quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Não se trata do Hissope

Excerto da Proposição e da Invocação de “O Hissope” :

Eu canto o Bispo, e a espantosa guerra,
Que o Hissope excitou na Igreja de Elvas,
Musa ... Tu me lembra o motivo; tu, as causas,
Por que a tanto furor, a tanta raiva
Chegaram o Prelado e o seu Cabido.

Não, de maneira nenhuma se trata de uma celeuma eclesiástica, como a que está patente neste poema herói-cómico de António Diniz da Cruz e Silva. Nele, o bispo da Sé de Elvas foi grosseiramente desconsiderado pelo deão da mesma Sé, Lara de seu nome, que costumava, nas cerimónias religiosas, apresentar-lhe o Hissope com a consideração devida, e um dia de rebeldia falhou, já imbuído de ideais de democracia igualitária, por desconhecimento de que, mesmo em igualdade, há sempre os mais iguais do que outros. Repostas as hierarquias, com a primeira vitória do Bispo, sobre os seus direitos de “precedência” nos cerimoniais, mais tarde será um sobrinho do deão, continuador do bom Lara, entretanto morto, que ganhará o processo, com o apoio da Coroa.
Não, não se trata das rudes vaidades clericais, mas que havia já nessas alturas oitocentistas querelas importantes, havia-as com certeza. A nossa história está, de resto, semeada de polémicas, umas de foro mais literário, outras de foro mais político e todas com grande arreganho. Basta ler os dois volumes “As Grandes Polémicas Portuguesas” da Editorial Verbo, com Prefácio de Vitorino Nemésio, para a gente se ilustrar um pouco. Mas a Questão “Bom Senso e Bom Gosto” existe em dois volumes, que devíamos rever, nalguns textos principais, como o de Antero, que lhe deu o título, de tanta necessidade hoje.
Não, eu não quero saber do assunto em si. Parece da costumeira “lana caprina” própria da nossa pequenez humana. Tenho pena de que o nosso Presidente, já por duas vezes – não sei se com razão ou sem ela – tenha entrado em querela com o Governo astuto e prepotente. Da primeira vez ganhou e avançou para a segunda, em plenas férias de um verão bronzeante.
Em seu redor, a preocupação dos aflitos, dos que clamam contra a falta de condições últimas das suas vidas. Mas também a despreocupação de alguns, que gozam as férias a que “têm direito”, apesar da crise, que não deixam de comprar os carros e os telemóveis das suas necessidades vitais.
Por isso, o nosso Presidente se entretém levantando pó, com razão ou sem ela, em malabarismos detectivescos inanes, indiferente à paisagem humana do seu País sem rumo, ensimesmado em torno do seu próprio umbigo. “Papagaio real, diz-me quem passa? – É o Rei D. Simão que vai à caça”, já o afirmou Guerra Junqueiro no seu “Finis Patriae”, também da nossa expectativa de hoje.
O Governo responde, pela voz do seu Ministro dos Assuntos Parlamentares, não mais tonitruante por não ser maioritária, mas impregnada de cautelosa malícia – derrubando as pistas presidenciais com superioridade, talvez reconhecendo as verdades do pobre Presidente, sobre o cinismo de que foi rodeado por um Governo maioritário e de outra facção política.
E o pobre Presidente, mantendo a exigência do hissope e da cortesia, assim se entretém, na sua caça aos gambozinos. Desta vez sem o apoio de ninguém

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Comentários a textos ou a outros comentários

O mundo dos comentários aos textos dos blogues sendo menos visível do que os próprios textos, entendi reunir alguns postados no PortugalClub, como processo de dar continuidade a um pensamento contestatário ou de paralelismo ideológico.

I - Assim, o sr. Braamcamp Mancellos comentou da seguinte maneira o meu texto “Não é uma questão de dentes”, que se propusera estranhar a forma como um governo, tão posto em causa ao longo de quatro anos, conseguira mobilizar tanta adesão de uma população absurdamente incoerente:

Berta Brás, os meus cumprimentos. Perante a pelintrice deste país, qualquer esforço é uma pura perda de tempo. Exceptuando uma pequena percentagem que cultiva os verdadeiros valores em principios e em educação,tudo o resto, só nos faz envergonhar por pertencermos a esta raça. Já reparou na TV, no indice mental dos idiotas que percorrem as ruas acompanhando os politicos nesta campanha eleitoral? E os outros, dentro do nosso quotidiano diário? Os nossos Pais, há cinquenta ou há sessenta anos quando saíram desta mixórdia para as Colónias, jamais imaginariam que este povo continuaria na mesma, passado tanto tempo. Apenas evoluiram materialmente. Com mais ou menor formação académica, o desastre mantem-se. Não há qualquer tipo de antídoto para contrariar esta corrente. Faz parte. De uma tacanhez mental e de uma "superioridade" bronca que gela qualquer ser civilizado. Ninguém lhes tira o orgulho de serem "Europeus". Enquanto entrarem diáriamente neste país milhões de euros, o regabofe vai continuar. Aos estúpidos, é fácil criar ilusões. Antigamente só os pobres eram estúpidos, hoje é uma miscelânea.
Portanto, nada a fazer, minha Cara Senhora. Braamcamp Mancellos

A resposta, um pouco longa, explicita melhor os motivos dessa incoerência:

“Sr. Braamcamp Mancellos, às vezes também tenho vontade de pensar tão duramente, mas não quero generalizar assim. Creio que somos um povo que, por qualquer razão que escapa, vivemos sempre em penúria, de que não seremos totalmente responsáveis. Penúria de igualitarismo social, por falha dos que, julgando-se superiores, não estenderam às classes "inferiores" a convicção de que poderiam igualar-se-lhes, estudando. Os judeus burgueses fizeram-no e ultrapassaram os fidalgos em competências, fidalgos que, muitas vezes nada mais faziam que impor as suas marialvices e as suas arrogâncias sem conteúdo também. Mas nunca o povo se libertou da miséria, nunca se esforçou por isso. Faltou-nos uma "Magna Charta" que estabeleceu direitos democráticos a povos talvez mais inteligentes e trabalhadores. Custa olhar para os espectáculos de carnavaladas constantes, entre nós, começando pelo predomínio dado ao futebol, como espectáculo gerador de mesas redondas até. Felizmente, há sempre um escol. Mas não basta para criar outra mentalidade entre o nosso povo. O povo que ficou definido, nos próprios filmes antigos - as mulheres, pelo xaile e lenço, os homens talvez pelo chapéu e o bigode, como marcas distintivas do nosso charme. Hoje, se a mocidade foge um pouco a isso, graças à globalização, que penúria ainda, nas conversas, na deselegância, no vazio das atitudes. Não, nunca chegaremos aos calcanhares dos outros povos. Porque nesses, apesar de ditaduras terríficas - falo dos povos do leste europeu, que os do oeste estão, naturalmente fora das nossas ambições igualitárias - em todo o caso a Educação foi prioridade que teve como consequência os imigrantes de leste se superiorizarem, como estudantes, aqui, como trabalhadores seja em que emprego for - habituados a respeitar valores que nós pontapeamos sem educação.

Desculpe esta tirada, eu gosto do nosso povo porque é aberto e sensível, mas não gosto da sua humildade, e muito menos do seu atrevimento grosseiro em manifestações de rua. Como gostaríamos que uma varinha mágica qualquer chamasse à liça os valores do civismo e da cultura! Não, não vamos a tempo. Como muito bem disse no seu excelente comentário.” Berta Brás


II - O comentário seguinte é ao texto de Alberto Ribeiro Soares "Manuela Ferreira Leite”, que admirei como índice de lealdade e sensibilidade às competências reveladas pela dirigente do Partido Social-Democrata. Terminava assim, em excelente síntese psico-sociológica sobre a nossa idiossincrasia:

“Triste País o nosso!
Cada vez mais entregue ao marketing, ao oportunismo, ao clientelismo, à corrupção e à degradação da moral e dos costumes.
A derrota (apenas nas urnas) de MFL mostra à saciedade que, quem não quiser usar essas armas, não consegue ir longe.
Mas, nesta hora que não pode deixar de ser amarga, MFL continua a ser admirada por muitos milhões de Portugueses!” Alberto Ribeiro Soares

Respondi, num entusiasmo de conivência:

Eu sou uma delas, reconheci-o bastantes vezes, quer por escrito, quer em conversa. Creio que os leaders novos que estão surgindo no PSD, cheios de aparentes bons princípios, a cobrir ambição, a mesma que catapultou Sócrates, como já catapultara, em tempos, Soares, Almeida Santos e mais pandilha, terá os apoiantes específicos, do seu grupo de amiguinhos, que não souberam defender a chefe - salvo honrosas excepções, entre as quais Pacheco Pereira, de extrema nobreza porque igualmente superior, em saber e ética - talvez porque esta lhes está muito acima, quer em discrição, quer em inteligência, quer em elevação moral e amor pátrio. Concordo em absoluto consigo. Mas diz-se que cada povo tem os chefes que merece. E o nosso, embora alertado - há longos anos alertado, na própria pele sofrendo esse alerta - deixa-se manipular por esses discursos balofos de uma esquerda fictícia, que vive de chavões e se está nas tintas para a nação. Como se viu no governo de ruína que tivemos. Oxalá Manuela Ferreira Leite não desista, precisamos de discursos sérios e rigorosos como os dela, oxalá os seus verdadeiros amigos, do seu partido, lhe transmitam a coragem de continuar. Contra as vozes altissonantes dos ambiciosos do poder, em começo de carreira. Figuras como a de Manuela Ferreira Leite não teremos mais, num país cada vez mais degradado.” Berta Brás

Seguiu-se o comentário ao mesmo texto de um Sr. António Freire vincando a sua vinculação a outros ideais políticos, em discurso desdenhoso de pseudo-saber mas repetindo puramente os slogans de fácil memorização postos na praça pública para bacoco ouvir:

“Alberto Ribeiro Soares escreve que Manuela Ferreira Leite (MFL) “ continua a ser admirada por muitos milhões de portugueses”. Creio que exagera. Mas não vale a pena continuar a falar muito da velha senhora que, daqui a 15 dias, logo após as autárquicas, será morta politicamente e passará para a já longa galeria dos ex- presidentes do PSD.. Mais importante é debater se as teses de MFL de “ não se gasta”, “não se deve investir”, “não há dinheiro” devem, ou não, continuar a ser bandeiras do PSD.” António Freire


Não compreendo o comentário anterior. Manuela F. Leite falou em investimentos nas PMEs, e quanto aos grandes projectos, lembrou o estado actual da dívida pública, dos milhões que recebemos sem produzir, o que parece grave a todos os que não percebem como se pode usar toda a vida da teta alheia. Mas neste país, como muitos são os habituados à teta alheia - mendigos que somos - não se lhes dá que os países ricos, que produzem porque trabalham, vão alimentando o nosso parasitismo e inércia e vaidades. Teremos o TGV do nosso disparo económico. Turistas virão que o ajudarão a pagar... se houver condições turísticas para os recebermos. Quanto aos atropelamentos sociais e às falcatruas, também somos um povo de falcatruas, aceitamos do coração os que as institucionalizam. Por isso repudiamos Manuela Ferreira Leite. Por ser honesta e equilibrada. E inteligente. Berta Brás

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

“Eu hoje não estou inspirada”

