domingo, 31 de maio de 2009

“Pôr as escolas a rir”

É com esta expressão que Manuel António Pina, na crónica “Alegria no Trabalho”, chegada por via Internet de 11 de Maio, comenta o texto de Margarida Moreira, Ex.ma directora regional da Educação do Norte, em agradecimento optimista, após quatro anos de trabalho em prol da “educação” portuguesa, não sei se abrangendo o resto dos pontos cardeais, colaterais e intermédios do nosso país maneirinho no mapa. Creio que ficou encalhado no Norte. Pelo menos só agora o topei, mas por deficiência minha, por não lidar bem com a via informática.
António Pina transcreve o texto e o mesmo eu faço:
Faz hoje quatro anos. / Tem dias que parece que o tempo se emaranhou nas coisas e nas pessoas. / Tem outros dias em que tudo parece ter ocorrido ontem. / Contudo há algo que o tempo tem os limites certos: / Foram quatro anos bons de amizade, de solidariedade e de prazer de poder contar com o vosso profissionalismo e apoio. / Em nome da Direcção o muito obrigado .” Margarida Moreira.
Conclui com um poema:
Da voz das coisas / Só a rajada de vento / dá o som lírico / às pás do moinho. Somente as coisas / tocadas pelo amor das outras / têm voz.” Fiama Hasse Pais Brandão
Pois eu concordo com António Pina, embora, de maneira nenhuma, pretenda especular sobre as influências sofridas no dito texto, mas atribuo as suas gafes linguísticas – solecismos, em designação elegantemente erudita - a sequelas do sinistro Acordo Ortográfico da lusofonia – ou, mais prazenteiramente, talvez apenas a influências da telenovela brasileira, dos provavelmente exclusivos lazeres espirituais da Ex.ma directora, pois que, devido aos inúmeros afazeres burocráticos do seu cargo, pouco tempo lhe restará, obviamente, para leituras em português ou mesmo para o estudo da Gramática Portuguesa.
Esta, ensinar-lhe-ia que o verbo “ter” não é impessoal como o “haver”. Pede sujeito. Pergunta-se ao verbo: quem tem dias? A semana? O mês? O semestre? O ano? O bebé (a flor / o bezerro) que nasceu? O sujeito da acção. Mas não é isso que quer exprimir Margarida Moreira: "Há dias", sem sujeito, e não "tem dias", que pede sujeito. Também em “algo que o tempo tem os limites”, está suprimida a preposição “em” antes do relativo de função adverbial, centrado o complemento directo n’ “os limites”: "algo em que".
O texto de Ex.ma directora pedia uma revisão, antes de ser publicado, feita mesmo por algum desses professores que não mereceram o cargo de titulares, segundo os critérios selectivos do recente modelo de avaliação ministerial.
De resto, para mostrar a autenticidade e a dimensão da sua gratidão, apoia o seu discurso num poema lírico de Fiama Hasse Pais Brandão, cujo discurso lírico, ao mostrar desprezo pelos murmúrios dos que são falhos em amor, conclui sobre a exclusividade da voz para os tocados por ele – que são as “coisas” no poema, as “pessoas” no conceito altamente educativo de Margarida Moreira – as pessoas sem voz, porque sem amor pelas normas da sua avaliação. Excluídas, pois, do grupo da solidariedade e do profissionalismo, da gratidão de Margarida Moreira. Sem cinismo.
Manuel António Pina considera que o texto tem uma única finalidade, positiva em todo o caso: “Pôr as escolas a rir”, coisa pouco esperável, no actual clima de infelicidade que se vive nas escolas.
E embora concorde, tenho pena, uma pena patriótica, num desejo de libertar do ridículo a nossa actuação como gente viva. Mas sempre o nosso sussurro – não me atrevo a chamar-lhe voz – tropeça na certeza de que o ridículo recai apenas sobre nós, pela inutilidade do nosso protesto, pura pincelada crítica, como o são a revista à portuguesa, ou a anedota, as mesas redondas de intervenção crítica, ou mesmo os textos analíticos dos seres superiores, tais como os de António José Saraiva.
Tomemos Cícero como modelo da nossa inútil indignação: “Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra”?

A balda da educação

Começou muito antes do 25 de Abril, sim - respondo ao comentário de Gregório Matias, sobre o papel de Veiga Simão na unificação dos ensinos. O jogo das democracias estava em efervescência, na conquista das liberdades e dos direitos – menos dos deveres - segundo a cartilha do “Maio de 68” e Veiga Simão surgiu como reformador, que até favoreceu o alargamento das estruturas do ensino, possibilitando, e tal me parece positivo, a sua liberalização, em termos de correspondência, por exemplo – (para efeitos de formação universitária dos Técnicos) - entre as Secções Preparatórias dos Ensinos Técnicos e o Terceiro Ciclo Liceal, constituído pelos 6º e 7º anos de então.
Todavia, a massificação democrática do ensino, sucedânea ao 25 de Abril, com o desaparecimento simultâneo do ensino técnico, adulterou por completo o sentido pedagógico da “Educação”, transformada em pura farsa, com a desautorização do papel do professor e o laxismo despudorado e acéfalo das actuações discentes.
Foi isto no início da revolução, em que, à semelhança do que sucedia nas diversas estruturas profissionais, onde imperavam as ambições promocionais segundo a lei do menor esforço, os meninos de então, papás dos de agora, ingressaram facilmente nessas políticas permissivas que lhes exacerbavam adolescentes rebeliões, favorecendo as ambições de atingir mais facilmente as suas metas, secundados por alguns professores camaradas que, movimentando-se bem na onda sísmica da revolução, semeavam indescriminadamente altas notas para os ajudar a vencer o ano e a conquistar o ensino universitário.
O estado caótico no ensino foi-se mantendo devido a políticas educativas que nunca desejaram repor a disciplina, tanto ao nível dos alunos como dos professores, a quem não se exigiam responsabilidades de presença, partindo de um princípio, talvez, de confiança no profissionalismo e dignidade de cada um. E - com muitas excepções, é certo - julgo que a maioria dos professores cumpria, como lhe competia, e um certo bom senso acabou por se impor. Mas a tarefa docente estava eriçada de espinhos, com a falta de respeito e a insolência de alguns alunos, em casos pontuais.
Entretanto, programas e metodologias iam adaptando-se aos ventos da modernidade, e os livros por onde se estudava apareciam recheados de maior ou menor informação, nem sempre primando pelo bom senso. (Não assim na disciplina de Português, cujos livros recordo com prazer, na sua factura técnica e formativa cuidada, auxiliares prestimosos da formação dos alunos e dos próprios professores, que mais do que nos meus tempos de aluna, estavam - estão - recheados de textos informativos e questionários descodificadores dos valores semânticos e formais dos textos - literários ou não - em estudo).
Até que ingressámos num governo de estranha prepotência e visão prática pouco esclarecida que se permitiu manipular a nação a seu bel-prazer, em arremedos de trabalho e realização que esconde tanto da perversão dos manipuladores, os quais se permitem destruir o espaço em que se movem, a língua em que se exprimem, a população que desejam dominar, estendendo-lhe a côdea, em aparência de sensibilidade social, sem deixar, entretanto, de reservar para si e os amigos o miolo, como troféus devidos, numa rede mais e mais alargada de maquiavélicos desvios, de corrupção e falcatrua.
No caso do ensino, a violência do acréscimo burocrático, com que o Ministério se permite manipular os docentes, reduzindo-os à condição de robôs sem vontade nem capacidade próprias nem sensibilidade – e é de crer que nem saúde - não interessado no aspecto formativo dos educandos, mas na apresentação de números de sucesso, que nos tirem da cauda das nações europeias, tal absurdo de violentação – e de violação - chega a ser patético na sua indignidade sem precedentes.
Mas tudo isto era de prever, que os governantes de agora pertencem bem à geração dos cravos que os promoveram.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

E permite-se isso?

