pioneira, e eram muitos. Além de que poderia contribuir para o desenvolvimento turístico, ao menos nesses sítios, afirmação minha de generoso altruísmo.
Não se perturbou com as farroncas patrióticas ou altruísticas: –“Não estamos em época de patrioteirismos (muito desagradável aminha amiga, quando está com os azeites), estamos em época de continência ou de abstinência”, não me lembro bem qual dos termos utilizou.
Para a amansar, eu referi o comportamento mais ou menos comedido e até bem informado dos apresentadores dos monumentos, mas, com efeito, achei menos rigoroso o de Catarina Furtado que, por ser bonita, não tem que demonstrar tantos arrebiques de meiguice e simpatia, num evento de seriedade. Lembrei mesmo as “boquinhas espremidinhas” do nosso Garrett tão visíveis em algumas apresentadoras, até bastante competentes, que não precisariam de tanto esmero nos contorcionismos e risos dengosos.
Para exibir a minha idoneidade cultural e desfazer as convicções da minha amiga sobre a minha ignorância, referi até um programa fabuloso que vi na RAI, sobre o Andrea Bocelli com uma orquestra imponente, em que a apresentadora, jovem bonita, não fazia tanta exibição de fatos nem de gestos, limitando-se a ser simpática e competente.
Nós, Portugueses, como as “Preciosas Ridículas” do Molière, exageramos nos requebros e na sofisticação – aquelas também na linguagem - revelando sempre um provincianismo decididamente pegado à nossa pele.
Mas só a RTP poderá responder à pergunta indignada da minha amiga sobre o custo do vasto programa das sete maravilhas portuguesas: “How much?”
E quanto teremos nós que pagar por ele?

domingo, 14 de junho de 2009

“Merci Professeur”

A nossa mentalidade de povo inseguro que, porque estudou pouco faz da agressão mesquinha o modo mais expressivo de se afirmar, toda ela se manifesta a cada passo, e, porque aí tem maior visibilidade, a própria televisão, como meio veiculador de ensinamento, faz questão em revelar essa faceta lusa, pondo em cheque a ignorância ou o saber alheio, nas perguntas de rua com que apanha os incautos, esquecida a televisão do muito que peca no capítulo linguístico.
É o caso do miniprograma “Bom Português” cujas entrevistas de rua sobre a ortografia das palavras muitas vezes acentuam o nosso desconhecimento, em armadilha pouco simpática e sem interesse real em ensinar, porque acentuando o lado social da nossa pobreza intelectual. E a correcção, com a escassa explicação, pouco adianta, limitando-se a breve reposição do termo correcto, sem ir à raiz da questão.
Para uma explicação mais eficaz, convinha que o programa fosse dirigido por um linguista que historiasse filologicamente os casos e lhes revelasse os porquês ou as diferenças de outros casos parecidos.
É o que faz Bernard Cerquiglini no seu programa diário da TV5, de escassos minutos, frequentes vezes repetido no intervalo das programações. “Merci Professeur” se chama, tem como ponto de partida, geralmente, uma pergunta vinda de qualquer parte do mundo, de pessoa identificada, pergunta geralmente com interesse, a que o linguista responde com profusão de dados, que implicam referências às línguas de origem, etimologia, largo historial e confronto com outros termos similares, conclusões bem urdidas que põem em jogo o sentido de humor e a perspicácia elucidativa do linguista.
Não se trata de amesquinhar ninguém, mas de levar a toda a parte as particularidades da língua francesa, ensinando, construindo, formando.
O nosso génio de mesquinhez que, ao deslumbrar-se com o que aprendeu, deseja propalar aos quatro cantos o que aprendeu, só entendeu fazê-lo, pondo em realce o que outros terão ou não aprendido. E vá de fazer perguntas de rua que nos põem a todos infelizes ou troçando, se formos mesquinhamente vaidosos, ao toparmos com a grande massa inculta que forma a tessitura do nosso povo.
Não há, pois, um desejo formativo a reger tal programa, que implica largos custos, penso, com as câmaras televisivas deslocando-se por entre as multidões.
Quanto mais valia que tais custos fossem dispendidos com um ou dois linguistas que esclareceriam sobre as palavras e as expressões da nossa língua, tão expressiva e rica como outra qualquer, e que mereceria ser ensinada e não vilipendiada, como o faz a televisão nesses arremedos de cultura/incultura trazidos pelo “Bom Português”, como faz, de resto, o “Acordo Ortográfico” mandando o bom Português às malvas.