Não fui eu que o disse, foi a minha amiga, que continuou:
“Nosso Senhor castiga a gente, castiga, castiga...”
E lembrou o António Feio:
- Ele, tão doente! Perguntaram-lhe se não pedia a Deus saúde, “Pedir a Deus? Não! Ele é tão distraído!”
Lembrámos a irmã que tinha a mesma doença e morreu, referimos a excelência dele como actor, falámos no outro grande actor José Pedro Gomes, que também apanhou um susto grande, na coragem de ambos continuando a trabalhar, espantámo-nos com o seu fraco relevo na televisão, em contraste com o forte valor de ambos... Desejámos-lhes saúde e vida, fervorosamente. Mas a minha amiga receia pela sua influência junto de Deus. E eu também não me posso gabar de a ter.
- Ainda dizem graças. É formidável! O José Pedro Gomes começou a trabalhar antes do tempo, ainda em convalescença, a fazer um espectáculo onde era a única figura. São tão amigos, os dois!
E lembrámos um espectáculo que faziam ambos, cada um na sua cadeira, o “non plus ultra” de graça, humor, representação oral e gestual, numa sátira valiosa e sem a brejeirice do costume. Mas nenhuma de nós se lembrou do nome. Pode ser que o reponham na TV Memória. A menos que tenha sido na Sic!
Passámos ao assunto das falhas de memória em ambas, devido ao stress. Mas a minha amiga leu que está a aumentar assustadoramente na população envelhecida. No mundo inteiro. Ressalvámos a memória da minha mãe, a caminho dos 103 anos. Pode ser que também nós... Mas está visto que não.
A propósito da vitória do Sócrates, disse a minha amiga:
-Agora só era preciso era criar emprego, criar riqueza. É só isto que a gente lhes pede...
-Não será pedir demais?
Ignorou a interrupção.
- E outra coisa que a gente lhes pede é que não deixem roubar o resto.
Eu, por mim - com perdão da redundância - irmanei-me com as críticas mixordeiras da indignação do Jardim. Com efeito, após tanta desgraça, ainda votámos no Sócrates! Não é caso de acefalia nacional?
- E então o silêncio do nosso Presidente! Não é mesmo um Zezinho?”
- De facto, está cada vez mais pateta, irra!
Mas não nos alongámos, que nos causa engulhos. E passámos à notícia sobre Berlusconi, a sua saída sobre o Barack Obama e a mulher.
- Parece que lá pela Itália também não há vergonha na cara! Pessoas a baterem palmas, uma sala cheia de gente a rir! Que coisa tão estúpida! Se não é bêbado...
- Eu acho-o porco, é o triunfo dos porcos. Mas como é rico...
-É rico... É preciso saber-se à custa de quem! Então, mas pode-se ter um primeiro ministro louco? Conta-se cada coisa do homem! A mulher dele é que conta!
- Os Italianos estão habituados. Os Neros, dos tempos da Roma antiga, os Bórgias – Lucrécia, César... Os próprios Papas... Mas quanta arte que promoveram!
- Pode ser que sim! Mas ao menos, o nosso Sócrates é mais decente. E também promoveu os magalhães.
Acabámos, pois, apaziguadas, de bem com Deus.
Mas, sobretudo, com Sócrates...

domingo, 27 de setembro de 2009

Pausa

Fizemos figas durante a bica, depois de termos ido votar. Figas, em serviço da República, desejando para ela o melhor, mas comentando o texto lapidar de Salles da Fonseca no “A Bem da Nação” – “Serviço da República” - de que falámos com entusiasmo. Ao salientar o discurso oral ou escrito de Adriano Moreira, não como ambíguo mas de uma riqueza e disciplina que exige releitura, ao comentar um excerto do Professor sobre a actual República despida de Ética, e ostracizando, assim, os “bons”, os “patrícios”, pela incompatibilidade moral de acesso a ela, na sequência da libertinagem generalizada. Texto de um pessimismo sem ilusão, desejando a reposição da Ética, para reposição dos “patrícios”, mas consciente da “inconstitucionalidade” da proposta.
Falta de ética, concordámos, mas de competência e profissionalismo também. Neste caso, a propósito de um caso pouco importante, mas demonstrativo do nosso desleixo. Uma neta minha, em consulta de urgência no Hospital Egas Moniz. Parecia gripe, embora se queixasse dos ouvidos, que o médico, que a viu em um minuto, não observou. Receitou comprimidos vulgares para gripe. Tinha esperado uma hora para ser atendida, pagou os 10 euros exigidos. Foi vista em um minuto, levou a sua receita inútil, de comprimidos vulgares. Marcou consulta para a sua médica, pagou 40 euros, teve direito ao antibiótico.
Outra neta minha fora operada no mesmo hospital. O osso de um braço com um tumor antigo, numa operação que os médicos tinham aconselhado a protelar até estar completo o crescimento. Operada duas vezes, com proposta de uma terceira, visto que o úmero não criava a massa óssea necessária para recuperação. Felizmente, como boa aluna, teve direito ao seu estágio em Paris e lá, pessoas de família a conduziram aos médicos que a curaram, abanando a cabeça, no espanto de um tratamento feito aqui.
O mesmo hospital onde morrera meu pai, que descrevi num livro meu e que transcrevo aqui, relembrando-o.
Muitos mais casos conhecemos, alguns com êxito, certamente, mas outros de estarrecer e indignar e entristecer.
E porque hoje é domingo, dia de eleições, repito a minha homenagem ao meu Pai, um Homem autêntico que foi, numa oração de súplica pela salvação deste País, se o puder fazer nos “Campos Elíseos” onde a sua alma talvez se encontre em bem-aventurança.
Transcrevo o texto contido em “Anuário – Memórias Soltas”, 1999

Requiem por um Homem”

Na véspera da tua morte tinhas apresentado uma disposição feliz que nos encheu
de esperança.
Estavas rodeado pela família – a tua família mais chegada que vivera com aflição
toda a tua doença, e a família distante que viera e admirava em ti o homem probo que
sempre foras.
Contaste uma anedota pouco convencional, para minimizares assim o teu passamento
e nos fazeres rir, e rimos para te mostrarmos a nossa alegria porque continuavas
vivo e aparentemente a melhorar.
Mas quando disseste a canção do festival de então - “Sobe, sobe, balão sobe, vai
dizer àquela estrela que me deixe cá ficar” – eu voltei as costas à cama e solucei
silenciosamente e desamparadamente o irreparável que pressentia.
Não ignoravas a gravidade do teu mal, mas nunca o confessaste, porque sabias
do nosso terror de te perdermos e porque quiseste deixar-nos a imagem de uma aceitação
serena desse inevitável absurdo que preside à vida humana.
Mesmo quando te levámos directamente do Hospital ao Instituto de Oncologia e te
trouxemos para casa para o teu último almoço connosco – almoço de lágrimas disfarçadas
em arremedos de ânimo a que a nossa Mãe ajudou, cantando para nos fazer
sorrir, a canção açoreana
Eu fui de Lisboa a Sintra
A casa da ti’Jacinta
Para fazer uns calções
A pobre da criatura
Esqueceu-se da abertura
Para as minhas precisões” -
tu, cheio de dores e fraquinho, deras-nos a bênção da tua presença delicada de
reserva e pudor na expansão do teu sofrer e do receio do fim.
Todos os dias te íamos ver ao Hospital, e admirávamos a forma como reagias ao
tratamento aí concedido, vibrando contigo na indignação impotente contra a desumanidade
velhaca e lorpa das empregadas da limpeza.
Para elas eras o “avozinho”, o que me causava um asco intolerável contra a despersonalização
grosseira a que a doença te prostrara, dentro de um meio feito, tantas
vezes, de prepotência alvar, ou de uma familiaridade pouco esclarecida.
Como não te levavam a comida à cama, tinhas que te deslocar à sala de jantar,
onde as criadas, pressurosas de se libertar do esfregão, iniciavam a arrumação da
sala, sem atenderem à lentidão com que comias. E no dia em que colocaram as
cadeiras em cima da mesa em que almoçavas, levantaste-te indignado, e saíste sem
comer, provavelmente seguido da hilaridade astuta das matronas.
E nós, revoltadas, nada podíamos contra a carência total de respeito humano,
numa instituição hospitalar manipulada por uma escória ignara que, ante a indiferença
de médicos, enfermeiras e dirigentes, zelava pelo seu prestígio, superlativando o
brilho espelhante dos corredores, em detrimento de um proceder mais atento para
com os seres diminuídos pelo sofrimento ou pela velhice inerte e que dessa instituição
dependiam.
Mas tu, velho e doente, meu pai, não te calaste. E um dia em que a empregada te
fez erguer da cama para maior eficácia e comodidade de limpeza, depois de um protesto
inútil, ergueste, no corredor, um alarido que chamou outros doentes para junto
de ti: eram inadmissíveis tão toscos processos de manejo, inaceitável a total ausência
de atenção e respeito perante a doença.
Um dos doentes, que receava pelo teu coração gasto, acudiu apaziguador, lembrando-
te de que essas operárias não teriam, provavelmente, outra alternativa de
colocação.
Mas a tua resposta lúcida e ainda vibrante pela revolta, de um homem que fora
sempre atencioso e competente no seu trabalho e toda a vida se orientara pelos princípios
da rectidão sem conivência, ressoou pelos corredores do Hospital, até junto
das enfermeiras, cobardemente encolhidas no seu canto, sem ousar interferir, cientes
da justeza da tua indignação:
“- Não têm outra colocação? Que vão para o Alentejo, para a reforma agrária, tratar
dos porcos!...”

sábado, 26 de setembro de 2009

Não é uma questão de dentes

-“As mães mandam os miúdos para a escola sem comer! A gente é que tem que tomar conta deles”.
Foi a minha amiga que me contou: Uma das participantes da roda aonde costuma ir com outra amiga, às vezes à tarde, tomar o café pingado, sentou-se esmorecida, já estafada, em princípio de ano escolar. Mas só a minha amiga escutou: - “Pode ser que mude!”, disse simpaticamente.
As outras têm outros assuntos de conversa, não discutem política, todas de bem na vida e ainda bem, todas de bem com Deus, com Sócrates, de quem nunca falam. A moça professora ainda acrescentou: “E temos que encher páginas de relatórios. Será isto ensinar?”
A minha amiga, prudentemente, remeteu-se ao silêncio, olhando-a com comiseração.
Contou-me hoje. E comentámos que não, não era aquilo ensinar. Parece que a moça dava aulas nos subúrbios, fora do percurso eleitoral, por consequência, fora da dedada socrática. Podia ser que depois...
Eu contei-lhe da entrevista de ontem do Mário Crespo ao professor José Gil, que analisou uma situação de estranheza, como já ambas tínhamos estranhado. Uma figura, um partido, um governo, cheios de mazelas pessoais, sociais, com tanto escândalo ao longo dos quatro anos, tanto vilipêndio humano, e estava à frente nas sondagens para as eleições de amanhã. Qual a varinha mágica de tanto êxito? Será forjado? Pacheco Pereira afirma contundentemente que, ao sofrer na pele as mentiras periodísticas sobre si próprio, percebeu como é fácil forjar mentiras para convencer o povo. E o povo deixa-se enrolar pelas sondagens.
- “O que vale é que o carnaval já acabou. Mas tanto Carnaval!. Para quê? E o Zé Povo gosta que se farta! Mesmo que estejam desempregados! Eu ouvi um homem de uns cinquenta anos a dizer isto: “Ou ganha um, ou ganha outro – a Manuela ou o Socas”. Que as velhinhas digam “Socas”, vá que não vá, não têm dentes, os rr enrolam-se na língua. Agora um de cinquenta anos a dizer “Socas”!”
Ainda rimos com a história e eu contei que tal comentário já o fizera “Cassandra”, com sarcasmo implacável, na peça “La Guerre de Troie n’aura pas lieu”, a respeito dos gritos da multidão: “Viva Vénus! Eles não gritam senão frases sem r, por causa da falta de dentes... Viva a Beleza... Viva Vénus... Viva Helena... Eles pensam proferir gritos. Apenas içam as mastigadelas ao cúmulo da sua potência.”
A minha amiga ficou lisonjeada com o paralelo, mas hoje sentia-se deprimida, sem saber bem em quem votar. Eu lembrei pessoas do CDS que me pareceram gente da velha guarda – o Lucas Pires, o Nogueira de Brito, o Narana Coissoró, o Ribeiro e Castro, o Lobo Xavier, e tantos outros.
- “Olhe, diz-me ela, mas julgo que não a sério, o melhor é a gente não saber ler, senão passa a vida numa irritação completa. Isto da tal professora! Quem está bem instalado não quer saber de nada! Zero! Lamentar a vida dos outros!? Não estão para aí viradas! E gozam que se fartam! Essas vão votar no Sócrates, com o r direitinho, porque não lhes faltam dentes, dos tratamentos protésicos mais careiros.
- Sim, Sócrates representa a mágica Helena para
a maioria influenciável – quer com dentes, votando Sócrates, quer sem eles, votando Socas.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

« La Guerre de Troie n’aura pas lieu”