Acabo de ler, via Internet, o texto que António Barreto publicou no domingo passado, 24 de Maio, no “Público”. É sobre o “Manual de Aplicadores” imposto pelo Ministério aos professores, aquando da realização de provas de exames. Os professores ficam proibidos de mandar entrar sem ser por leitura, de mandar sair da mesma forma. Os “aplicadores” controlam as falas durante o acto, controlam os gestos dos que os aplicam. Pior do que o “Manual de Instruções” das máquinas de lavar roupa, segundo António Barreto, porque se trata de um manual dos bons, dos pesados, contendo o emaranhado das instruções de débeis mentais para outros hipotéticos débeis mentais.
António Barreto disse tudo e bem, nem vale a pena focar o significado da ignomínia e do absurdo de tais imposições que pecam pela demência no ultraje e pelo ridículo da megalomania gráfica.
Aliás, ouvindo ontem José Sócrates lançar o anátema sobre o PSD, com expressões tais como “horror”, “semear o terror”, senti-me mergulhada em autêntico pavor. Lembrei Inquisições, ditaduras – das autênticas – crueldades horripilantes, o delírio na paranóia do poder, o delírio na monstruosidade do desejo de humilhar, de rebaixar, de castigar os professores – no caso presente. Pelo facto de estes não poderem ser eliminados – ainda – pelo menos na sua maioria, apesar da auto-exclusão de muitos dos competentes, enjoados pela imposição de normas de docência e seus objectivos mentecaptos, sem qualquer dignidade, sem nenhum humano discernimento.
E não são, sequer, piadas de mau gosto isso que se pratica aqui de violência pateta e patética. Porque para piadas de bom gosto, falta ao governo e seu chefe a criatividade e o humor sadio transparentes no "Allô, Allô", de troça a todas as ditaduras.
Mas é este ser descontrolado e seus acólitos, bem protegidos pelo chefe, que o povo vai eleger em maioria, numa estranha adoração que só justifico porque o barulho das falas arrogantes e acusadoras do jovem tribuno da plebe, aparentemente significa trabalho em prol da nação, que, ao contrário, paulatinamente se vai desfazendo. A darmos por isso, o que é muito estranho.

A Justiça na balança

Fala-se muito em Justiça. Muito, em casos de justiça e sobretudo de injustiça. A Justiça está na berra. Não só ela, em todo o caso.
Mas sempre esteve. A nossa história é um repositório de injustiças sociais a cada passo sofridas, e nem sempre resolvidas com equanimidade.
Dantes, no caso das mães solteiras - um dos casos sociais muito chocantes na sociedade puritana de então - eram elas que criavam os seus filhos, arrostando com os convencionalismos ao nível familiar, social, ou mesmo de emprego e de direitos médicos.
Mas isso foi já recentemente. Porque em séculos anteriores, usava-se a roda para os enjeitados, por conta de uma sociedade ainda mais justiceira. O próprio Rousseau, por defensor que foi das normas para uma sociedade mais justa e pura, não deixou de confessar ter abandonado nos “Enfants Trouvés”, os cinco filhos que teve da humilde Thèrèse Levasseur, para que vivessem sem as privações que teriam, no caso de ser ele a criá-los.
Entretanto, e voltando à actualidade dos anos setenta, o pai do filho ilegítimo permanecia acomodado na sombra do anonimato que iria transferir ao seu filho, protegido pela tal sociedade puritana em relação à mulher, conquanto menos relativamente ao homem, a quem se aceitavam, com simpatia, os desmandos marialvescos e outros, reveladores da sua força física. Todavia, podia-se rosnar a ocultas.
Nos anos iniciais de 70, colaborei na “Página da Mulher” do Notícias, dirigida pela escritora Irene Gil, que me contava muitos dos casos que a sua pena justiceira vibrantemente condenava. Foi um desses casos, referentes à condição feminina a ganhar direitos com a evolução social, pela obrigatoriedade de perfilhação, ao anterior progenitor anónimo, que transformei no texto que segue, contido em “Prosas Alegres e Não”:

Perguntas Minuciosas
Quando se põe uma pergunta com brilho, os espíritos das pessoas em geral deslumbram-se. As casas onde se fazem mais perguntas deste género, além das escolas, onde a maior parte das vezes, por natural timidez, elas ficam sem resposta, são os tribunais onde, pelo contrário, cada pergunta recebe duas e mais respostas, todas demonstrativas da infinita variedade de interpretações humanas.
É por esse facto, certamente, que em alguns casos onde a maioria preferiria reserva, se usa de uma desmedida prolixidade, para que se admire a argúcia nos interrogatórios a que se expõem as pessoas visadas.
É, por exemplo, o caso da legitimação de filhos a que determinados papás de facto pretendem furtar-se por direito. As felizes mães – felizes porque em muito destaque então – são sujeitas a um interrogatório em forma, em sala onde entra quem quer, ouve e observa quem quer e mesmo quem não quer, embora estes últimos em minoria, dada a natural e sempre fecunda curiosidade humana.
Certas mães recusam-se a responder, entendendo que para se provar a legitimidade de um filho há pormenores escusáveis.
Mas essas mães estão erradas. Porque tudo interessa a quem interroga. Para formar a tese sobre a possível filiação da criança, factos, detalhes, atitudes, caracteres, romance naturalista em suma, tem um interesse infinito. Quantos mais argumentos encadeados sabiamente, mais o caso terá probabilidades de êxito, e a criança em questão terá então o seu pai, após a perfeita humilhação da sua mãe.
Chama-se dialéctica a esta arte feliz dos argumentos e para isso não houve outro como o nosso Padre Vieira embora sobre outros motivos, que também deram que falar. Mudam-se os tempos, e como já não temos índios nem cristãos-novos a defender, usamos a dialéctica a defender as crianças, o que é sempre uma atitude de enternecer, conquanto os meios usados o sejam menos, segundo alguns pensadores severos.
Cristo mandou que as criancinhas se chegassem a ele, é certo, mas também obstou a que a Madalena levasse pedradas. Possivelmente só o primeiro gesto de Cristo é conhecido, ignorando-se o das pedradas.
É por se ignorar isso, com certeza, que alguns interrogatórios se fazem tão minuciosamente.”

Reportando-nos ao presente, temos, actualmente, a distinção entre os pais biológicos e os pais afectivos, e vários casos se contam de injustiças flagrantes.
Salomão deu o menino das duas mães à que cedia o filho, para o não dividir ao meio – segundo ameaça fictícia do rei detective. Só essa poderia ser a mãe verdadeira.
No entanto, com tantos casos de crimes que se contam, cometidos por pais biológicos, a verdade pode bem ser alterada. Cumpre aos juízes decidir, mas porque são humanos ou ineptos, não decidem bem. E ninguém acode.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Bastonário