sábado, 13 de junho de 2009

Quadratura

Gosto da “Quadratura do Círculo”, com os três intervenientes encantando com os discursos do seu saber, da sua experiência, da sua formação moral, da sua educação, em suma.
Gostava mais dantes, quando José Magalhães digladiava os seus adversários com o extremo requinte do seu humor, que era um prazer escutar, ainda que discordássemos da teoria, sempre enredada nos maquiavelismos retóricos de um pensamento extremista que os seus parceiros de equipa se apressavam a desembrulhar, sem se intimidarem com o requinte.
Pacheco Pereira, no seu tom exaltado e sempre bem fundamentado, desenvolvendo os temas de acordo com um vasto conhecimento de letrado e arte de argumentação, pondo em jogo conceitos de filosofia, política, sociologia, e uma seriedade irónica a que não faltou nunca o capricho da sua subjectividade, tantas vezes falível.
Lopo Xavier, excelente crítico, de nobre argumentação, proveniente de um partido que manteve sempre aquela formação moral mais de acordo com o sentido pátrio de todos os que no CDS encontraram o esteio primitivo a que apoiaram as frustrações vividas com a destruição dos ideais primeiros.
Mas José Magalhães voou para outras esferas, onde a sua verve discursiva passará talvez obscurecida. E tenho pena.
Porque os que o substituíram, embora seguros da posição do seu partido vencedor, manifestam apenas essa segurança, em discurso terra-a-terra, aliada ao conhecimento das malhas governativas, que os ajudou – no caso de Jorge Coelho – ajuda – no caso de António Costa - a destruir muitas vezes a firmeza discursiva dos companheiros.
Mas no último programa, do dia 11, António Costa não se mostrou tão seguro, nem tão irónico, sobretudo quando considerou que o Presidente da República deveria ser o elo de ligação no desalinho de uma governação de repente temerosa do inesperado de uma primeira derrota. Pareceu apelativa a mensagem de António Costa, e espantei-me.
Porque, por muito que Sócrates e Cavaco Silva pretendam demonstrar paridade de conceitos e amenidade de pareceres com que vão atamancando a sua governação, no fundo, Sócrates sempre se considerou o vencedor, e nunca o Presidente lhe fez sombra.
Por isso me surpreendeu o tom educadamente apelativo de António Costa ao bom comportamento de Cavaco Silva no actual contexto político, embora José Sócrates mantenha a ameaça da continuidade dos gastos, e das violências sobre os cidadãos que desrespeitou, ressalvada a corte de sempre.
Mas, humana que sou, não tenho a pretensão da infalibilidade judicativa. Talvez me tenha enganado a respeito do tom docemente persuasivo de António Costa.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

“Apareça, faça o Serviço”