É uma peça de teatro de Jean Giraudoux de 1935 que põe em cena personagens da Ilíada, em sofisticada intriga que as vai definindo segundo as características que já apontavam, não só na epopeia como na tragédia clássica, acrescidas da visão satírica do escritor Giraudoux, em antevisão de uma guerra mundial que teria lugar poucos anos depois.
Assim, contra a opinião receosa de uma Andrómaca, grávida de Astianax, de que a guerra de Tróia não aconteceria, a bela Cassandra, sua cunhada, por todos encarada cepticamente como profetiza da desgraça, segundo os poderes que lhe dera Apolo, decide afirmar que iria ter lugar, mordaz nas suas observações constantes, de um cinismo esclarecido sobre os homens e o mundo.
Nem Heitor, sensato e futuro pai, amante da sua casta Andrómaca, nem o marialva do Páris, seu irmão, não mais apaixonado por Helena, que ele raptara a Menelau, rei de Esparta, eram a favor de uma guerra, decidindo pois, a conselho do irmão, enviá-la de retorno à Grécia, para evitar o conflito.
Mas Helena a todos seduzira com a sua beleza, os velhos adoravam-na, o próprio Príamo, o rei de Tróia, pai daqueles filhos e de muitos mais, fora seduzido, concordando com a necessidade de uma guerra para criar heróis, contra as súplicas das mulheres...
Assim, entre os belicistas, contar-se-ão Demokos, como agente de provocação, de um lirismo banal e de um idealismo mais perverso e lúbrico do que sincero, defendendo a guerra em nome de abstracções – beleza, coragem, heroísmo – despidas de consistência. Príamo, senil, desejoso de uma vida sem entraves, apaixonado por Helena, embora casado com a velha Hécuba. Tornar-se-á oponente à guerra por submissão. O Geómetra mascara os seus sentimentos pessoais de lubricidade sob a demonstração exaltada do alcance da imagem de Helena, por meio de imagens do domínio da geometria, provocando o cómico de linguagem. A multidão, como personagem colectiva, igual a todas as multidões.
Dentre os pacifistas, contam-se Heitor, prudente, sensato, realista, honesto, responsável, com experiência da guerra e dos seus horrores. Hécuba, ciumenta, patriota, sensata, psicóloga, desdenhosa. Cassandra, irónica, agressiva, sem ilusões. Páris, cedendo por fraqueza, por cobardia, por aborrecimento contra o espírito de família, por indiferença de boémio que por nada se interessa, em realidade. Andrómaca, fraca, receosa, amorosa, defendendo a sua felicidade, o seu direito à estabilidade.
Dentre todos, sobressaindo Helena: astuta, jamais se comprometendo, por indiferença egoísta, também. Feminina, felina, aceita facilmente as homenagens, sem emoção nem interesse por nada nem ninguém, mas com observações de uma profundidade que traduz uma filosofia de vida e uma argúcia cheia de ironia, contrastando com a sua aparente futilidade.
Contra ventos e marés, em ondas sucessivas de hipóteses que apontam para a esperança da paz ou o receio da guerra, outras personagens actuando como mediadores (Ulisses) ou provocadores (Demokos, morto por Heitor, confessando, ao morrer, confirmado por Abnéos, ter sido o grego Oiax que o assassinara). Estava dado o rastilho. Feita a declaração de guerra.
Elle aura lieu” disse Hector, desprendendo-se das mãos de Andrómaca, enquanto “as portas da guerra se abrem lentamente”. “La parole est au poète grec”, concluirá Cassandra.
E, no último canto da Ilíada – XXIV - poderemos ler, na excelente tradução de Frederico Lourenço, a referência a Cassandra, que só ela se apercebera da morte de Heitor:
“... porém Cassandra, semelhante à dourada Afrodite, / subira a Pérgamo e de lá avistou o pai amado / em pé no carro e o arauto, mensageiro da cidade. / Viu Heitor jazente num esquife, puxado pelas mulas. / Emitiu um grito ululante e disse a toda a cidade: // “Vede, Troianos e Troianas! Vinde e vede Heitor, / se alguma vez vos regozijastes ao vê-lo regressar vivo da batalha: / à cidade era ele uma grande felicidade, assim como a todo o povo.”

Esperança na construção, receio da destruição. Estamos todos contidos, na nossa campanha eleitoral, como personagens da comédia de Giraudoux. Também a nossa guerra vai ter lugar, com a morte de Heitor, com a destruição de Tróia.
Não a da ilha fronteira à serra da Arrábida, mas toda a “ocidental praia lusitana”.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

“Está aqui o meu programa”

- Agora há matéria em barda, diz a minha amiga, é por isso que os “Gatos” estão a ter tanta saída. Fartam-se de esgatanhar.
- Não tenho visto.
- Mas tem perdido. Que eles têm muita graça.
- Pois! Mas a TV Memória agora repete “Uma família às direitas” e eu faço por não perder, apetecendo o humor sem as zagunchadas venenosas do nosso humor sombrio.
- Mas o deles é sempre elegante.
- De facto é, e o Ricardo até tem resposta pronta, defende-se bem da mordacidade dos outros, por vezes, nas respostas à sua. Mas tudo isto existe e é triste e é fado. Prefiro o humor americano. Há muita gente entre nós assanhada contra a Ferreira Leite, o Cavaco não sei se a tramou, o que é certo é que o Sócrates vai à frente nas sondagens, e o Paulo Portas, apesar do seu dinamismo confiante, fica sempre no fim, basta-lhe afirmar-se da direita. Que este país cada vez está mais virado à esquerda.
A minha amiga tenta criar ilusão:
- Essa questão das percentagens pode ser uma boa treta, um sofisma manipulador da opinião. Eu não acredito. Cada um mente por seu lado. Pode ser que seja verdade, mas é uma coincidência.
- Quem dera que fosse verdade isso que diz! Mas eu acredito nas sondagens. Com o desejo secreto, é certo, de que sejam falsas, e que o Santo António continue a ajudar-nos, meninos que somos, no seu colo protector.
- O que vale é que a semana está a acabar. Estas passeatas, estes sacrifícios... já não devia ser assim! Basta haver uma televisão. Explicar bem o que querem fazer e chega. “Está aqui o meu programa”. Isto era o bastante. Eles esgotam-se, trovejam, injuriam-se, no pó das estradas. E ficamos na mesma. Só que, mais empobrecidos, por causa dos gastos. A televisão bastava.
- Não, nós queremos testar resistências, adoramos o espectáculo, não dispensamos a garraiada, nem que a vaca tussa.
- E agora mais a greve da Tap! Já viu o oportunismo, a dois dias das eleições?
- É verdade! Mais desemprego, talvez, em perspectiva. Mas quem se importa com a nação?
- Sim, ninguém se importa, nem políticos, nem sindicatos, nem pilotos aviadores que até têm vencimentos e regalias q.b....
- E as greves, é geralmente a esquerda que as fomenta. Querem lá saber do país? Mas a esquerda vai ganhar.
- Pois! A esquerda é que defende os interesses dos trabalhadores. Pelo menos é o que ela diz.
- Trouxe-lhe um texto que li hoje, no blog “A bem da Nação” . É de Luís Soares de Oliveira, muito expressivo sobre esse conflito social entre o capital e o trabalho, concluindo que não era necessário acabar com uma das classes, da proposta de Karl Marx.
Vou transcrever este excerto:
“Já nos anos 90, quando estudei o fenómeno do desenvolvimento económico sul-coreano, constatei que os preconizadores do modelo tiveram o cuidado de provocar artificialmente uma luta de classes. Foi criada uma classe capitalista, arrebanhando os especuladores que tinham conseguido fazer fortuna durante a guerra de 1950. Exigiu-se-lhes que criassem as indústrias constantes do programa oficial. Se o não fizessem, os seus bens ser-lhes-iam confiscados ao abrigo de uma lei do enriquecimento ilícito então promulgada. As greves e outros processos de luta pacíficos – ainda que por vezes violentos – foram consentidos. Tais actividades não podiam, contudo, colidir ou reduzir o horário laboral (48 horas por semana). E assim, em 30 anos, a Coreia do Sul passou de um dos países mais pobres do mundo para um dos dez países com mais elevado rendimento per capita.”
- É caso para dizer como o Fernando Pessa “E esta hein!” E também para levarmos os nossos donos do capital fraudulento a utilizá-lo nas indústrias nacionais.
- Pois! Mas quem é que vai nisso? Aqui são protegidos, os donos dos capitais ilícitos. E mesmo a esquerda, se viesse a governar, entrava nos mesmos conluios que a direita. Aqui quem manda é o capital, tenha a origem que tiver. E, bons e sensíveis como somos, também não estou a ver o governo a impor regras tão duras ao povo trabalhador. Isso está bem para os Coreanos, e os Chineses, etc, etc, habituados a trabalhar muito e a ganhar pouco. E vê-se bem que é para bem da nação. Creio que têm cultura para isso. Nós não sabemos o que significa essa palavra – Nação.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Como se educa a praça pública

Ou a opinião pública, que vem a dar no mesmo.
É Mr. Whitestone de “Uma Família Inglesa” que, a conselho da sua filha Jenny, para poder futuramente casar o seu filho Carlos com Cecília, a jovem pobre, filha de Manuel Quintino, dedicado guarda-livros da casa comercial do inglês, elevando-lhe o estatuto por via das conveniências e dos escrúpulos de superioridade, decide promovê-lo à condição de sócio. Para isso, irá contar na praça portuense, até com o exagero próprio destes factos, os feitos comerciais de Manuel Quintino, para preparar a opinião pública e impedir a sua estranheza quando se efectuasse o evento. E resultou, que inúmeros comerciantes se dirigiram ao guarda-livros, a felicitá-lo pelos casos de sucesso da sua actividade comercial, deixando-o meio encabulado, que era pessoa pouco afeita às mascaradas da adulação.
Já era assim, pois, nos tempos de Júlio Dinis, cujos romances de cabeceira, encantadores, nos embalavam o sono nos tempos da adolescência e continuaram a embalar, até mesmo agora, quando as frustrações e pesadelos da vida nos aconselham a desviar o sono nocturno das leituras mais pesadas, para adormecermos tranquilamente com os enredos e descrições da ternura e graça do homem que “viveu de leve, escreveu de leve, morreu de leve” segundo síntese do requiem queirosiano, ao exprobar-lhe a morte precoce, ironizando-lhe talvez a obra, por ser delicada, sem o traço grotesco da caricatura, mas assaz real e actual na visão do mundo e da psicologia humana.
E assim, descontando os efeitos tentaculares dos actuais media, já naquela altura o diz-que-diz, o levantar suspeitas, o apontar indícios, provocavam imediato zum-zum, embora sem o estardalhaço dos novos tempos.
Porque vivemos disso, na praça pública de agora, vivemos de visibilidade, do alarido, do abocanhamento, da suspeição e da injúria, de destruirmos ou exaltarmos, conforme o clube ou o partido a que pertencemos, os actores da nossa predilecção. E os media são responsáveis, embora não unicamente.
Porque temos, também, as marchas, quer das greves, quer para as promoções, e os discursos dos chefes e dos partidários dos chefes, e, sem grande educação, por vezes, acusamos os opositores de vários desmandos. E de velhice.
Tenho ouvido sobre Manuela Ferreira Leite que está velha, boa para a reforma. Provavelmente dos mesmos que, a darem-lhes a oportunidade, não se eximirão a eleger Mário Soares para um novo mandato presidencial, que, vaidoso como é, não deixará de lhe apetecer, apesar da idade e da monotonia do discurso e dos cargos sucessivos do seu pobre sucesso vivido.
Ninguém quer escutar argumentos de pessoas capazes, que deixam prever boa preparação técnica, boa formação moral e se afirmam amantes da sua nação. E esta nada tem de velha, mas de inteligente e ponderada. Preferem escutar as vozes altissonantes do ministro que se socorre da obra que fez como tal, mesmo que, na maioria das vezes, tenha sido uma obra adiada ou infeliz. Não importa os destroços das vidas sem trabalho, ou o espezinhamento das vidas a quem foi retirada a dignidade de bem servirem, com leis arbitrárias e de injustiça flagrante, não importa o défice contínuo, a hipoteca acelerada, o futuro comprometido, o esbanjamento palavroso, mentiroso e vazio, a ruína económica, cultural e moral a que condenamos as gerações vindouras.
Afinal sempre fomos um país - uma praça - arrumado. Na atrofia. Devemos continuar.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Ninguém ninguém