Defendo o bastonário da Ordem dos Advogados, Marinho e Pinto.
Depois de ouvir o discurso tonitruante do nosso Ministro engenheiro, acusando os outros que o precederam na governação do “terror da educação e autêntico horror” que semearam nas famílias, depois de ouvir os outros partidos todos, de longa data acusando, também em tom altissonante, o governo desse ministro, não sei por que razão nos mostramos tão susceptíveis aos despautérios acusadores do bastonário, que, dentro das suas funções, usa o seu bastão para agredir a própria classe, conhecendo-lhe os podres, que certamente desejaria sanar.
Os jornalistas críticos, sensíveis ao decoro do “parecer”, mais, talvez, que ao do “ser”, entendem que a baixeza desse atentado verbal de M. & P., mais próprio de praça pública, é um desprestígio para nós, como país, que temos que demonstrar um pouco de decência perante os países mais fortes em educação e status. Na realidade, não vejo em que isto interesse a esses países, que, a serem informados, considerarão a tal indecência apenas como mais uma, entre as variadas indecências da nossa actuação social, económica, política, educativa, de que eles talvez conheçam alguns dados, embora os desprezem como de pouca monta. Trata-se de puro complexo nosso.
Também o corpo de advogados bem cotados na praça se insurge, achando que Marinho e Pinto desprestigiou a classe, e pedindo esclarecimentos e denúncias nominais, pouco incomodados com o que realmente se tem passado por cá, em termos de escândalos judiciários, que rebentam em cada dia que passa.
Mas o corpo menos cotado, porque geralmente prejudicado pelas manigâncias jurídicas do mais cotado, apoia o bastonário, se não abertamente, dado o naturai receio de vir a ser lesado, ao menos em consciência.
De resto, há muito que a praça pública – com algumas excepções - se fixou entre nós. Fora as praças da participação popular que têm apresentadores bem dispostos, cito as dos comícios, do parlamento, das mesas redondas com os seus comentadores atropelando-se bombasticamente na transmissão dos seus pareceres...
Nenhum bastonário poderia ficar imune a influências tão poderosas. E tão nefastas.

Passeio de carroça

João de Deus adaptou muito bem as fábulas de La Fontaine, que a gente decorava na adolescência. É o caso dos três animais – cabra, carneiro e cevado – a caminho do mercado, não, em todo o caso, como a Mofina do pote de azeite que lhe vai cair depois de, a pé para a feira de Trancoso, aquele a ter enlouquecido em dança orgíaca de riqueza visionada, bem diferente das orgias reais e firmes de agora, que não se quebram como o seu pote.
Os três animais desta fábula não vão a pé, mas de carroça – por não existir ainda o automóvel da poluição - guiados por um carroceiro que, apesar de bonacheirão e dialogante, se incomoda com os gritos do porco e lho diz, comparando o comportamento manso dos seus companheiros de viagem – a cabra e o carneiro – acomodados no seu canto, sem protestarem contra os solavancos, embora intimamente indispostos com a escandalosa chinfrineira do camarada.
O carroceiro não é de meias tintas e exalta-se, de fueiro em riste para o caso de o diálogo falhar: “Pois o senhor não vê que esta nem chora, nem ao menos as lágrimas lhe saltam, como é tão natural numa senhora? Goelas não lhe faltam, e de ferro! Mas é cabra! Teve outra educação! Não dá um berro sem alguma razão! E julga que este cavalheiro é mudo? É sério, tem propósitos, é sisudo! Às vezes berra que estremece tudo. Mas só quando é preciso! Tem juízo! Miolo...”
Mas o porco tem a experiência do seu destino a cumprir. Sabe que esse destino é o tacho, bem diferente do do carneiro que dará capotes e do da cabra que dará leite. E por isso se lastima: “Mas porcos não se ordenham nem tosquiam! Demais sei eu o fim com que se criam! Demais sei eu! Por isso gritei, grito e gritarei, do fundo da minha alma até à morte: Aqui d’el-rei! Aqui d’el-rei!”
Vem agora a alegoria: O carroceiro está visto que pode representar o nosso primeiro ministro, conduzindo a carroça para seu governo – apesar de já poder contar com diversos outros meios sofisticados de transporte e os mais que hão-de chegar - de diálogo pronto e fueiro, este para as falhas do diálogo. A cabra é símbolo da maioria, às vezes silenciosa, outras vezes fazendo a greve das suas ambições em berros altissonantes. O carneiro, mudo a intervalos, será o nosso presidente, estremecendo de furor entre os espaços da sua mudez. Quanto ao porco, representa sem dúvida os partidos que gritam sem esperança, esclarecidos sobre o seu destino e o destino de todos nós.
E a moral da história: “Infelizmente, quando o mal é fatal, a lamúria que vale? Que vale a prevenção? Antes ser insensato que prudente. Um insensato, ao menos, menos sente. Não vê um palmo adiante do nariz. Vê o presente e está contente. É mais feliz.”
Aliás, já o tinham dito as bem-aventuranças da nossa paz, prometendo-nos o reino dos céus. Para compensar.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