Devo contextualizar. Tratou-se da questão da transferência do Ronaldo e do seu vencimento inefável, segundo etimologia grega, indizível, segundo etimologia latina. Comentei que se tratava de uma indignidade dos nossos tempos, fora de qualquer nomenclatura do nosso conhecimento – por isso inefável, por isso indizível - para a descrever condignamente, tamanha era.
Logo a Ilda: “O futebol não tem Deus? Apareça, faça o Serviço!”.
Somos pessoas sensíveis, que sofrem com os males – nossos e alheios – e hoje em dia os alheios formam enxurrada que nos arrasta também, embarcados todos na mesma jangada furada, para um despenhadeiro inenarrável, continuando na senda dos vocábulos que ocultam os que a nossa boa educação, ou a nossa ignorância escatológica, nos impede de utilizarmos para classificar os feitos vergonhosos de uma sociedade podre.
De facto, num mundo subvertido, onde ninguém já pode confiar em ninguém, e sobretudo na classe alta, seja governativa, bancária, jurídica, empresarial, senhora do capital, em suma, que desgraçou todos os que o não são, em conivência sem vergonha nem disfarce, atirando com uns arremessos de côdea para calar protestos - as somas astronómicas que o futebolista Ronaldo veio ganhar, que outros já ganharam antes, parecem ironia, troça, desprezo pelos mortais restantes, dos quais se diz que, além do que já têm pago, ainda vão ter que pagar pelas fraudes bancárias para indemnizar os que a banca lesou.
Eu creio que os futebolistas que assim ganham ainda devem ter alguma vergonha, porque se mostram discretos, manipulados pelas potências capitalistas. Mas, os que lhes pagam assim, usam o desprezo como arma, para lançarem tais propostas insensatas de arranjos clubísticos, uns comprando, outros vendendo, por tais preços, tais pessoas como gado.
Daí que a frase herética da Ilda sobre a inexistência actual de um Deus, que, ao que parece, desapareceu da Terra, seja no futebol, seja no resto das acções humanas, veio como um grito de alma, de alguém muito sensível às desconsiderações.
Mas eu não sei até que ponto é que nos não move uma feroz inveja, por não termos as competências que o Ronaldo tem embora nem desejássemos tanto, que isso até é pecado, como já bem provámos.
E vem à baila a fábula da raposa ferida pelo caçador, cujo sangue as moscas chupavam, chupavam. A raposa queixou-se a Júpiter e logo apareceu o ouriço-cacheiro, zeloso, a oferecer os seus préstimos: “- Eu mato as moscas, eu mato as moscas, vizinha”. “- Já agora, deixe estar as moscas, vizinho, que já estão quase repletas do meu sangue. É preferível do que ter de alimentar novos bichos, tais como o vizinho, que ainda estão no começo...”
Não serve de moral, mas é um conselho ao Ronaldo, assim bafejado pelo Júpiter, em segunda e mais eficaz dose ainda. O seu sangue já deve ter servido a muito bicho. Cuidado com os ouriços-cacheiros que virão a seguir.
Prometemos não participar. A negra inveja faz mais o nosso jeito, já que Deus abandonou de todo o Seu Serviço e não aparece mais.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

“Se não fizermos como os outros ficamos para trás”

Disse-o Felícia ao Felício, implicada nas tramóias de banca da Dona Branca e que à conta disso comprou um bom apartamento. Mas já vinham de família os seus dotes de economista, como familiar de um sujeito que enriquecera a vender sacos de adubo misturado com terra, até que foi descoberta a falcatrua por um daqueles lavradores demasiado minuciosos na questão dos fertilizantes o qual detectou a mixórdia e promoveu a denúncia.
Felícia desabafou com Felício, confiadamente, o seu pensamento economicista, que generalizava a toda a nação a característica da cleptomania. Mas Felício não se ofendeu, nem lhe mostrou o fato coçado, sintoma – embora débil – de que não estava incluído nos “outros”.
No fundo, concordava com Felícia, ouvidas e lidas as notícias diárias de escândalos financeiros, que implicam contas no estrangeiro em nome de familiares, divórcios apressados – e aparentes - para salvar o dinheiro extorquido, pondo-o em nome da cônjuge, cambalachos de vária ordem entre promotores diversos, numa rede cada vez mais cerrada, que inclui o distante Macau, e sem a Justiça por perto a desatar os nós das intrigas fiscais e outras mais.
A minha experiência sobre essa particularidade dos “outros”, que somos “nós todos”, segundo a visão exageradamente pessimista de Felícia, também é antiga, embora de pouca monta, mas que serve para aclarar a questão - desde assaltos à casa confiante, assaltos à bolsa de esticão, “contos do vigário” à porta de casa, referentes a urgências de embarque no combóio devido a doença de familiar, exigindo os 1000$00 que seriam devolvidos dias depois mas nunca foram, o dono da loja que erra adrede nas contas apesar da máquina, a moça da padaria que apanha o portamoedas esquecido no balcão e não o devolve, negando tê-lo encontrado... um romance em muitos episódios sobre a temática dos sem escrúpulos que nos definem, segundo os cépticos como Felícia. Mas são pequenas malandrices, de um mesquinho povo inseguro, por ser criado sem princípios cívicos, acho. Todavia, penso também que estão na base das malandrices mais vastas, senão a Felícia não generalizaria desse modo.
Até os donos das lojas se queixam constantemente de calotes e caloteiros, segundo alguns me contam, gabando-me por ser excepção, o que poderia honrar-me se não achasse natural pagar mensalmente as minhas prestações.
Mas como nunca gostei de me superiorizar, recordo muitas vezes a tal história contada pelo Bieito ao Gil, do que queria ser original e apanhou no toutiço enquanto não se decidiu a beber da mesma água que os outros e confraternizar, cantando e dançando todos à chuva.
Assim, não ficaria para trás. Um dia alinho. Faço questão de dançar à chuva.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