Estamos em vias das conclusões – dos finalmentes, em designação novelesca do perfeito de Sicupira, Odorico Paraguaçu, na interpretação de Paulo Gracindo, na telenovela “O bem Amado” - os partidos cada vez mais assanhados, Cavaco Silva acusado de irregularides telefónicas absurdas para quem acreditou na sua pose de honestidade e que se revelou dúbio como os mais, Louçã aproveitando-se disso para matar o PSD e Manuela Ferreira Leite, satisfeito porque a campanha destes “se esvaziou como um balão furado”; Sócrates, confessando-se amigo sério de Cavaco, dizendo não acreditar nas aleivosias contra ele mas atraiçoando-o de seguida nos Açores, a respeito da questão do Estatuto Constitucional que Cavaco ganhou, lembrando, ardilosamente, que fora contra; sempre oportunista, sempre hipócrita, recorrendo a todos os truques para angariar votos e enrolar os que o escutam e são cada vez mais, em discurso directo ao educador Obama, chamando a atenção para a liderança americana de que ele se pretende alma gémea; convidando, para a sua campanha triunfal, os seus apoiantes de peso – Soares o fundador, Manuel Alegre o poeta.
Quanto a Jerónimo de Sousa, o mesmo de sempre, dizendo verdades sem arriscar a cabeça; Paulo Portas dizendo também as suas, por vezes pouco discretamente, desagradando na fanfarronice, em vez de colaborar com o PSD na salvação da Pátria.
Deste modo, Mário Soares veio a terreiro. Vem a terreiro sempre que é requisitado. O velho guerreiro da palavra fácil feita de chavões libertários, que há uns anos desceu em ombros na estação, com o seu V da vitória e o punho cerrado para abater opositores e tomar conta do país que conquistara para si, embora longe do terreiro pátrio. Por lá onde andara, fundara o Partido Socialista, tratara dos conluios com os terroristas da época para libertar as colónias, arrojado na forma espectacular e impiedosa com que provocara as hecatombes dos que fizera expulsar e tiveram que zarpar para os sítios onde se pudessem acolher.
Não lhe chegam os cargos que teve, os que tem que não dão tanto nas vistas, ele quer dar sempre nas vistas. E vem a terreiro, uma vez mais. E quem o ouvir, mesmo que não acredite nele e precise de sais de frutos a seguir, beijoca-o, como em tempos, com a familiaridade galhofeira e inconsciente do que tal figura representou para o povo português e as mazelas da sua história.
Reconheceu-o Nicole Fontaine, candidata, como ele em tempos à presidência do Conselho Europeu e vencedora, reconhecendo-lhe a deficiente preparação intelectual, vingando-se ele apodando-a de “dona de casa”, o que traduz bem a mediocridade e deselegância do seu pensamento, juntamente com a de seu filho João Soares que se refere a Manuela Ferreira Leite com o apodo de “a outra senhora” - bem na esteira de Sócrates - que da Pátria, juntamente com seu pai, e tantos mais da mesma linha utilitária só entendem o lucro que dela pode advir.
A essa “outra Senhora” chamou Soares “fanática” ou “irresponsável” por, segundo afirmou, confundir “crise social” com “crise económica”. Já Sócrates a apelidara de “anti-democrática”, no seu “conservadorismo retrógrado”, de “visão radical e maniqueísta” a propósito de um TGV ruinoso, embora não para Sócrates, indiferente à ruína, defensor do progresso, num país cada vez mais endividado.
A “outra Senhora” ao responder que o discurso de Soares “não merece o mínimo dos comentários” coloca-se na posição educada e elegante da pessoa que desdenha responder a quem nunca lhe mereceu mais do que desprezo.
Mas não ganha votos com isso. Porque, de longa data, somos um povo de bulha, de agressão palavrosa e não vamos mudar tão radicalmente.
Levemos o caso numa boa. Com Marco Paulo cantemos “Ninguém, ninguém poderá mudar o mundo”. E sentir-nos-emos mais confortados.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

“Olha que eu não te vou lá tapar”

Falava com a minha filha. Da Mafalda, a minha neta de quatro anos. Concordámos que as suas respostas a cada passo nos deixam surpreendidos. E contou-me nova história.
É certo que tenho vivido mergulhada em êxtase de avó. Como mãe, descurei um tanto o acompanhamento dos filhos, a profissão pouco tempo me deixando para lhes contar as histórias do seu adormecer, cuidando que, tal como sucedera comigo, cada um era livre – dentro das regras que já trouxera de casa, e que contribuem para a formação do carácter - fechando um pouco os olhos, todavia, às fugas, acima de tudo desejando que fossem felizes na liberdade, que não descurava, contudo, o desejo de que se saíssem bem como estudantes. Mas a filha foi, de facto, a mais cumpridora, não precisando tanto de que lhe vigiasse os cadernos, ela própria sabendo das suas dúvidas que, assim que desfeitas, a levavam a singrar no seu próprio caminho, com o entusiasmo da boa estudante que sempre foi. E hoje corrige-me os erros das minhas dúvidas ortográficas, que a idade e os acordos (com o fechado) ortográficos vão semeando no meu espírito. Todavia, estou convencida de que é necessário mais autoridade, conheço filhos de pais agricultores e merceeiros, cujos filhos, bons estudantes, ajudam os pais na lavoura, em tempo de férias. A liberdade, segundo os princípios da Constituição dos Direitos Humanos, ao maximizar a fragilidade infantil sob o domínio paterno ou docente, e os seus direitos à própria personalidade – tudo o que seja repressão significativo de autoritarismo e crueldade - instituiu o excesso de mimo como prática, e as crianças, sob o apoio da lei, tornam-se muitas vezes déspotas na escola como na família.
Ciente das dificuldades do viver futuro das crianças mais novas, aos netos mais novinhos – as mais velhinhas já no seu percurso de adultas, tendo deixado em mim igualmente as suas marcas de encanto - vou assistindo e vibrando com o seu trajecto, o Bruno, na doçura da sua sensibilidade e marotice, a Beatriz, a mais novinha, espantando-me com a sua ciência sobre as marcas dos carros e outras saídas vocabulares que vai buscar creio que às histórias do Panda, aos CDs que todos eles gostam de ver, às lições dos Infantários, e, naturalmente, ao acompanhamento familiar.
Todavia, a Mafalda, de longa data a todos tem espantado na articulação rápida do pensamento, de uma firmeza já notória nas fotos da sua primeira infância.
Eis a história transmitida pela tia:
A tia e a mãe jogavam a um jogo de computador em casa daquela, o tio deu-lhe um beliscão por brincadeira, a que reagiu, não educada ainda no politicamente correcto, em imediata queixa à mãe. O pai pô-la em contacto telefónico com a avó, dizendo-me ela que estava aborrecidinha, estado de espírito que me levou a tentar aplanar, falando-lhe do Bruno e da Beatriz não presentes para brincarem. Ao que parece, o tio ia sair, quis saber para onde, foi-lhe explicado que ia dar de comer aos “Sem Abrigo”, na sua ronda nocturna, e concluindo, talvez na brincadeira com ela, que iria lá dormir, depois de lhe ter explicado quem eram os senhores que ia visitar.
E a Mafalda, muito séria e muito rápida, contestou, pesarosa: “Olha que não te vou lá tapar”.
Uma vez mais foi objecto de admiração a sua saída.
Sem o saber, a Mafalda estava a programar um caminho futuro, para uma sociedade já não dividida entre a miséria e o voluntariado, a actual miséria dos Sem Abrigo que as iniciativas de Solidariedade para a Reinserção Social, através dos seus Voluntários, tentam chamar à razão e trazer para um viver mais digno, intenção poucas vezes coroada de êxito, pois não raro são repelidos com violência, num clima a que a droga, nos nossos tempos, não é alheia.
Vem de longa data, entre nós, a atenção pelos pobrezinhos, a cada passo até recordados literariamente. Somos esmoleres por natureza, confrange a miséria, e com a nossa esmola julgamos contribuir para libertar um pouco da fome os esfomeados. E os Voluntários da Solidariedade Social são dignos de todo o apreço, sacrificando o seu bem-estar, por vezes sob os frios do inverno, para levar conforto e tentar salvar os sem agasalho.
Mas a luta é entre os que os querem salvar e os que preferem continuar, no embrutecimento de uma liberdade que os desresponsabiliza, sacrificando indiferentemente os outros, achando-se em seu pleno direito para tal, num egoísmo sem tréguas.
Quando a Mafalda diz ao tio: - “Olha que não te vou lá tapar” é todo um programa rígido de um futuro possível, se mais Mafaldas houvesse que continuassem o seu discurso para uma maior dignidade humana: - “Tens direito a um lar, mas deves trabalhar e não pedir, para satisfazeres as necessidades da tua condição humana. O teu agasalho deves ser tu a obtê-lo”.
E o tio deveria meditar nisso, não se sacrificar tanto – no dia seguinte ele vai trabalhar cedo - em prol daqueles que não querem nada, que se deixaram conduzir ao degrau ínfimo da sua condição humana.
Era necessário que os governos propusessem medidas eficazes para combater a mendicidade e a indignidade dos que preferem pedir a trabalhar. Creio que noutros países mais desenvolvidos do que o nosso, se tomam medidas a favor desses. O mal é que, no nosso, as medidas não são suficientes sequer para a maior parte dos que trabalham.
Depende também de hábitos cívicos e educacionais. Mas como diria o falso “Mendigo” do “Deus lhe pague”, a esmola é uma prática dos abastados para angariarem a ajuda celeste, pelo reconhecimento do bem que fizeram na Terra.
Eu sou das que a dou. Mas com raiva, não por bondade nem por interesse nos favores divinos. Por saber que nada obtenho com isso em termos de recuperação social. E que muitas vezes o mendigo ganha mais mendigando do que trabalhando decentemente.
Gostaria de dizer como a Mafalda: - "Olha que não te vou lá tapar". Mas limito-me a esperar que esse dia chegará, com mais critério.
Hoje ainda vivemos sob a meiga magia do "Menino do Bairro Negro" do nosso Zeca Afonso, "menino" a quem só soubemos transmitir os ideais não de responsabilidade mas de liberdade. E de insolência.

domingo, 20 de setembro de 2009

Samaritano

Ricardo de Araújo Pereira fez, na sua entrevista ao nosso Ministro Plenipotenciário, presentemente em solavancos e almoços de estrada, mais os beijinhos para o seu ganho eleitoral, uma pergunta sobre o caso de vir a perder o emprego em S. Bento. Não quis significar, por supuesto, que aquele teria que concorrer ao subsídio de desemprego, e o nosso Primeiro Ministro só pôde responder que não era emprego.
Mas corou, viu-se bem. Até me lembrei com ternura dos versos da Samaritana cantados em primeira mão por Edmundo Bettencourt, e comparei o nosso Sócrates ao bom Jesus que também corou depois de beijar a Samaritana que lhe deu de beber junto à fonte de Jacob.
Sócrates respondeu ao Ricardo não se tratar de emprego, querendo subentender que se tratava de uma espinhosa missão. E corou por ver quanta luz irradiara dessa missão em prol da nossa nação. Missão samaritana que é com ela que ingerimos o alimento e a bebida das nossas importações e até nem nos ficamos só pela água. Eu, pelo menos, só me contento com a coca-cola da minha perdição, digo-o sem corar, também porque já passei a idade do rubor.
Mas Sócrates não passou, enrubesce sempre que se exalta, na sua missão de bom Jesus humano, susceptível de se apaixonar, e simultaneamente de samaritano que dá de beber a quem tem sede, a começar por si próprio, e não só recorrendo à fonte de Jacob, porque muitas são as fontes dos seus recursos hidráulicos, cada vez mais renovados com as energias renováveis criadas por essa missão da sua paixão.
Por isso, agradeçamos a Sócrates, missionário empenhado, de humana fraqueza como Jesus, pois se apaixona e cora de paixão ao ver quanta luz irradia da sua missão, de humana solidariedade também, pois dá de beber como bom samaritano, que empalidecerá se perder a missão – no que eu não acredito, ao escutar os cérebros estruturados dos que lhe bebem as palavras e a água das suas sedes.
Agradeçamos a Sócrates que concentra em si, alegoricamente, as duas personagens do fado de Bettencourt, numa espécie de dois em um das nossas publicidades, e ouçamos o lindo fado de Coimbra, na sua pureza de desdobramento em duas personagens distintas segundo a lenda encantada:
Dos amores do Redentor não reza a história sagrada
Mas diz uma lenda encantada que o bom Jesus sofreu de amor.
Sofreu consigo e calou sua paixão divinal
Assim como qualquer mortal um dia de amor palpitou.