A salvação da Pátria

No “Prós e Contras” da semana, tratou-se da crise, subordinada ao tema “Como salvar Portugal”.
O Dr. Lobo Antunes, embora parecesse triste, disse-se optimista. Sendo o seu laboratório um espaço de observação, achou o problema do desemprego uma tragédia, conquanto todos os que lá estavam no público e mesmo o auditório do sofá, à distância, - o meu caso - achassem, com certeza, que tal não era preciso - haver laboratório - para se detectar a tragédia que é a falta de emprego.
Informou ainda que os cargos são mais importantes do que as pessoas, o que diminui a dignidade dos cargos quanto a ele, mas foi porque me pareceu muito humano, muito fragilizado pela dor. Na realidade, segundo a minha experiência, as pessoas sempre se definiram pelos cargos e não há dúvida de que também pelos vestuários, basta lembrarmos o Adão e a Eva no Paraíso, porque quando o perderam, ninguém mais pôs a vista em cima das suas roupas, e assim perderam a dignidade toda, porque a parra foi fundamental para o seu estatuto, além de que tiveram, após a expulsão, um emprego de baixo calibre, com a inauguração da Idade do Ferro, o Jeová escamado com a desobediência deles ao não pouparem a maçã proibida. Mas, realmente, nem percebi a perplexidade do Doutor, que até ocupa um cargo que o define em dignidade.
Ainda expôs sobre o problema dos professores que considerou um fait-divers inquietante, mas afirmou exaltadamente amar o seu país, achando admirável a solidariedade portuguesa, manifesta no banco da fome e no auxílio prestado nas paróquias e nas comunidades aos novos necessitados.
Todos, de resto, partilharam o ponto de vista do amor pátrio e da necessidade de fazer face à crise, mesmo com os citados paliativos da urgência. Henrique Granadeiro achou mesmo que a média de 700 desempregados diários era obra, e que, embora fôssemos um povo mais dado à lamúria do que à acção, se impunha que não baixássemos os braços, sem com isso pretender significar, creio, qualquer castigo de crueldade inusitada, ou qualquer prece angustiada, a exigir-nos os braços erguidamente hirtos.
Era necessário favorecer as políticas de emprego, embora a nossa cultura de empreendorismo não estivesse muito generalizada. Informou ainda que o sistema financeiro já retomara o caminho dos lucros, com emissões de dívidas, e isso foi positivo ouvir, mesmo estranhando nós como fora possível em tão pouco tempo. Contudo, na minha opinião ignara, andou aí metida a mão do nosso Primeiro Ministro, por conta dos dinheiros da banca externa que nos fortalecem a auto-estima momentânea - enfraquecendo, porém, para os vindouros, o espólio financeiro que nem se sabe se ainda existe - e por conta também, sem dúvida, da sua autopromoção eleitoral, sempre enérgica. Contudo há quem afirme não ser verdade tal retoma, pura balela promocional, ficámos indecisos.
Mas crises já tivéramos e vencêramos, uma das quais a integração, a seu tempo, de um milhão de retornados. Frisou ainda o actual ambiente de crispação, a violência verbal de cortar à faca.
Foi a vez de Laborinho Lúcio usar da palavra, não de forma crispada, mas de forma entusiástica, começando por referir, em imagem literária brilhante, que, à morte de um grande cinéfilo português, um jovem também cinéfilo e também português ganhara a palma de ouro de Cannes, representando o facto alicerce simbólico para o fortalecimento do nosso optimismo.
O que era preciso era restabelecer a confiança, e outras crises já o país suportara, sem falar nas do passado remoto. No passado próximo, além de devermos recordar os três quartos do século XX, indefectivelmente deitados fora, pois só ganháramos o último quartel, tivemos, incluído neste, contudo - nada é perfeito - a crise da integração dos retornados, não menos arrasadora do que esta do desemprego do século XXI.
Como patriota que sou, senti-me profundamente vexada e até receosa, pois, a terem sido eliminados tão drasticamente os tais três quartos iniciais do século XX, já eu batera as botas – as asas brancas, na descrição da pureza de Garrett, a preceder o seu inferno de amar a Luz – viscondessa. Mas pensando que, a dar-se o caso, teria sido acompanhada no chuto por Laborinho Lúcio, sosseguei, em razão do dito amor pátrio e próprio, que permitiu que vingássemos ambos, mesmo com os três quartos eliminados.
Como retornada que fui, todavia, posso responder, para restabelecer a minha auto-estima, que dei no país o meu melhor, para compensar o peso em que me tornei com o meu retorno. Tive mesmo que vender o meu carro, de volante à direita, que me fez passar alguns vexames, com as interferências dos inconformados com a minha presença, entre os quais se contou L. Lúcio, vejo agora, os quais me mandavam insultuosamente para a minha terra. Mas isso era mais quando eu cometia algum deslize na minha condução, confesso, a maior parte das vezes primorosa e sem receio de confrontos. Nesta minha confissão de desagravo, de resto, não existe qualquer espécie de retaliação abusiva, democrata como sou e superior a condenações precipitadas, tanto dos condutores irascíveis, como dos magistrados com mais obrigações cívicas, tal L. Lúcio.
Até concordo que o país pequeno em que se tornou, por abandono do país grande que era, não deixou de cumprir o melhor possível – pesem, embora, algumas queixas dos mais dados à lamúria - o seu dever de estender os braços a quem anteriormente o favorecera, economicamente falando, e que não tinha culpa do despejo que lhe fora imposto, para o agrado dos Laborinhos Lúcios, precipitadamente bem-falantes, a fim de melhor atropelar as suas ideias inquinadas.
Bordou-se muito, depois. A respeito de saúde e de justiça e de política e da verdade. A verdade, como conceito em crise, a verdade absoluta perturbante.
E L. Lúcio vá de exemplificar com uma anedota sobre o juiz a quem uma testemunha pergunta se não tem receio de ir para o inferno por ser tão aldrabão, ripostando este airosamente que irá a cavalo nas testemunhas, e toda a assistência de apoiar com risos de simpatia o humor de L. Lúcio.
Mais uma graça ainda, para amenizar a cavaqueira, desta vez passada com ele próprio e com uma deputada alemã, ou juíza talvez – é-me difícil reconstituir os percursos europeus de L.L., sintetizados que estejam, na Internet – a quem ele perguntou como agiriam os juízes alemães no caso de um réu faltar a uma audiência. Mas não houve meio de a juíza entender a pergunta, dada a impossibilidade de isso suceder por lá, pela Alemanha. Passa-se no seu país? – perguntou a juíza. Mas L.L. respondeu prontamente que nunca. E assim mostrou o seu patriotismo no estrangeiro, que o deixou bem cotado perante a estrangeira, e já cá, mais em família, a sua arrogância moralisticamente incriminatória dos seus concidadãos, ao constatar que temos esse defeito de permissividade entranhada – que atrasa a justiça mas serve os réus, os advogados, os juízes, o próprio L. L., que não se rala minimamente com isso, no atropelamento desonesto do seu discurso nulo, acompanhando, todavia, defeitos que não são nulos, porque revelam antes muito das nossas próprias características de velhacaria, pouco dignas de qualquer ser humano, e menos de um magistrado.
Houve tentativas de concluir o programa sobre as fórmulas de vencer a crise, segundo o ponto de vista abalizado de pessoas fora dela. Uns – o Padre Feytor Pinto - apontando a tolerância, o diálogo, a convivência. O costume. Outros o aumento dos recursos, a formação ética, a celeridade na justiça, todos, o blá blá blá habitual, sem consequência. Como salvar Portugal assim?

terça-feira, 26 de maio de 2009

Os estímulos do nosso Presidente

O nosso P.R. já foi P.M. e como P.M. parece que cumpriu bem, rendilhou o nosso país com as autoestradas da sua competência, dependente da competência de quem lhe concedeu as possibilidades de assim cumprir. Gostei dele a valer, parecia ter energia, e dominava os palcos da governação, graças à maioria que um povo confiante, como eu, que a ela pertenci, lhe concedeu, na sua competência e no seu valor. Quando perdeu para Jorge Sampaio, chorei, tal como a moça que a ele se abraçou com pena, aquando dos resultados dessa eleição.
Mas Cavaco Silva, que tem o perfil de um líder, quis ser P.R. e como P.R. não pode liderar. Por isso adoptou o perfil de um paizinho protector, que dá conselhos e orientações, e se mostra pesaroso tantas vezes.
Não é mais a pessoa cumpridora e trabalhadora, o bom técnico que foi como P.M., embora lhe faltasse cultura literária, défice que os nossos intelectuais não desculpam e de que tanto troçaram a seu tempo. Continua com os jeitos de bom chefe, mas de família - de bom esposo, bom pai e avô babado.
Vê-se que é um Presidente preocupado, que se sente rodeado pelas hostilidades dos da maioria que governa, que vai tentando contemporizar, já que não pode bater com o pé ou com o punho ou com a porta, pois uma presidência é sempre uma presidência, ainda que de uma república de bananas (de importação, em todo o caso), como lhe chamam os donos dos pomares da nossa terra, invejosos dos que as produzem de facto.
Foi, pois, tentando ser persuasivo, que o nosso P.R., educadamente, pegou na palavra para incitar o povo português a não ir à praia ou para férias, antes de votar. O voto é fundamental, nada de praias, nada de férias no dia 7, das eleições europeias.
Lembremo-nos de que a Europa injecta dinheiro a curto prazo sobre nós – mais sobre uns do que sobre outros – embora isso nos endivide a longo prazo. Além de que nos fez parar, não para meditarmos e nos cultivarmos, mas para preguiçarmos ainda mais, fazendo-nos abandonar as courelas do passado e largar a pesca de mais amplos espaços, de antes da adesão.
Portemo-nos com civismo, vamos todos votar no dia 7, não façamos entristecer o nosso Presidente.