“Ser outra vez Portugal”

Foi o Presidente da República que falou. Gostei do que ele disse, de apelo à recuperação do sentido de nacionalidade, e de retoma dos valores, creio que tradicionais. Senti, assim, que Cavaco Silva foi dos adaptados aos ventos da mudança, como tantos houve, mas sem se identificar com eles. No fundo, foi dos que construiu o seu destino, trabalhando, em prol da pátria, como todos nós, sem se esquecer de si, também como todos nós. Nós os que trabalhamos, ou trabalhámos antes da aposentação.
Jorge Sampaio também apelava, apelava, com a arrogância do grande senhor, mas parece-me que nunca se demarcou dos novos ares democráticos. Mário Soares apela mais agora, que já está feito aquilo para que ele tanto contribuiu que se fizesse. Apela ao bom senso, critica o estado de sítio em que vivemos, depois do adeus às armas. Dantes acentuava mais, até mesmo exaltadamente, os tais parâmetros da liberdade, da democracia, e da glória do seu contributo para isso. Agora ficam-lhe a matar os ares de ponderação pseudo-paternalista, para enganar os ingénuos.
Ramalho Eanes foi também disciplinado, pareceu-nos, inicialmente, o anjo da guarda que sanou o aventureirismo destruidor dos nossos heróis revolucionários. Os que ajudaram a desfazer o tal império, e que agora se não importam – eles ou os seus continuadores - de ir guerrear para sítios donde saiam mais bem remunerados e mais bem publicitados, mesmo que seja uma publicidade enjoativa, das despedidas e das chegadas, com a mulher e os filhos abençoando-os em lágrimas, de alegria, ou tristeza, ou apenas de cupidez.
Camões talvez os não imortalizasse. Mas a verdade é que os heróis que ele imortalizou, também se mostraram surdos e endurecidos, para com ele, sim, mas também na “vil tristeza”, e “austera” e “apagada” que levou Portugal à perda da independência, durante sessenta anos.
Cavaco Silva sabe que vivemos na mesma “vil tristeza” ordenada por quem tanto se empenhou em semeá-la, num ministério intemerato, destruidor do sentido da dignidade do povo, atropelador de todas as normas da decência e do respeito humanos, indiferente às torturas por que passam os que perderam os seus empregos, os que se demitiram por não suportarem o serem calcados na sua dignidade, o encerramento de tantos aparelhos necessários, como hospitais, escolas, um ensino de fantoches, de desconsiderações e indisciplina, e, no meio de tudo isso, a expansão de um subsídio hipócrita e humilhante, criador de subserviência, provavelmente angariador de votos eleitorais e danificador da economia nacional.
Pobre Camões tão repetidamente invocado, e muito justamente, como nosso génio tutelar! Mas eu não sei se Cavaco Silva estava bem ciente do que disse quando desejou que Portugal fosse outra vez Portugal.
Portugal foi-o, no seu pai criador, Afonso Henriques, e os vários reis que a ele conferiram algo do sentido pátrio, pelo seu contributo conquistador ou formador. E os que ambicionaram o seu alargamento e o conseguiram. Foi isso que sentiu Camões, ao escrever a sua epopeia, da forma exaltada e plena do engenho e arte que ele se reconhecia, e é isso que nos tem alimentado o ego nacionalista.
Mas o que nos tornaria grandes, de facto, seriam os valores da seriedade, da racionalidade, da coesão, do amor ao solo natal que nos levasse a cultivar-nos, a embelezar o nosso país com algo mais do que facúndia oca, a impedir a prevaricação, cada um fazendo por atingir objectivos que o dignificassem e que dignificassem o seu país, estudando, trabalhando, valorizando-se e valorizando a pátria. Como fazem todos os países que se definem como entidades válidas – sejam eles conhecidos ou não – mas onde impera o respeito e a valorização intelectual, moral e cívica dos cidadãos.
Sem esses dados, que significa “ser outra vez Portugal”?