Samaritana, plebeia de Sicar,
Alguém espreitando te viu Jesus beijar
De tarde quando foste encontrá-lo só
Morto de sede junto à fonte de Jacob.

E tu, risonha, acolheste o beijo que te encantou.
Serena, empalideceste, e Jesus Cristo corou.
Corou ao ver quanta luz irradiava da tua fronte
Quando disseste –“Ó meu Jesus,
Que bem que eu fiz, Senhor, em vir à fonte.

Samaritana....

Porque hoje é domingo...

sábado, 19 de setembro de 2009

Retrocesso

O papá já é crescido e ele é que sabe o que quer para mim e o que não quer”.
Uma frase com quatro proposições, da minha neta de quatro anos de quem já falei, e que revela uma correcta construção discursiva, acompanhando um pensamento que o próprio Confúcio não desdenharia.
É claro que lhe não pertence – ou a ouviu na escola ou em casa - mas, para além da rapidez com que foi perfeitamente articulada, admirei a sua actualidade em termos políticos, não segundo um ideal democrático, note-se, mas segundo uma visão de mando e de comando que em todos os partidos se tem verificado – o quero, posso e mando que a todos convém, sob a capa de um objectivo pelo bem comum: os papás são crescidos, eles sabem o que convém aos “filhotes”, segundo terminologia hipocorística dos afectos familiares dos nossos tempos.
E o bem comum, por todos destacado com arreganho, leva a que todos se batam entre si, para defenderem as suas propostas como superiores às dos outros em importância e alcance, baralhando os dados, menos preocupados, talvez, com a comunidade, do que com a conquista do seu lugar no poder.
Eu acredito, todavia, na preocupação de alguns pelo próprio país, que me parece escorregar miseravelmente para um beco sem saída, no atropelar de direitos dos cidadãos a que temos sido submetidos neste primeiro mandato socialista, corolário de muitos outros mandatos da mesma igualha ideológica, mas, apesar de tudo, de maior respeito humano do que este, que se tem divertido a vilipendiar uns e a enaltecer outros a quem se permite o acumular de fundos tantas vezes resultantes de falcatruas de vária ordem, institucionalizada a fraude, a corrupção, a trapaça e a desvergonha.
Mas a maioria dos comentadores políticos não ajudam ao enveredar por vias mais honestas, divertindo-se a desmistificar as intenções dos que parecem mais credíveis, mas que são demasiado rígidos para a nossa massa humana, formada por um povo cada vez mais resvalando num caminho de degradação, pelo “facilitismo” cultural e ético a que tem sido submetido, numa impreparação e falha de princípios de que nunca mais recuperaremos.
Esses, os que parecem sérios e bem formados, são rotulados de retrógrados, para gáudio dos espertos e lição dos medíocres, instalados na aparência de um viver suficientemente confortável pelas esmolas que vão recebendo, ignorando os que perderam o seu trabalho e o seu direito a uma vida decente.
As sondagens indiciam essa satisfação, no nosso país de pedintes, a esmola tudo cobre com o seu manto de rosas milagreiras. Indiferentes aos males, indiferentes a uma nação de que fazem parte no degrau ínfimo da sua escala, não pensam em recuperação inteligente, em esforço comum, como outros países mais cultos duma Europa a que não pertencemos, nem com os TGV da nossa hipoteca cada vez mais absurda.
O papá é que sabe o que quer para nós.”

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Também temos o direito

Desta vez estivemos ambas numa consonância perfeita de grito e de parecer, a respeito do novo escândalo das escutas telefónicas a que a Presidência da República estava a ser sujeita, ao que se disse, e de que hoje se passou a dizer ter tal notícia partido da própria Presidência da República, para desfazer no governo socialista que está em vias de ser reeleito, provavelmente contra a vontade do nosso Presidente.
Ambas, pois, soltámos o nosso grito - não do Ipiranga, que esse já há muito nos libertou do vasto território brasileiro, graças ao cariz anti-patriótico do nosso primeiro rei liberal D. Pedro IV - mas do Watergate, muito mais importante para nós como analogia, pelo estatuto, pois foi ele que levou à deposição de Richard Nixon, por pecadilho semelhante ao que os nossos políticos, que tanto incriminavam Salazar por se manter indefinidamente na cadeira do poder, têm manifestado ao longo destes anos todos – aliás, de democracia transparente, segundo Louçã, no seu tom de voz untuosamente eclesiástico, difundindo bons sentimentos enquanto se prepara afanosamente para a mesma cadeira de ocupação por tempo indefinido, condenando honradamente esses baixos truques de conspiração política.
Revimos o Watergate e lamentámos o pobre do Nixon, acusado de idênticas escutas telefónicas e mesmo de assalto a Watergate, para colher informações dos Democratas da Oposição de então, cuja sede era lá e congratulámo-nos por, ínfimos como somos, termos um Watergate à disposição, para nos dar projecção.
Assim será com o nosso Presidente, mas, às avessas, será ele o assaltado, só para se vitimizar e tramar o pobre do Sócrates que já nem sabe para onde se virar com tanta acusação sobre si pendente, embora isso o lisonjeie, o que, aliás, entre nós, é caso frequente.
Bem que gostaríamos de poder ajudar na decifração do crime, com a mesma eficácia que aqueles detectives que ficaram famosos nos policiais a que em tempos me dediquei, e às vezes ainda dedico, e de cujo final antecipava a leitura na busca do criminoso, para melhor ir entendendo os pormenores do suspense apresentados pela Agatha Christie, pelo Sir Conan Doyle, pelo Georges Simenon, únicos do meu enternecimento cultural, além do Tintin, mas nenhuma de nós se pode orgulhar de igual capacidade na detecção das pistas como tinham – e continuam tendo - Poirot, miss Marple, Tuppence, Sherlock Holmes, Maigret e o próprio Tintin.
A minha amiga, todavia, tem um espírito de observação muito virado para o exterior, sendo o meu mais de dentro, mas falta-nos tempo para o despique com os mestres do crime.
E, tal como o Zaratustra falava, assim ela falou:
- Não sei se é verdade, o homem deve negar (nunca conseguirei habituar-me a esta falta de respeito tão democrática) e depois o Cavaco só deve falar nisso depois das eleições. Também não sei se é grave ou não, mas os segredos acabaram. Os sistemas modernos tramaram a malta toda. Hoje é tudo altamente devassado. Tudo isto está sujeito à devassa, o que será de nós?
- A culpa é do satélite,
informo eu, pressurosa de meter a minha colherada.
- Afinal, o que é que contêm as escutas? Espero que contem à gente. Agora, segredo de Justiça não há.
- Ai, essa não. Mesmo que houvesse crime – ainda que não compensasse – tudo ficaria no segredo da Justiça.
E aqui está a razão por que nunca chegaremos às pistas. Por causa do segredo da Justiça, sempre eficaz entre nós.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Tanto barulho para nada

Hoje a conversa ao café foi esmorecida. A minha amiga sentia-se mesmo num estado de espírito que eruditamente tentei combater, comparando-a ao insociável e atrabiliário Alceste, enfiada eu no meu papel de amigo Filinto, de aceitação fleumática do mundo impuro, nas suas vaidades e convencionalismos do século XVII. Mas, como sempre, a minha amiga desdenhou da citação extraída do tal "Misantropo" da negra melancolia na sua visão do mundo.
E disse:
- Eu estou farta de ouvir os políticos. Mas isto é assim, toda a gente se farta, não sou só eu.
Não, enganei-me, o Alceste não seria condescendente, no seu discurso burilado em verso atacando a nobreza – os políticos da época. Continuou:
- Muitas palavras, muita crítica, muitos ataques, muitos beijos e abraços, muitas promessas, muitas acusações, muito ruído... Já enjoa. O que vale é que acaba. Mas ainda temos mais de uma semana. Ai, não sei, acho que o país não devia ter tantos partidos, não se devia falar tanto, não se devia esmiuçar tanto... Eu acho que se deviam sentar todos a uma mesa e ver como salvar a situação. Mas não, isto é utopia, ninguém faz isto.
A minha intervenção como Filinto conciliador, dono de uma classe e elegância próprias do “honnête homme” daqueles tempos do Molière, revelava-se inútil, dados os excursos em monólogo da minha amiga, na sua análise sob vários ângulos.
- Agora nós, não sei como a gente vai resolver este problema. Às tantas parece tudo patético e pateta. Cada um diz mal do outro e bem de si. E nós não precisamos de dizer mal deles, estamos dispensados, eles encarregam-se de fazer o trabalho.
- Pois...
- E ainda por cima os canais televisivos dão toda a cobertura, e os comentaristas, e os críticos irónicos, e os Gatos... Tanto barulho para nada. É uma epidemia.
- Pois é, mas...
- Não sei se os outros países... desde manhã até à noite... de noite até de manhã, não sei como aguentam... E andam... Mudam de terra num instante, falam em arruada... Já ouviu esta palavra?
Nunca ouvira, mas achei que devia ser porque se passeavam pelas ruas.
- É estafante! “Dá-me uma raiva!”
E eu a querer identificar-nos com o insociável Alceste e o conciliador Filinto! Não! Desçamos à terra, à nossa terra, sejamos modestas! Prestemos homenagem, antes, ao nosso Raul Solnado, que tão bem nos conhecia.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Momentos de humor, momentos de magia

Preparei-me para viver, nervosa, o nervosismo de Ferreira Leite, o medo de que se saisse mal, com as câmaras e o público assestados sobre a sua figura, que muitos repudiam, não sei se pela sua falha em mocidade e decadência em beleza, se por se não identificarem com a sua doutrina, se por lhe não reconhecerem doutrina nenhuma, como alguns afirmam, que nem a que subjaz aos seus propósitos construtivos da Pátria serve para lhes assegurar que tal doutrina existe.
Sentei-me no sofá e aguardei a figura, para mim bonita, elegante, de uma serenidade discreta, inteligente, mas menos rápida do que outros com mais poder de encaixe e viveza de prestação brincalhona, própria da conversa de salão, imprescindível para se singrar hoje em dia no mare magnum do elitismo social.
Manuela Ferreira Leite chegou, figura tímida, apresentada simpaticamente por Ricardo Araújo Pereira. Tratava-se de uma entrevista de dez minutos, no programa “Gato Fedorento esmiuça os sufrágios”.
As perguntas contiveram o costumado humor simultaneamente perverso e educado a que Ricardo Araújo nos habituou. Manuela Ferreira Leite, sempre sorridente, a todas respondeu com extraordinária argúcia, devolvendo as paradas sorridente, num programa de perfeito humor de parte a parte.
A primeira, sobre a próxima cadeira em S. Bento com Portas ao colo, mereceu o comentário agradecido de que tal pergunta tinha subjacente a ideia de que iria ganhar as eleições. Por isso se congratulava com a ideia, dando os parabéns a Ricardo pela sua eficiência como jornalista, observação que este engoliu, certamente que em seco, negando tal cargo.
À pergunta sobre o desconto no IRS, em caso de vir a ser ministra, entrou no jogo condenando risonhamente o facto de lhe estar a pedir um favorzinho, informando que, se baixasse os impostos – que não iria aumentar – seria para todos e não só para as pessoas importantes como ele, Ricardo.
Quanto ao problema da asfixia, informou existir grande diferença entre os madeirenses e os continentais: aqueles tinham há trinta anos um governo de sucessivas maiorias, nós tivemos uma por engano.
Sobre a questão de só prometer o que pudesse cumprir, mais uma vez demonstrou inteligência, ao aproveitar para mais um irónico auto-elogio, sobre a sua competência, pois que, sendo retrógrada, como lhe chamavam e mesmo assim viesse a ganhar, apesar da mudança que esse facto traduzia, é porque tal acusação era falaciosa.
À pergunta sobre a medida de colocar Manuela Moura Guedes na RTP, respondeu que teve só a intenção de ajudar o Primeiro Ministro, de tal modo o viu acabrunhado com o desaparecimento da locutora dos écrãs televisivos.
Quanto à sensualidade de Sócrates a que jamais fizera referência, não fora por esquecimento mas por sectarismo que o fizera: porque Pedro Passos Coelho ficara em 2º lugar, por ser do PSD. Mas a beleza de Sócrates achava-a de todo indispensável. O país precisa de beleza.
Teve graça no comentário sobre o possível divórcio dos pais de Ricardo, achando que este devia ter sido uma criança turbulenta, mas, para preservarem a família, era indispensável continuarem juntos e assim tomarem conta dos netos.
O remate foi brilhante. À pergunta insidiosa sobre a suspensão da democracia por seis meses, considerou que, se um profissional do humor não detectara o humor dela quando pronunciara a sua frase que tanta controvérsia provocara, o que se poderia esperar dos outros?
Creio que Ricardo Araújo mais uma vez engoliu em seco. Mas soube disfarçar.
Um conjunto de perguntas suficientemente astutas e irónicas, um conjunto de respostas brilhantes, de quem, não querendo fazer política, a cada passo salientou a sua argúcia política na demonstração dos seus valores, de respostas meditadas, sem o “savoir faire” dos frequentadores dos salões, mas demonstrativas de real capacidade de entrar nos jogos, mesmo os mais matreiros, com a sinceridade e a competência de alguém que pode levar um país a meditar sobre o que significa, realmente, ser cidadão de um país, sob uma orientação responsável.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Devíamos meditar no Decálogo de Lincoln