Os promotores do destino

Creio que é sina. Os escritores do século XIX bem se fartaram de criticar políticas e políticos, estes como dirigentes ineptos de um país formado por gente na sua maioria iletrada, pobre, e vergando a cerviz aos abusos do poder. O sentimento de injustiça que nos persegue é, de resto, tema recorrente na nossa literatura desde que ela se definiu como tal, e ninguém mais capaz que Camões para o explicitar:
“Quem pode ser no mundo tão quieto, / ou quem terá tão livre o pensamento, / quem tão experimentado e tão discreto, / tão fora, enfim, de humano entendimento / que, ou com público efeito ou com secreto, / lhe não revolva e espante o sentimento, / deixando-lhe o juízo quase incerto, / ver e notar do mundo o desconcerto?”
“Quem há que veja aquele que vivia / de latrocínios, mortes e adultérios, / que ao juízo das gentes merecia / perpétua pena, imensos vitupérios, / se a Fortuna em contrário o leva e guia, / mostrando, enfim, que tudo são mistérios,/ em alteza d’estados triunfante, / que, por livre que seja, não se espante?”
“Quem há que veja aquele que tão clara / teve a vida que em tudo por perfeito / o prório Momo às gentes o julgara, / ainda que lhe vira aberto o peito, / se a má Fortuna, ao bem somente avara, / o reprime e lhe nega seu direito / que lhe não fique o peito congelado, / por mais e mais que seja experimentado?” ....
“Deixo agora reis grandes, cujo estudo / é fartar esta sede cobiçosa / de querer dominar e mandar tudo, / com fama larga e pompa sumptuosa. / Deixo aqueles que tomam por escudo / de seus vícios e vida vergonhosa / a nobreza dos seus antecessores, / e não cuidam em si, que são piores.” ...
Mas o “Malhadinhas”, não é menos expressivo na forma como rasoira o estado de sítio em que sempre vivemos, ele próprio bom exemplo da camada populacional menos evoluída, e usando apenas a linguagem do seu entendimento, curtido por espertezas, afectos e as suas andanças de recoveiro amante do que supõe justo:
“Sabem os meus fidalgos, eu só queria ser rei um dia. Um dia não era cabonde; mas uma semana. Se fosse rei uma semana, afianço-lhes que mondava Portugal. Uma fogueira em cada oiteiro para os ministros, os juízes, os escrivães e os doutores de má morte. Para estes decretava ainda uma cova bem funda, com obrigação de cada homem honrado lhes pôr um matacão em cima. Uma choldra de ladrões!”
Aquilino Ribeiro escreveu “O Malhadinhas” nos anos 20, muito antes ainda da jurisdição governativa de Salazar de quem não gostava. Mas o seu conceito pessimista da governação e das classes liberais exploradoras já antes deste se revelava, prova de uma constância secular no desmando do nosso atropelo às regras de uma cultura humanista.
Salazar foi um estudioso, dedicado ao seu país, ele próprio intransigentemente avaro e mesquinho – consigo próprio – na forma como permitiu a pobreza e o atraso de uns, fechando os olhos e os ouvidos à ignomínia de outros, talvez por incapacidade de controlar todo um caudal de adeptos do maquiavelismo dos seus egoísmos de parasitas, poltrões e traiçoeiros, tão bem já definidos por Vieira na sua alegoria dos peixes.
Por tudo isso, a tal fórmula para “Como salvar Portugal”, tão em moda, me parece mais um meio bem intencionado de desperdiçarmos discursos bonitos mas inanes, enquanto se vão perpetrando cada vez mais crimes sociais, na permissividade e na impunidade.
Pondo a tónica na nossa “auto-estima”, quando a tragédia do desemprego alastra, querendo acentuar que “o que é preciso é...”, quando não temos meios para o ser, visto que tanto do nosso trabalho se pauta pela incompetência, desorganização, ineficácia, pela nossa impreparação e pelo desrespeito como norma, quando não temos esperança de vencer a crise na Justiça, que nos falta, na Política em que se brada muito na desordem, no Ensino, com educandos indisciplinados, desinteressados em se valorizar, destituídos os educadores de competências que tinham, com sobrecarga actual de inutilidades palavrosas desviantes do sentido real da sua docência, no Governo, enfim, em que parece não haver mais governo...
Salvar Portugal”, “auto-estima”, “optimismo”, balelas da nossa pseudo-eficiência, anestesia no nosso incumprimento.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Desenterrando memórias: José Saramago Prémio Nobel 1998

A sua obra ficcional forma panorama amplo de originalidade, humor satírico, informação livresca, agudeza psicológica e crítica, imaginação amplificadora, universos alucinantes, conhecimento humano, traduzidos num discurso desconcertante, pela irregularidade da sua estrutura frásica com a ausência da pontuação clássica, técnica que exige do leitor uma atenção permanente e participante na descodificação dos registos linguísticos – do narrador ou das personagens.
Como se este estilo “acumulativo” de registos, de Saramago, fosse símbolo da nossa época mediática, ruidosa e veloz, em que as vozes chegam e se impõem na força da sua oralidade, sem tempo para apresentações, ou para respirar pausadamente, e simultaneamente permitindo a percepção e desmontagem dos comportamentos e temperamentos das personagens, juntamente com o riso sardónico do seu narrador.
Dir-se-ia que, para além da vastidão de elementos culturais e de conceito que informam a complexidade da sua obra, esta deve a sua originalidade também à matéria-prima humana que nela se realiza através do discurso poderoso, na sua unidade estilhaçada em fragmentos semânticos a descobrir, bem longe da técnica do discurso semidirecto ou indirecto livre de Eça, que já no seu tempo constituíra original forma de expressão, sem nunca perder, todavia, o equilíbrio gramatical, nem a clareza, nem o destaque psicológico das personagens, com a ocultação do narrador.
Mas nestes séculos XX e XXI, cada vez mais marcados pelo tecnicismo, pela especialização, pela variedade, pela transformação, não espantam tais características de uma escrita exigente da participação do leitor, progressivamente mais apto, não só em consequência da ambiência de registos a descodificar que desde a infância o envolvem, como ainda pelo desenvolvimento dos estudos linguísticos e semânticos que possibilitam uma análise mais esclarecida de cada escritor.

domingo, 24 de maio de 2009

Um texto antigo de um livro actual

O texto “Obra de Bénard da Costa” de Manuel A. Bernardo postado no “PortugalClub” e evocando dados do biografado menos honrosos, mereceu, entre outros comentários, o de J. Pires, frontal e objectivo, conquanto tolerante e justificativo dos desmandos de uma revolução folhetinesca. Mereceu ainda o comentário corajoso do cap. J. Verdasca, lembrando como a história dos homens resulta, tantas vezes, de avaliações marcadas por uniteralidades, interesses, servilismos, subjectividades, cobardias, faltas de senso e de perspectiva sobre as consequências das acções por aqueles praticadas.
Vivi em África a tormenta dessa revolução folhetinesca, julgando ingenuamente que a minha voz dissidente poderia travar, juntamente com outras vozes dissidentes e corajosas, aquilo que constituiu cataclismo inesperado para quem fora feliz ou menos feliz na vida que construíra, em terra que julgava sua e para cujo desenvolvimento contribuíra com a sua participação profissional, familiar e de intervenção crítica em vários níveis da temática das suas experiências, transpostas em Jornal, mais tarde em publicação de Autor.
Do livro “Pedras de Sal”, de 1974, extraio, pois, um dos muitos textos que dessa ingenuidade resultaram, como complemento aos comentários feitos ao texto referenciado de Manuel A. Bernardo, reveladores de critérios de semelhante ponderação crítica, para, desta forma, recordar tempos passados de iguais ousadias, contra uma enxurrada palavrosa, num tempo de indefinição ainda, mas igualmente assustador, na reviravolta política em que se tornou:

“Sabujice e Traição” e Democratas
“Democratas de Moçambique em Lourenço Marques, na sua folha informativa nº 41, de 21/7, pronunciam-se a respeito do panfleto “Sabujice e Traição” de Neves Anacleto. Encimam os seus dizeres com o título “A senilidade ao serviço da reacção”. Parece que Neves Anacleto não é jovem como Democratas de Moçambique em Lourenço Marques, por isso, com a elegância própria da sua juvenilidade, chamam-lhe senil, sem entretanto lhe citarem o nome, não sei se por pudor se por juvenil falta de coragem.
Afirmam D.D.M.E.L.M.: “Apareceu à venda na cidade um panfleto que constitui o produto mais acabado da debilidade mental do seu autor, ao mesmo tempo que é também a mais recente e refinada manifestação de engenho “de” que as camadas reaccionárias foram capazes de elaborar, até este momento”.
A acentuada juvenilidade de D.D.M.E.L.M. fê-los cair numa contradiçãozita de certo peso: Parecem-me perfeitamente antagónicas as expressões “debilidade mental” e “refinada manifestação de engenho” atribuídas à mesma pessoa. Se o Dr. Neves Anacleto é um débil mental, como se saiu com tanto engenho? Se possui tanto engenho, como se lhe chama débil mental? Ficamos aguardando que o engenho refinado do Dr. Neves Anacleto lhe permita decifrar o enigma ou que a sua debilidade mental o torne indiferente a ele.
Insurgem-se seguidamente D.D.M.E.L.M. contra o “autor do panfleto mais os cérebros organizados das camadas reaccionárias” que se abalançaram a “imprimir cerca de 75000 exemplares de prospectos, ou seja, quase um prospecto por cada habitante europeu residente no distrito de Lourenço Marques, no qual fazem a apologia do obscurantismo, e cometem a mais perigosa agressão ideológica depois do 25 de Abril”.
No período acima transcrito salienta-se, além da inadmissibilidade da compra do prospecto por habitantes não europeus e até mesmo de outros distritos, o respeito com que se referem aos “cérebros organizados das camadas reaccionárias”. Entre esses inclui-se, evidentemente, o “autor do panfleto” que o fez com muito cérebro, reconhecem-no respeitosamente D.D.M.E.L.M.
Quanto à acusação de panfleto apologético do obscurantismo, eu não vi lá nada disso, confesso. Até – antes de o mandar para a família na Metrópole, no que fui imitada por imensas pessoas interessadas em alargar as possibilidades de difusão do prospecto por mais distritos, o dei a ler ao meu Salvador, para ele ficar mais ciente dos factos, pois o “Notícias” e a “Tribuna” só vêem os problemas de uma maneira e eu acho que a gente deve sempre admitir várias hipóteses para estudar bem as teses e as respectivas consequências, e foi por isso que dei a ler um dos 75000 exemplares do Dr. Neves Anacleto ao meu Salvador, para ele se esclarecer melhor e não se deixar influenciar pela hipótese e tese sem consequência do “Notícias” e “Tribuna”.
Creio ainda que D.D.M.E.L.M. se referiram com inveja aos 75000 exemplares publicados. Nesse ponto acompanho-os. Quem me dera idêntica saída para as minhas “Pedras de Sal”, mas reconheço o escasso poder de absorção do meu “sal”, resultante da generalização da juvenilidade actual.
Continua a folha nº 41: “Referimo-nos, como é evidente, àquele papelinho ridículo, criminoso, que anda a ser afanosamente distribuído, onde se incita a população a não ler nada de nada, a pedir a demissão mental de todas as ideias e a ficar indiferente ao que quer que seja que aconteça debaixo do seu nariz. Isto mesmo. Sem disfarces. É o fascismo, finalmente, sem máscara, depois do 25 de Abril”.
Se anda a ser afanosamente distribuído, não sei. Comprei o meu numa livraria, sem me afadigar. Mas cuido que nesse aspecto D.D.M.E.L.M. deveriam desculpar, faz parte do processo de politização, já com precedentes jornalísticos.
Onde se incita a população a não ler nada de nada” – devem referir-se, não vejo outra hipótese, à sugestão do Dr. Neves Anacleto de se boicotar a compra do “Notícias”, em virtude do seu actual carácter partidarista pouco esclarecido, ridículo e criminoso. Ficaram ofendidos D.D.M.E.L.M., pois pela primeira vez eles estavam a ser muito lidos (por não aparecerem os escritores anteriores, confinados, segundo consta, em “museus de cera”, a “fazer recortes”). Compreensível é este desejo dos democratas de assim se promoverem. Entretanto, admitem que a tudo o que estiver por cima ou longe do nariz dos leitores do panfleto, já estes não ficarão indiferentes. Só ao que estiver por baixo. Tão vasta influência do prospecto (logo acima e longe do nariz) constitui, pois, factor extremamente positivo daquele.
O último parágrafo não está ao alcance da minha compreensão reaccionária embora bem organizada, confesso-o modestamente: “Talvez o panfleto não tenha sido suficientemente rendoso (impossível, com tantos exemplares fabricados!) e os jornais e as revistas estejam a concorrer (indirectamente) para a sua venda (“quomodo”?) ao mesmo tempo que estão a dar um exemplo, notável, de civismo, e de desprezo (“senão” mesmo de compaixão) por um panfletário que caiu no mais degradante dos exercícios anti-democráticos: a calúnia, a estupidez, a cobardia moral, a distorsão intencional dos textos”.
Civismo e desprezo, não enxergo em que o mostraram os jornais e as revistas. Em todo o caso não o mostram D.D.M.E.L.M. com a sua folha nº 41.
Compaixão com 75000 exemplares em venda, também não acho. Cá por mim afigura-se-me pura inveja e nesse sentimento eu alinho pesarosa. No entanto, compreendo que, visto “Notícias” nem “Tribuna” publicarem os seus artigos, o Dr. Neves Anacleto andou muito bem em tentar a via do panfleto.
Calúnia em “Sabujice e Traição”? Conviria demonstrá-lo, são inadmissíveis afirmações levianas. Eu só lá encontrei de facto factos e creio que o meu Salvador também.
Estupidez? Nova contradição dos democratas, em relação ao “engenho refinado” atribuído respeitosamente ao Dr. Neves Anacleto no primeiro parágrafo.
Cobardia moral, isso nem por sombras. Pelo contrário! Pareceu-me – e a toda a gente com quem contactei a esse respeito – que o panfleto foi muito corajoso, pois se atreveu a contrariar os panfletos “Notícias”, “Tribuna” e quejandos, que são em maior quantidade, além de que diária ou semanal, não há que ter inveja por esse lado. Por outro, a sedução exercida por eles sobre as pessoas de menos coragem ou de muita rapidez de absorção doutrinária, é-nos revelada diariamente pelo “Notícias”, ansioso por mostrar resultados definitivos, e por esse motivo, maior foi ainda a coragem do advogado Neves Anacleto, opondo-se à absorção geral.
Quanto à distorsão intencional dos textos, acho demasiado erudito para o fraco valor ideológico dos mesmos textos.
Não estranhei o ataque ao Dr. Neves Anacleto. Só estranhei a demora desse ataque. D.D.M.E.L.M. estiveram sem dúvida a ganhar balanço para se manifestarem.
Nisso o pintor Quadros antecipou-se ontem na “Tribuna” onde publicou um poema revelador de profundo jeito para pintar, tal como nos seus quadros revelará possivelmente extremo jeito para poetar.
Sempre assim foi, a crítica literária em Portugal, não iríamos mudar com o 25 de Abril: o insulto baixo e soez, a sátira verrinosa e sem nível, jamais a discussão válida, com argumentos lógicos e serenos.
Neves Anacleto, que se intitula democrata (real), aponta factos e argumentos lógicos no seu panfleto, verdades incontestáveis. E porque o são, os democratas (irreais) não as contestaram. Limitaram-se ao insulto baixo e soez, que outra coisa não é acessível à sua refinada juvenilidade mental.”