terça-feira, 9 de junho de 2009

Teia antiga

Ontem o Dr. Victor Constâncio, em longas horas soturnas contou da sua competência, da sua inocência, da sua ciência, a par da sua ignorância - que justificou - sobre a malandrice alheia que ninguém consegue desmascarar, e da sua decisão de ficar. Como governador do Banco de Portugal, sem falhas na sua supervisão, mau grado todos esses desastres financeiros da Banca que ele não soube detectar, apesar da competência e da grandeza do ordenado que ganha.
Lembro outros casos que ultimamente têm vindo a lume, tantos e tão vergonhosos, que nem se podem contar, nem mesmo o bastonário da Ordem dos Advogados, que se limita a generalizar, sem se comprometer mais do que o necessário. Mas ainda bem que ele arrisca a cabeça, na tentativa de conquistar valores de honestidade, em imitação metafórica de um dos trabalhos de Hércules, pelo sagaz Hercule Poirot, de limpeza das estrebarias de Augias. Tarefa, contudo, demasiado hercúlea, no nosso espaço geográfico e temperamental, com tais valores cada vez mais desaparecidos, embora bem sugestiva da necessidade de uma mudança, na rede de cleptomania e megalomania, como instituições nacionais, que desde longa data particularizam a nossa têmpera.
Já o nosso Sá de Miranda disse em “Carta a el-rei Dom João (o III)”, definindo- nos o carácter:
Onde há homens há cobiça; / cá e lá tudo ela empeça, / se a santa, igual justiça / não corta ou não desempeça / o que a má malícia entiça”.
E mais adiante, em crítica acerba e amargo sarcasmo, aos déspotas que vivem à custa do suor dos miseráveis:
“Que eu vejo nos povoados / muitos dos salteadores, / com nome e rosto de honrados; / vão quentes, andam forrados / de peles de lavradores.”
“E, senhor, não me creiais, / se as não acham mais finas / que as dos lobos cervais, / que arminhos e zebelinas; / custam menos, cobrem mais
.”
Nesse tempo das naus e das caravelas, muitos naufrágios foram resultado da sofreguidão de construir navios, ainda que com madeiras mal secas, que abriam facilmente no mar, além de que carregados em excesso, para maior rendimento na pátria.
No tempo de Salazar, em Moçambique, também se fizeram estradas, como em outras partes da esfera. Mas às primeiras chuvadas, as largas estradas abriam em fundas fendas, autênticas valas, que, segundo me constou, provinham da falha nos materiais específicos para a estrada, desviados para a construção de casas dos encarregados dela. E o governo colaborava, julgo bem, pois as valas permaneciam longos meses, e nessa altura era-se mais discreto na referência aos casos de roubo e outros, em atenção à decência dos costumes.
Quando fui estudar para Coimbra, tive direito a uma bolsa de 500$00, porque se verificou que o meu pai ganhava, honradamente, uns escudos mais do que deveria, para eu merecer os 1000$00 a que as notas obtidas me davam direito. No entanto, em Coimbra, alojei-me na mesma casa de uma colega também de Moçambique que tivera direito à bolsa de 1000$00, para minha surpresa, pois era considerada menina rica, nos meus tempos do liceu. O pai, no Estado, ganhava menos do que o meu, é certo, mas não lhe fora contabilizada a fortuna que construíra em casas, com os desvios, que, como capataz, fizera, nas obras dos Caminhos de Ferro. O Estado fechara os olhos, discretamente pactuantes com a perfídia, com a grande perfídia pelo menos. Pois que as perfidiazinhas de menor monta, quando praticadas para matar a fome, sobretudo, não eram desculpabilizadas. Para correcção dos costumes.
Mas a teia do nosso crime continua no nosso tempo, sempre mais reforçada e cada vez mais apertada nas suas malhas e nos seus nós, alargada às próprias esferas do comando.
E a “santa, a igual justiça” já não pode “desempeçar” nem “cortar” os “enliçamentos” da “má malícia”, ela própria presa nos filamentos dessa teia monstruosa que definitivamente nos envolve, e nos sufoca na vergonha de assim sermos.