No blog “A bem da Nação” de Henrique Salles da Fonseca encontrei um texto de autor anónimo sobre o povo americano – “Os Gringos” - ao qual são reconhecidas qualidades de generosidade, trabalho, amor pátrio, defesa dos direitos humanos, a heroicidade e o altruísmo que encontramos em tantos daqueles filmes antigos, reveladores de coragem e decisão, certamente que decisivas para a formação do país enorme, próspero e atento ao mundo, que intervém nas questões externas, não apenas em manifestações de solidariedade mas em defesa da liberdade, bem representada na sua Estátua de Nova York, não permanecendo, contudo, nos países, como dominador.
Há muitos, mesmo intelectuais, que odeiam a América. Não lhes perdoam a guerra no Iraque, nem as bombas sobre Hiroshima e Nagasaqui, indiferentes às razões que os moveram. Geralmente ignoram as atrocidades dos povos cujas ideologias prezam, quanto mais não seja por desejo de saliência em torno de um ideal supostamente progressista. Invejosos de um bem-estar que não conseguimos atingir, somos mesquinhamente ingratos para quem ajudou a livrar a Europa do pesadelo nazi, sacrificando os seus homens na defesa de pátrias alheias, quando nós desprezámos a nossa.
O texto do blog que sigo contém ainda uma série de preceitos de Abraham Lincoln, 16º Presidente dos Estados Unidos, entre 1861-1865, eleito pelo partido Republicano, que conseguiu preservar a unidade do país durante a Guerra da Secessão. Eis alguns preceitos do seu “Decálogo”, talvez responsáveis pela energia que emana desse povo alto e espadaúdo, segundo os vemos nos Western dos tempos idos, em cavalarias pelas largas planícies, como espaços da sua grandeza: “Não se pode criar prosperidade desencorajando a iniciativa individual, não se pode fortalecer o débil debilitando o forte, não se pode ajudar os pequenos esmagando os grandes, ou ajudar o pobre destruindo o rico, não se pode formar o carácter e o valor de um homem tirando-lhe a sua independência (liberdade) e iniciativa, não se pode ajudar os homens realizando por eles permanentemente o que eles podem e devem fazer por si próprios.”
Tais preceitos são um combate à indolência e à irresponsabilidade, um estímulo ao trabalho, à compreensão, à aceitação da diferença, desde que o mérito seja reconhecido.
É claro que o capitalismo vai forçosamente surgir, num país de gente trabalhadora e inteligente, pois só o capital pode gerar trabalho.
Houvesse, entre nós, muitas empresas para empregar gente, e que soubessem estimular e reconhecer o mérito dos que bem trabalham! E trabalhadores não ingratos, mas empenhados no seu trabalho!
Houvesse, entre nós, estabelecimentos de ensino que preparassem os futuros cidadãos segundo os preceitos de Abraham Lincoln!
Infelizmente, somos mais um povo de palavras, embora não de palavra. Não! Seguíssemos nós os tais preceitos, juntássemos a acção à palavra, não seríamos mais o povo periférico contra o qual reclama Sócrates. Porque o que nos torna mesmo periféricos, não é a falta do TGV, mas os “centos de anos de solidão” traduzidos em paralisia, atraso, falta de educação, falta de respeito pelas coisas sagradas, entre as quais o desejo de ser competente e bom profissional, o amor por nós como nação, como família, como seres humanos com ética.
Mas o “Fiat Lux” não nos atingiu. Talvez pela periferia. Esperemos que com o TGV...

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

“Acusam-me de falta de patriotismo”

Eu nem quis crer em tamanho disparate que ouvi hoje que disseram do nosso Primeiro Ministro! Queixou-se ele de que o acusaram e ao seu staff – parece que foi a Drª Manuela - de falta de patriotismo e achei essa acusação incompatível com a escolha de Évora para início do seu itinerário eleitoral e do seu staff, nem sei mesmo se acompanhados pela melodia do nosso saudoso Luís Piçarra, de saudade e de amor às coisas nacionais - “O meu Alentejo”, que igualmente ecoa nos meus ouvidos antigos:
Eu não sei que tenho em Évora / Que de Évora me estou lembrando / Ao passar o rio Tejo / As ondas me não levando”.
Em todo o caso, se as ondas do Tejo o levaram para um sítio impregnado de tanta poesia e mistério, que também inspirou o nosso Vergílio Ferreira para os pensamentos existenciais, bastava a Capela dos Ossos para o fazer recuar, mas avançou sem medos.
Ele até considerou que há trinta e poucos anos de experiência revolucionária se tem deixado conduzir por esse mesmo patriotismo que está na origem da revolução dos cravos, teria ele os seus dezassete anos e esses sentimentos calam sempre fundo na nossa alma por essas alturas e mantêm-se ao longo da vida, não tenho dúvidas disso.
Por isso se queixou e bem e chamou retrógrada à Drª Manuela que quer empatar o TGV para não favorecer a Espanha nas suas economias, pois favorecer por favorecer que se favoreça o nosso país, impedindo uma integração precipitada na nossa vizinha, a quem não basta que não mande ventos nem casamentos de qualidade para aqui – segundo diziam os patriotas antigos – ainda quer o TGV para difundir ainda mais as mercadorias do seu fabrico nacional.
O António José Seguro, no programa de Mário Crespo, de há bocado, sério e seguro das suas razões de apoio ao chefe, afirmou mesmo: “Olho para Espanha e não vejo fronteira”.
Não sei se se referia a uma espécie de “muro de Berlim” a delimitar os dois países, ou se lhe bastaria um tapume idêntico aos que revestem os jardins que encobrem as nossas casas ao olho da rua. Decerto que Seguro é um homem viajado e tem encontrado esse tipo de fronteiras de tapume, senão não estranharia a ausência das nossas com a Espanha, tantas vezes, contudo, passadas a salto, no tempo dos carabineiros, prova de que “las hay”, ou, pelo menos, "hubo".
É por isso que o TGV seria um elo de ligação ideal, elegante, bonito, rápido, para nos fazer sair da periferia e conquistarmos o lado de lá, onde se encontra a Catalunha, e também o País Basco, os quais, contudo, prefeririam libertar-se da chefia do seu governo, não sei se pelos mesmos motivos de que nos queixamos, nós, os marretas – ventanias e casamentos ruinosos.
Mas a Drª Manuela teve o apoio, no programa de Crespo, de José Luís Arnaut sobre a nossa depressão que nos obriga a canalizar os dinheiros europeus para projectos menos ruinosos e que até utilizou a imagem do carro de luxo que todos gostaríamos de possuir – é indispensável não generalizarmos tanto – limitando-nos ao mais em conta, mesmo em segunda mão, para não hipotecarmos a nossa vida e a dos nossos filhos tão gravosamente.
Enfim, analisados os prós e os contras do TGV, ficamos em que a Drª Manuela não quer o TGV por nacionalismo, sentimento que o Engenheiro Sócrates também reivindica para impor o TGV, queixoso de que o acusaram de não o ter, e já se viu que o tem.

domingo, 13 de setembro de 2009

Disse Sócrates, o nosso:

A virtude do sabedor é não considerar que sabe mais que os outros. È um preceito de humildade indispensável a um verdadeiro democrata.”
Disse-o a Manuela Ferreira Leite, no debate de ontem na Sic, orientado por Clara de Sousa.
Acho que já lho dissera uma vez, não sei se no Parlamento, segundo foi explicado, e eu recordei os meus tempos de estágio pedagógico, em 77, em que era aconselhada aos estagiários uma postura de humildade e discrição no desempenho docente. Recordo até, entre as várias aulas assistidas pelos colegas e formadores, uma que dei sobre Camões, no fim da qual fui efusivamente cumprimentada pelos colegas, tal o encantamento vivido durante os cinquenta minutos, pelos professores e os alunos, e por mim que a transmiti com tanto entusiasmo e amor pelo poeta cujo lirismo se estudava. Mas, no dia seguinte, os colegas passaram a evitar-me. Soube que a minha aula foi criticada pelas duas orientadoras de estágio, como tendo um ritmo alucinante. Adeus, plano de trabalho, adeus profissionalismo que me levava a empenhar-me numa formação dos alunos centrada no rigor, no objectivo de neles criar competências e responsabilidades. Não fora humilde mas ambiciosa, a minha aula, paguei por ela. E por outras, condenadas por argumentações semelhantes.
Revivi ontem esses momentos de uma estupefacção e dor jamais diminuídas, ao ouvir a frase de um homem que, obtido o seu curso, ao que dizem, sem o rigor da sua opositora, que, esta, sim, tem um curriculum brilhante, como estudante, professora, escritora, política – a primeira mulher presidente de um partido político, leio na Internet – tenta rebaixar a rival, que ousara socorrer-se dos seus pergaminhos como garantia da sua honestidade intelectual e moral, da sua credibilidade.
Hipocritamente, Sócrates, que não pode garantir igual percurso de probidade intelectual, lembra os argumentos da humildade democrática, bem falaciosa, pois ninguém mais do que ele tem revelado os ditames de uma arrogância surda a quaisquer objecções, a quaisquer avisos de sensatez.
E o país escuta-o, e dá-lhe força para prosseguir, aliciado pela obra que ele diz que fez, e cujo proveito não pode apagar a outra obra de iniquidade a que condenou um país inteiro – ressalvados os aproveitadores do costume: a ligeireza com que destruiu a ortografia portuguesa, indiferente a todos os avisos dos doutos que atacaram o seu vil Acordo Ortográfico; a infâmia com que atropelou e desrespeitou a classe dos professores, ao que se diz, para ajudar a refazer o erário público de que tanto se gaba; e todas as outras classes a que foi retirando direitos, numa pseudo-democracia que todos dizem asfixiante, só o não sendo para os prevaricadores, impávidos nos seus desmandos, porque instalados num clima de corrupção sem contenção; um ensino cada vez mais indisciplinado e estreito, nos parâmetros de avaliação que, sobrecarregando todos com exigências fúteis, lhes retira os hábitos de trabalho, interesse e rigor intelectual, afora os tais cursos fraudulentos, de concessão de diplomas fora do âmbito escolar, visando falsas estatísticas de sucesso “para inglês ver”.
O país escuta-o, a começar pelas que se identificam, creio que falsamente, de “donas de casa”, que o defendem com unhas e dentes e argumentos alheios às nossas comuns donas de casa, nos comentários da “opinião pública”, que até parece que lhes foi encomendado o discurso, de impropérios também contra a rival, como se viu no “Opinião Pública” a seguir ao debate. E a acabar nos comentários jocosos e atropelados em cruzanentos de interrupção frequente – como se estivessem num café público - dos que se julgam bons comentaristas políticos e que atiram pedras a Ferreira Leite, como figura inerte, desdenhando dos valores de que ela se arroga, no seu patriotismo preocupado com a destruição da Pátria, perpetrada por um pobre “vendedor de banha de cobra”, que, a ser governo – e acredito que sim – continuará nessa saga de destruição, que macula o nome sagrado da família, pela concessão dos casamentos entre homossexuais, segundo promessa feita, igualmente defendida pelos intelectuais do nosso progressismo de trazer por casa. Como Louçã, outros ainda refractários, na tacanhez tímida dos seus sentimentos tradicionais.
Não será esse, tenho a certeza, o comportamento de Manuela Ferreira Leite, caso venha ela a ser ministra, no que eu não acredito. Porque à sociedade, cada vez mais definhada, por conta desses desmandos e degradação de que a obra socrática é tão responsável, embora não seja a única nisso – a coisa vem de bem longe - convém, talvez, o definhamento, a nulidade, exceptuando os que ainda vão lançando, com a coragem da sua probidade, algum esclarecimento e precisão, com que aquecem os corações dos revoltados.