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Os gestos da real grandeza

Habituei-me, na crise, a recorrer aos jornais gratuitos sintéticos, suficientes para a minha informação noticiarística também sintética, e, para meu recreio espiritual q.b., apenas às suas palavras cruzadas, por ter desistido do sudoku, que me faz entrar em despesas de borrachas, incompatíveis com aquela.
Foi assim que hoje, no Jornal Global, li a notícia de ontem sobre a comparticipação dos milionários alemães na extinção da crise, com 5% dos seus rendimentos.
Achei que nós, os da crise, não merecíamos tanto, mas senti-me grata, pois tenho a certeza de que se aplanará o problema de todos da UE, com tal bondade que vai gerar outros exemplos, não tenho dúvidas nenhumas. Cá no nosso país até já ouvi dizer que o Dr. Victor Constâncio, que tanto ganha, mais os da sua equipa, vão desistir do aumento que lhes estava destinado para este ano, e deve ter sido porque também ouviram a notícia que assim recuaram, que os exemplos superiores, sobretudo os de povos superiores, geram consequências positivas sobre o aperfeiçoamento espiritual dos povos inferiores.
A notícia especifica que o dinheiro dos milionários alemães pode ter n’importe quelle proveniência, pode ter sido herdado, ganho na lotaria ou nos negócios ou mesmo ter origem desconhecida. Como cá.
Mas lá, eles são pessoas informadas, que leram os seus autores, como o Rousseau, por exemplo, que nas suas “Confessions” conta pecadilhos de roubo e acusação que o fizeram arrepender-se e penitenciar-se por longos anos. Roubo mínimo, aliás, no caso do Rousseau, um simples laço que até era para oferecer à sopeirinha da Madame Warens, acusação que serviria para chamar a atenção daquela, em jeito talvez libidinoso que o Freud não deixaria de interpretar como só ele sabia, tendo tido, embora, excelentes seguidores. O certo é que toda a vida o pobre rapaz expiou o desacato da sua juventude, que teve como consequência a expulsão da triste moça do palácio, e a futura confissão do escritor, mais de enaltecimento próprio, é verdade, do que de auto-acusação vexatória.
Por saberem que é pouco ético ganharem muito quando outros andam às sopas, é que os milionários alemães se conluiaram, portanto, para revitalizar a economia, habituados que estão a trabalhar e a cumprir no país deles.
No nosso, onde não gostamos de confessar o que se nos afigura de inconfessável, e se trabalha e se cumpre de menos, e onde as sopas aumentaram na proporção do fortalecimento dos nossos milionários, atidos às origens menos confessáveis das suas fortunas, creio que nem o exemplo confessional do Rousseau serviria de romântico e cristão suporte, e menos ainda o exemplo dos milionários alemães, de solidariedade e desapego.
Até porque a nossa idiossincrasia traduz sempre uma profunda sensibilidade e um apego desvairado às coisas do nosso amor. Como no fado.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Prevaricações

Chegado via Internet, leio um texto de Santana Castilho desmistificando, com desassombro, o que este chama de “Ministério da Certificação e das Novas Oportunidades”, por conta da manipulação de certificados em hipotéticos cursos fraudulentos com que este governo promove a formação de quem queira tê-la agora, de mão beijada, por não a ter recebido antes, através de anos de esforço. Despudoradamente faz-se isto, e permite-se, com os governantes na impassibilidade e fanfarra governativa da sua maioria absoluta, com que desenvolvem tais fraudes perante um povo mendigo que estende servilmente o chapéu e não se revolta, naturalmente, com essas dádivas que não se esforçou por obter honestamente, ciente de que os exemplos escorrem de cima e de que tem direitos iguais, como lhe é martelado pelos partidos da nossa sensibilidade.
Deu-se, neste país, um caso grave de denúncia de uma professora de História que, em aula que foi gravada, por, ao que parece, ser useira e vezeira em linguagem destemperada, mostrou a brutalidade e obscenidade de uma condução de aula com miseráveis referências pessoais e ataque despudorado a pormenores de vida íntima dos alunos.
Suspendeu-se a professora, pura benesse, pois continua a receber os seus vencimentos, no ripanço do pseudo-castigo. Entretanto, alunos e pais de alunos se unem, bem orquestrados, no esforço para defender a professora, mostrando a empatia com o Ministério que promove a formação e dá diplomas sem exigir aulas, após aviltamento prévio, largamente perpetrado, da imagem dos professores que não se parecem com a tal professora de História, ou, mais precisamente, da história.
Prepara-se a condenação da aluna que teve o arrojo de gravar a aula, no proibido instrumento do delito, para justificar aos pais as razões das suas acusações anteriores, perdida a cabeça, por, honestamente, não encontrar outro meio comprovativo da sua verdade.
A nossa Justiça talvez condene, zelosamente, a aluna, por conta do instrumento proibido, com o testemunho abonatório dos alunos e encarregados de Educação, no nosso país sem educação, mas com a subserviência perante o poder, que lhe vem de séculos, ao jeito oportunista que tão bem nos define.
Os olhos vendados da imagem da Justiça pediriam isenção. Pediriam Justiça. Mas diz-se que não temos.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

“Dá-se-lhe uma e promete-se-lhe outra”

Era assim que a minha prima Celeste me encorajava na tarefa de passar a ferro a roupa da família, no tempo em que eu aliava as vastas tarefas domésticas aos não menos ponderosos trabalhos da minha participação no mundo profissional. O ferro! Que ferro! “Ó menina, não te canses tanto! Dá-se-lhe uma e promete-se-lhe outra”.
No início era mais escrupulosa. Os lençóis! Dobrados em dois e passados. Depois em quatro, nova passagem, e o tempo ia escorrendo no cansaço do corpo, que pretendia fazer bem aquilo a que não estava habituado, por ter tido quem lho fizesse. Agora tenho em frente, como imagem da minha identificação, embora sem a garrafa do vício, o quadro de Degas "Les Repasseuses". Mas sou menos preocupada com os vincos da roupa. Penso nas mulheres que trabalham e que aproveitam os domingos para pôr o trabalho da casa em dia, quando não, também, durante a semana. Devem saber defender-se, contudo, reduzindo os gestos, à maneira da minha prima Celeste. Ou então, recebendo a colaboração dos maridos, neste século da compreensão e da grande solidariedade conjugal, por conquista dos nossos direitos.
Mas a minha amiga das compras e dos cafés é muito irónica, vê-se que também não alinha nas tarefas caseiras repetitivas, e nunca perde a ocasião de explodir em rebeldias contra as roupas: “Como é possível que no século XXI ainda tenhamos que passar a ferro?” O problema de deixar acumular! Não passou a roupa anterior e agora tem lá mais. Não me ofereço para ajudar, pois também sou das que acumula.
Virtuosamente lembro os casos de real infelicidade que grassam por aí, e nos envolvem, através dos sons e das imagens, mais aqueles com que topamos no dia-a-dia. “Pois é, Nosso Senhor pode castigar-nos!” – confirma, com docilidade, embora lembre, seguidamente, a sua própria dose de castigos vividos, no receio de que não se tenham esgotado ainda. Mas todos vivemos nesses receios, para isso somos humanos, de curta passagem no tempo, por consequência, e num espaço físico que transmite pouca esperança de melhoria, excepto para os habituais, que nem precisam dela, por conivência e boa convivência com o Nosso Senhor.
Referi de novo o Candide, amistosamente. Os seus trabalhos foram bem mais dolorosos do que os nossos, embora com pequenas abertas, e nenhum deles referia o ferro da roupa, prova de que outros ferros foram, para ele, de efeito mais doloroso.
Quanto a nós, mulheres que passam, temos sempre o recurso da minha prima Celeste: “Dá-se-lhe uma e promete-se-lhe outra”.
Afinal, é também esse o recurso do nosso funcionamento a tempo inteiro, como nação de intermitências de actuações e adiamentos de conclusões. Com vincos, atrapalhadamente.