sábado, 12 de setembro de 2009

Os Direitos Universais

Leio na Internet que a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” proclamada pela Onu em 1948 é o documento traduzido no maior número de línguas e tem servido de apoio ao maior número de pessoas que defendem assim os direitos dos humanos nossos irmãos, além dos nossos próprios direitos. E também os dos animais. E da Natureza, estes em função do nosso bem-estar permanente, para impedirmos que o buraco do Ozono se vá esgaçando cada vez mais.
É por isso que vivemos no respeito por tudo quanto é cidadão, e até por aqueles que em princípio não têm tal estatuto, párias constantes sem apoio da “Declaração”, mas desses não falamos, para não nos intrometermos aonde não somos chamados a meter o bedelho.
Tal “Declaração” foi, pois, responsável pelo aumento dos bons sentimentos e das boas condições de vida em que se transformou a vida dos que antes tinham má vida.
E é por isso que agora quase todos os povos vivem em democracia, que fornece casa, comida, agasalho, educação, trabalho, a todo o bicho careta que tem direito a tanto. Devíamos, pois, viver em bem-aventurança permanente, cada governo respeitando os seus cidadãos, e não se compreende como andamos sempre todos atrofiados, sem o tal respeito dos direitos que se proclama na dita “Declaração”.
Vem isto a propósito do debate de ontem entre Paulo Portas e Francisco Louçã, na RTP, cronometrado por Judite de Sousa, no qual demonstraram estar bem preparados, segundo os ditames propostos pela “Declaração” da ONU, nos seus sentimentos de solidariedade social, e no qual, por vias opostas, mostraram que possuem a chave para encarreirar este país, que, ao que parece, não tem seguido as imposições expressas pela ONU, sobretudo na questão dos respeitos.
Os cozinhados da democracia segundo Louçã parece que se apoiam num maior totalitarismo do Estado. É esse totalitarismo o responsável pelos Gulags e pela supremacia dos do partido comunista na Rússia (e satélites, agora mais reduzidos). Mas congratular-nos-emos sempre pela existência de um herói - talvez o maior do século XX – Gorbatchov – que reduziu tais poderes totalitários graças à Perestroika.
Paulo Portas parece mais verdadeiro, ao defender os seus paradigmas sociais, já afeito às lógicas governativas, de condescendência com os donos do capital, os verdadeiros motores do universo governativo, quer estes reconheçam ou não os direitos dos cidadãos da Declaração Universal, eles próprios cidadãos principais, no reconhecimento dos direitos próprios.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Eu sempre votei no CDS...

... desde os tempos do sentimento de destroço em face do país destruído, no regresso a esse país reduzido ao seu mínimo territorial, mas sempre máximo nas ambições de quantos se lançaram sobre ele para o chupar com arreganho.
O CDS passou a representar para mim aquele escol de bravos que ainda ousavam defender valores que cada vez mais se iam diluindo, nas volúpias do conforto dos abutres que fingiam amar as populações para melhor se locupletarem, no amor cego dos povos, reconhecidos com as côdeas recebidas.
Admirei Freitas do Amaral, na sua discreta mas decisiva demonstração dos princípios que gostava de ouvir, em face da facúndia falaciosa dos demais concorrentes. Admirei Lucas Pires, que achava um príncipe na expressão brilhante do seu discurso. Apreciei – e mantenho – Adriano Moreira na amplitude da sua formação intelectual e seriedade dos seus princípios.
Paulo Portas sucedeu a Manuel Monteiro e fiquei grata por isso, pelo esplendor do seu discurso vibrante, que afastara decisivamente um Monteiro tosco, incompatível com o que para mim representava o chefe de uma nação, verdadeiro senhor, nos seus princípios morais e espirituais.
Mas o povo não o entendeu assim, e deixou-se fascinar pelas demagogias expendidas pelos tais que desprezaram a Pátria, e jamais deu oportunidade ao CDS para crescer, identificando-o com os representantes do fascismo opressor, indiferente a ideologias ou valores que preservassem a Pátria, antes crédulo nos que lhe lançavam o isco de uma pseudo-solidariedade.
Mas Paulo Portas confia ainda na possibilidade de crescimento, distribuindo abraços e discursos que revelam ampla facúndia, na desmontagem dos seus argumentos salvadores da nação.
Não sei se ele próprio acredita nisso que propala. Em caso de ser governo, talvez lhe não corresse tão bem como afirma, no rigor dos seus cálculos e dos seus estudos. Porque o povo não muda assim, e os governos têm que flectir perante os que realmente detêm o poder dos lucros.
Mas não gostei da arrogância, revestida de simpatia, com que se lançou sobre Manuela Ferreira Leite, acusando-a de ambiguidade, nas suas semelhanças com o PS, e achando-se imprescindível para pôr ordem nas políticas salvadoras do país.
Manuela Ferreira Leite não se deixou impressionar. Não esbanja profusão de conhecimentos, nem se perturba com o novo-riquismo intelectual das demonstrações de Portas. Ela se revela íntegra e arguta, na moderação da sua resposta, quer de defesa quer de ataque imediato, imperturbável ante a irrequietude atrevida e calculada deste “menino de bibe” que quer sobrepor a sua voz, na espectacularidade do seu discurso, de há muito decorado.
Um dia, a respeito de José Sócrates, lembrei o “Aprendiz de Feiticeiro”, do poema de Goethe, adaptado por Walt Disney, através do Rato Mickey, no film Fantasia, com a música do compositor Paul Dukas, para lembrar que os aprendizes devem ter cautela, pois os feitiços se podem virar contra os feiticeiros, e mais ainda contra eles, aprendizes néscios.
Paulo Portas lembra-me antes o “menino de bibe” do nosso Miguel Torga, no poema “Brinquedo”:

“Foi um sonho que eu tive.
Era uma grande estrela de papel,
Um cordel
E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela
Com ar de quem semeia uma ilusão;
E a estrela ia subindo, azul e amarela
Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu,
Que deixou de ser estrela de papel;
E o menino, ao vê-la assim, sorriu
E cortou-lhe o cordel.”

Paulo Portas não deve cortar o cordel à sua estrela, mesmo que esta seja de papel. Deve puxá-la para terra, para se solidarizar com quem compartilha de tantas das suas opiniões, num sentido de interapoio para o bem comum que ambos defendem.
Doutra forma mostrar-se-á apenas desleal e esse aspecto não condiz com o seu ar de “menino de bibe”.
É tempo de voltar ao trabalho consciente, porque as estrelas, no poema, não passam de lirismo inútil, na prosa do suor do rosto, com que, adultos, nos foi mandado fabricar o pão de cada dia.




A Educação na baila do costume

Deixámos escapar ontem o frente-a-frente Manuela Ferreira LeiteJerónimo de Sousa, não porque não quiséssemos segui-lo, mas porque o futebol baralhou os nossos horários, e julgámos que a TVI já não ia apresentar o programa, já tardio, e insignificante perante o efeito explosivo que o resultado, embora parco, do Portugal-Hungria, que lhe permitiu continuar em cena para o Mundial, iria provocar, chamando imediatos comentadores à ribalta das nossas prioridades.
Eu ainda o agarrei, mas já quase no fim. Deu, no entanto, para admirar uma vez mais a serena figura de Ferreira Leite, defendendo com inteligência, sensatez e coragem, os princípios em que se apoia e atacando os que condena, sem receio das críticas com que os de linha diferente não deixam de a agredir, verdadeira rainha, na humanidade que revela na sua solução dos problemas, e delicadeza mas argúcia, com que enfrenta cada adversário. Neste caso, Jerónimo de Sousa, também igual a si mesmo na expressão dos seus protestos, que as liberdades conquistadas permitem sintonizar desde o Abril de há 35 anos.
Hoje ouvi que Ferreira Leite se enganou no enunciado de uns valores financeiros, na sua crítica a Sócrates, e o facto será devidamente explorado por quem costuma empolar os lapsos do erro humano - e muito mais se altamente posicionado -, como significativos, neste caso, de falta de exactidão na crítica às contas alheias - falta de estudo, portanto - olvidando-se outras faltas de rigor, imprecisões, lapsos, etc. de tantos dirigentes políticos que já passaram pela nossa costa desde a mesma já longa data.
Mas hoje ouvi ainda, na “Opinião Pública” da SIC, a entrevista creio que a um professor de quem só percebi que se chamava Ricardo, o qual iniciou o seu discurso indignado com a visão mentirosa do Secretário-Geral da Educação, Walter Lemos, sobre o início do ano lectivo, perfeitamente arrumado, com as escolas a funcionar na perfeição, segundo a sua perspectiva radiosa.
O entrevistado de hoje refere a falsidade da afirmação, confirmada por outras opiniões telefónicas do público, acentuando as falhas graves no preenchimento de vagas nas escolas, com milhares de professores contratados a prazo ainda por colocar.
Recorda indignadamente a transformação das escolas em armazéns de crianças ou adolescentes com a pressão sofrida pelos professores em vista ao sucesso escolar, a todo o custo.
Condena a concessão de certificados nos cursos profissionais criados ad hoc, para elevação numérica dos portugueses alfabetizados e simultânea elevação da nossa “auto-estima” cultural.
Critica o modelo de avaliação dos professores perfeitamente absurdo, no desprezo arbitrário dos seus direitos, no injusto das regras que estabeleceram a sua bipolarização em titulares ou não - afora aqueles que nem sequer podem alcançar esse estatuto, não disponibilizadas as vagas deixadas pelos professores efectivos - na violência e desgaste de uma carga horária perfeitamente irracional e afrontosa, no vazio do reforço de reuniões e leitura de papelada burocrática a cada passo chegada do Ministério, que tudo pode ser menos de educação porque a não permite, pelo tempo que lhes rouba para o estudo, pela permissividade à indisciplina que favorece, com a condenação do professor castigador, em confronto com o aluno prevaricador...
É claro que o entrevistado não recusa a avaliação, mas propõe outro modelo – um que liberte o professor para a sua docência e que o não transforme em “estagiário permanente”, aviltado na desconsideração dos méritos do seu percurso, um que reponha o ensino na sua função formativa em vários níveis e que o não condene à nulidade dos saberes, pela falta de exigência e pela perversão do inócuo.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Uma fábula de médicos

Hoje a minha amiga não quis falar do debate de ontem, já enfastiada com a verborreia que eles, os políticos, de resto, são forçados a debitar, para nos revelarem as suas almas e os seus trabalhos para o comum benefício de todos nós.
Tratou-se do frente-a-frente Sócrates-Louçã, na RTP pontuado por Judite de Sousa, a que eu também não prestei a atenção devida, por já conhecer em parte as doutrinas já expendidas em debates anteriores.
Mas chegou para ver que Sócrates foi o maior, ele, aliás, deu a entender que o seria, com a perfídia acobertando uma falsa doçura, quando, logo de início, embora não quisesse manifestar qualquer desconsideração pelos grupos menos vastos, expôs que as escolhas eram entre PS e PSD, ou seja, entre ele, Sócrates, e Manuela Ferreira Leite. E isto arrumou Francisco Louçã, que não mostrou a mesma garra, no debate, que noutras alturas de maior conflitualidade.
Mas eu não apreciei a atitude arrogante do Engenheiro, senti bem a humilhação de Louçã, que, todavia, se vingou, referindo o seu terceiro lugar nas forças políticas e apontando a quase paridade de Manuel Alegre com o PS, nos votos da nação.
É claro que Sócrates, satisfeito com o “fim da recessão”, com o saldo já positivo da balança – 0,39% - aproveitou para atacar o azedume dos que não admitem esse valor, que atribui à boa política do seu governo e condenar o BE que em vez de o apoiar, como força de ideologias semelhantes, o ataca e destabiliza. E este queixume demonstrou que afinal apelava ao voto útil, que inicialmente pareceu desdenhar.
Falou-se de economia, de nacionalizações, do programa do BE, de que Sócrates leu partes, sem atender a protestos nem justificações. Como já Louçã fizera, quando confrontou Ferreira Leite.
Houve tabus importantes. Eles falaram na pobreza, mas do caso “professores” não ouvi. Não, pelo menos, com a frontalidade requerida. Nem sobre a falta de pudor no desrespeito pelos seres humanos que aqui vivem e os seus direitos. Pouco ou nada sobre fraudes e corrupção.
Daí, eu ter-me voltado para La Fontaine, a quem fui buscar uma fábula de apoio, de que vou atamancar uma tradução, como meio de diversão e um pedido de perdão por qualquer incorrecção: Trata-se da fábula “Les Médecins” (Tant-pis e Tant- mieux):

“O médico Tanto-pior ia ver um doente
Que o compadre Tanto-melhor visitava igualmente.
Este último acreditava na cura
Embora o companheiro
Sustentasse que o moribundo
Iria em breve encontrar
Os parentes no Profundo.
O doente pagou o seu tributo
À Mãe-Natura,
Isto é, faleceu,
Depois que os remédios de Tanto-pior absorveu.
Uma vez mais ambos foram triunfar
Sobre a doença mal gerida.
Dizia um: “Morreu, como eu previra”.
E logo o outro: “Se ele, o meu conselho seguira,
Ainda agora estaria cheio de vida”

É uma fábula de fácil aplicação ao nosso caso de falência previsível. Temos “médicos” bastantes, todos com as suas competências e os seus saberes, mas especialmente confinados a dois, cada um podendo incorporar os da sua especialidade. E cada um dos titulares podendo sempre atribuir culpas ao outro, em caso do desastre da receita daquele, mostrando, simultaneamente, que a sua é que era a boa:
«L’un disait: “Il est mort, je l’avais bien prévu. »
- « S’il m’eût cru, disait l’autre, il serait plein de vie »

terça-feira, 8 de setembro de 2009

“Que coisa horrível um país assim!”

- Eu não quero acreditar no que ouvi ontem ao Paulo Portas sobre o ministro da Agricultura! Como? Como? Como? Não utilizou uma quantidade de milhões de euros da UE na nossa Agricultura?!
- Duzentos mil milhões de euros, leio eu nas minhas notas.
- Isto tem que ter uma explicação! Mas o povo português fica indiferente a esta declaração do Paulo Portas? Eu vou votar nele! Mais ninguém tinha ainda feito referência a isto! Como é que o Jaime Silva pode andar na rua? Será que as pessoas não pensam como eu? Eu quero realmente ver se alguém menciona isso desta entrevista!
- Acho que ninguém mais referiu, pelo menos não ouvi!
- Claro que os ladrões do Banco ele também os apontou e que o Victor Constâncio, moribundo, faria tudo da mesma maneira, segundo contou Portas. Isto quer dizer o quê? Que estão todos inocentes! Pois o Paulo Portas para mim ganhou as eleições! Eu vou votar nele! Que coisa horrível um país assim! Esta coisa do Ministro da Agricultura, acho tão espantosa!
- Mas olhe que não é a primeira vez que acontece! Só talvez não fossem assim tantos milhões!
Retomou, com mais gana ainda:
- Qual é a justificação? A agricultura não merece? Não se deve trabalhar na terra?
- Oh! E então os dinheiros que recebem para isso? Para não trabalharem! Veja lá se fossem comprar maquinarias ou aprender técnicas para nos equipararmos nas hortaliças aos outros países! O trabalho que não daria aprendermos todas essas coisas novas! E com a proibição para as exportarmos, as maquinarias enferrujavam. Como nos hospitais e casas de saúde certos aparelhos sem uso, porque não lhes dão autorização para os usarem.
Não ligou à interrupção:
- O que é certo é que os agricultores dizem que a pior coisa para eles é o vento, a chuva – em excesso, claro – e o Silva. Mas como? Como? Como justifica tal coisa? Unicamente assim: Não levanta o dinheiro: perde o dinheiro. Não é de burro?
A minha amiga aplica expressões das suas iras a que não há meio de me habituar, delicada como sou. Também usou a mesma expressão desprestigiante – os habituados a fazer humor insinuariam que para os burros – em referência ao tardio do “Prós e Contras”, que ouviu a seguir ao frente-a-frente Paulo Portas - Jerónimo de Sousa, na SIC, moderado por Clara de Sousa, de que estávamos a falar:
- Vou escrever à RTP que enquanto houver cabeças burras, que põem no ar programas tão tardios, o país não vai longe. Este programa é feito para a nação? Este programa é caro? Qual o interesse em dá-lo à meia noite? Um país vai levantar-se porquê? O quê!? Fazem o sacrifício de não dormir para os ouvir? Cabeças burras! Mas alguém reclamou? Nunca vi isso escrito em lado nenhum!
Vê-se bem que o sono a apanhou quando estava interessada no debate com o Ministro dos Assuntos Parlamentares e alguns parlamentares a atropelarem-se nas razões, com a Fátima Campos Ferreira ao comando. É, de resto, uma conversa que ela já há muito explora, nas volutas aromáticas do nosso café matinal, e sempre com a mesma indignação, a hora tardia do “Prós e Contras”.
Mas, retomando o tema do frente-a-frente, achámos que se portaram ambos à altura, com mais ênfase sobre a actuação de Paulo Portas, embora a minha amiga pessimista insista na ineficácia dos argumentos, farta de ouvir programas de reabilitação num terreno sem habilitação, e daí a sua inutilidade.
Eu não achei que tivéssemos falta de habilitação, porque nos reconheço até muita habilidade. E assim vamos cozinhando o nosso caldinho verde, que pertence à nossa habilidade caseira, e até nos damos todos bem, interessados no bem de todos.
A direita e a esquerda foram bem representados ontem, pois, por Paulo Portas e por Jerónimo de Sousa, aquele, brilhante nos raciocínios, demasiado rápidos, todavia, por conta da moderação imposta, este muito mais animado do que nos anteriores debates contra os da sua área ideológica.
Desta vez tratava-se de um opositor real, com quem jogavam os seus interesses, ambos mais ou menos empatados nas votações, além de que, para Jerónimo de Sousa convinha acentuar ironicamente as diferenças sociais entre ele, habituado por tradição à carne de vaca do guizado, e o seu opositor, mais afim do lombo do bife, em imagem a propósito das doenças de mais alto gabarito, citadas por Portas - cataratas, ortopedias - tratáveis nas casas de saúde, ignorando o encerramento das maternidades pelo governo de Sócrates.
Mas Paulo Portas revelou ser sensível, como Cesário Verde, à “dor humana” que “busca os amplos horizontes e tem marés de fel, como um sinistro mar”, relatando os seus conhecimentos adquiridos nas feiras das suas andanças eleitorais, e apontando soluções do seu percurso de intelectual estudioso e brilhante.
Quanto a Jerónimo de Sousa, tal como o soubera dizer também ironicamente a José Sócrates, ele falava por experiência própria da sua vida mais sofrida e orientada, intelectualmente, pelo credo marxista, contido na Constituição.
Concluiu mesmo que as divergências entre ambos se centravam no maior ou menor seguidismo da Constituição pós-abrilina.
Ambos estiveram bem. Eu, como a minha amiga, também vou votar em Paulo Portas.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Julguei que Manuela Ferreira Leite iria intimidar-se

A verdade é que os olhos coruscantes de Francisco Louçã, a sua pose inflamada de dominador tribunício, com mastigação ardente das frases, entoadas com o arreganho da contundência consciente, poderiam fragilizar-lhe o ânimo, denunciando a tal indecisão de que é acusada, por alguns do seu partido, por todos os dos outros que lhe não querem reconhecer o valor, provavelmente por lhes faltar a eles.
Não aconteceu.
Manuela Ferreira Leite não mastiga nem cospe as suas frases. Responde plácida e serena, sempre sóbria nos gestos e nas palavras decisivas, com que rebate as propostas do opositor, com as suas contrapropostas inteligentes, os exageros da linha esquerdista indiciados na sua ironia, na sua sua sensatez, com que aponta o absurdo, irrealista e, acrescento eu, por vezes desonesto, das frases bombásticas de quem sabe que nunca irá aplicar o programa que proclama, porque não irá governar.
Assim foi no primeiro tema, segundo a moderadora da TVI, Constança Cunha e Sá, sobre a nacionalização dos bens públicos, proposta por Louçã, indignado com os ganhos escandalosos das empresas privadas, ao contrário de Ferreira Leite que propõe a diminuição do peso asfixiante do Estado, com o seu agravamento da carga fiscal, causa de aumento do défice e impeditiva de crescimento económico, além de considerar que uma dezena de empresas bem capitalizadas não só proporciona emprego, como correspondem a uma parte ínfima da nossa economia, o peso das trezentas mil pequenas e médias empresas superior a essas, devendo, pois, ser ajudadas para aumento da competitividade e solução do desemprego.
Não deixou de ironizar também sobre o valor das nacionalizações sucedâneas ao 25 de Abril, ao que Louçã redarguiu com a pré-destruição da economia pela fuga dos grandes capitalistas da época, falseando expressamente dados e exigindo, na sua tese das nacionalizações, mais rigor nas contas do Estado, e maior responsabilidade, como meios fundamentais para o desenvolvimento económico. Pareceu-me utópica tal imposição, e a ele também parecerá, dada a nossa reconhecida incapacidade de fabricar expressamente seres virtuosos e rigorosos nas contas, com vista ao bem comum.
Na questão da Segurança Social, Ferreira Leite fala, com seriedade, na manipulação escandalosa dos dados, negando que alguma vez tivesse proposto a privatização daquela, afirmando ser aquela um ponto que requer uma absoluta estabilidade.
Mas Louçã acusa, em violência profusa de voz, que o programa do PSD se propóe despedir 150000 funcionários, e reduzir 10% dos trabalhadores portugueses.
Como um disco rachado, já que Louçã não lhe permite responder, o tempo de emissão precário, Manuela repete, segura: “Não tenho isso no programa”, contra a irredutibilidade daquele. Também acha vago o programa de Ferreira Leite e esta retorque que a solução de Louçã para o desemprego se esgota ao fim de meia dúzia de meses.
E na questão da Saúde, enquanto Ferreira Leite fala na exequibilidade das suas medidas, Louçã contrapõe condenando as parcerias médico-privadas, já seguidas no governo de Sócrates, exaltando o serviço público como mais bem apetrechado, condenando o privado como meio de negócio. Mas Ferreira Leite considera o sector privado como um complemento do público, em caso de tempos de espera dos doentes, ou urgências, comparticipado pelo Estado. O objectivo da parceria será a universalidade democrática da Saúde.
Seguiram-se os temas fracturantes, dos casamentos homossexuais, defendidos por Louçã, dentro dum conceito de respeito pelas liberdades individuais, Ferreira Leite dentro do respeito pelo factor família no sentido da procriação, embora respeitando igualmente as liberdades individuais, em termos de uniões de facto.
A conclusão Ferreira Leite: “Eu defendo o casamento, mas não imponho o casamento;Louçã não defende o casamento mas impõe o casamento” constitui uma.modelar síntese que revela a pessoa corajosa, frontal e honesta, de modo algum figura de conservadorismo tacanho, mas com a força moral para pretender desviar o ritmo das relações humanas, desnecessariamente destrutivo, na proposta progressista, com implicações graves sobre a formação moral dos que nos vão seguir.
Concordaram ambos na defesa da liberdade de expressão e de responsabilidade individual que o caso Manuela Moura Guedes despoletou.
Contrariamente, pois, aos rumores e opiniões negativas sobre a sua competência política, Manuela Ferreira Leite manteve a sua postura de afabilidade superior, sabendo reconhecer desportivamente as competências do adversário, sem receio de se inferiorizar com isso, mas contrapondo os seus pontos de vista, bastas vezes em desacordo com aquele, em argumentos claros, não marcados por astúcias apelativas do voto, mas segundo uma ponderação de equilíbrio e seriedade inspiradores de confiança.