terça-feira, 19 de maio de 2009

Os “faits-divers” da virtude docente no campo da sexualidade juvenil

Estou ouvindo uma gravação. Duma professora inconsciente de que está “sob escuta”, através duma gravação feita por uma aluna, cuja mãe lhe colocou na mala o gravador, caso grave, a fim de poder incriminar a professora de História, que há anos se entretém com lições que entende mais importantes para a integridade moral dos seus alunos do que as histórias da História, esta geralmente com conteúdos pouco dignificantes, tais como violências, traições, selvajarias, manipulações do poder em proveito próprio, manejos das ambições, conquistas, destruições, flagelos, crimes cometidos por fanatismo ou crueldade... Mas a par disso, convenhamos, muitos actos de heroicidade, muitos exemplos de coragem, muitas edificações da inteligência e da criatividade humanas, tudo, pois, feito de erros e de virtudes, com que evoluiu a sociedade humana, e que não se deveria esquecer nunca, para aprendermos com os erros do passado, em função de um melhor futuro.
Não, a professora – que exige o tratamento de doutora - não devia ter descurado a matéria da sua disciplina, por muito imprópria que lhe parecesse na formação discente, talvez zelosa intérprete da filosofia da solidariedade democrática para com os povos oprimidos, ao longo dos tempos, embora não se compreenda por que motivo a escolheu para a sua docência. Ao ocupar-se tão insistentemente das questões da virgindade – sua, em exibicionismo despudorado, e dos seus discípulos em pseudo-interesse formativo, segundo propostas de educação sexual exigidas freneticamente pelas pedagogias da liberdade e da libertinagem actuais, enquadra-se na ideologia que preside ao amontoado de misérias morais em que a nossa sociedade se espelha, quer através da variedade de crimes a cada passo descobertos, quer através de programas sórdidos que os meios televisivos e informáticos difundem, sem controlo, ressalvando, evidentemente, os seus aspectos positivos, que suplantam aqueles.
Não, a professora, que é mãe de família, excedeu-se no seu zelo e envergonhou a sua classe e o seu país. Desrespeitando-se a si, desrespeitando os seus alunos, é um exemplo a condenar, tais como aqueles casos de pedofilia de que tanto se falou e se silenciou, com arremedos de evocação a espaços, para fingirmos que nos preocupamos e que existe justiça no nosso país.
Mas como as vítimas da pedofilia vêm de lugares de miséria, como órfãos ou abandonados, breve readormecemos tranquilos sob novo silenciamento, para não desfeitearmos quem nos governa, e que protege aquele, por razões do seu só entendimento.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

A crença no milagre

Falámos sobre rituais. Rituais religiosos que a nossa parcimónia de entendimento rejeita, em rebeldia que vem dos primórdios da nossa adolescência. Complementámos, é certo, os nossos protestos, com referências eruditas, recordando a discussão altissonante entre o padre Amaro e o cónego Dias, a respeito do tipo de reverência à cruz - simples ou profunda - na sacristia e durante a missa - banalidade que, pela voz sardónica de Eça de Queirós, vem esmiuçada em vários doutores da Igreja, segundo a opinião do padre Amaro expressa triunfalmente perante a sua amada Ameliazinha, o cónego Dias em knock-out argumentativo.
Foi a propósito das vozes de falsete com que a maioria dos padres entoa a sua missa, pela rádio, aos domingos, e não só.
Achámos que esses rituais, formalistas e teatrais, se desviam da simplicidade que deveria presidir à utilização de uma qualquer religião, e logo se confrontou o nosso catolicismo com o protestantismo, mais concordante este com a pureza do Cristianismo, na simplicidade, harmonia e compreensão do acto praticado, pelo conhecimento da Bíblia e dos Evangelhos, que não se exige tanto entre nós.
Já, de resto, Antero explicara, nas “Causas da Decadência dos Povos Peninsulares”, que uma das causas dessa decadência fora, precisamente, a transformação da organização católica, pelo Concílio de Trento - o protestantismo tendo seguido a Reforma, o catolicismo dos povos peninsulares tendo seguido a Contra-Reforma que os fez sujeitarem-se ao seu carácter “dogmático, autoritário, despersonalizante, desinformado, hermético, fechado ao movimento cultural dos outros povos europeus”.
Nós precisamos de procissões com crianças mascaradas de anjinhos, que sirvam para fortalecer visualmente a convicção do povo sobre as realidades ou irrealidades esotéricas, anuladas as leituras que poderiam fortalecer mais racionalmente a nossa fé. E daí, as vozes cantadas, os gestos medidos, a teatralidade, a falta de naturalidade e de simplicidade com que os sacerdotes impõem os seus dogmas aos seus fiéis – rebanho obediente, a quem o milagre sensibiliza.
A minha amiga não acredita no milagre, nem sequer no das rosas, tão expressivo de santidade, desconstruindo as notícias da história milagreira com impertinentes contraposições detectivescas.
Mas eu, mais crédula, acho que estamos todos a precisar de mais um milagre, entre os muitos que ocorreram ao longo da nossa história e não se me dava que ele sucedesse, à falta dos jazigos de petróleo definitivamente arrumados. Lembrei até que poderia assim ser considerado o da senhora que veio cá para depositar milhões na nossa banca e que se desvaneceu sem deixar rasto. Acho que foi isso porque a banca, que tem os seus próprios milagres, correu com ela, sem nos dar cavaco, por não precisar de favores alheios. Mas bem poderia partilhar.
Por isso eu insisto que nos convinha a presença da tal senhora dos milhões, mesmo maculada, e não seria para dez aeroportos de Lisboa ou cinco linhas de combóio de alta velocidade, porque não precisamos de tantos. Mas as sobras, sem milagre, não iriam cair no saco roto dos necessitados. A banca se encarregaria disso.

sábado, 16 de maio de 2009

Flores, folclore, cultura

Pôs-se o problema da cultura. Extremavam-se as opiniões. Houve quem achasse linda a festa das flores na Madeira, assistida por muitos turistas bem dispostos, houve quem objectasse que melhores ainda eram os Carnavais do Brasil ou de Veneza, como elementos de profunda criatividade ou cultura, e geradores de financiamento turístico, houve quem achasse um encanto o folclore português, e a diversidade das suas danças e cantares que opunham minhotos a algarvios, pauliteiros a fandangueiros, cantares alentejanos aos da Beira, os fados de Coimbra aos de Lisboa. Também se falou de gastronomia como elemento de cultura, factor de distinção regional. E de tauromaquia.
E os doces, os doces que tanto da tradição religiosa exemplificaram, provando como os mosteiros não eram só retiros de mortificação e dedicação à glória do Senhor, bem compensados os padecimentos com as guloseimas da tradição e do regalo cristão das doces freirinhas.
Oh! os ovos moles de Aveiro, oh! os travesseiros e as queijadas de Sintra, oh! os Dons Rodrigos algarvios! e os pastéis de Belém e também as queijadas de cerveja de lá ao pé! E os pastéis folhados de Vouzela! Nessa cultura, sim, eu alinho com gosto!
Nas touradas, não alinho. Já dizia o meu pai que a tourada é um espectáculo desleal e indigno de gente civilizada, no confronto desigual entre o homem e a fera. Há quem lhe sinta a beleza, contudo, talvez pelos meneios elegantes dos toureiros e dos cavalos. Para mim, ele justifica a insensibilidade com que enjaulamos os animais que vão para abate, além de outras brutalidades da nossa cultura.
Mas cultura é, em minha opinião, sobretudo algo que nos levasse a respeitar o civismo e as pessoas, as obras arquitectónicas, picturais e todas as que resultaram da evolução intelectual e da modernização gradual dos homens, e nos tornasse a nós um povo apto, dedicado ao trabalho e não sorna e desleixado, um povo a quem os poderes sucessivos da nossa história tivessem permitido conservar os dentes da nossa vergonha nacional, mais a capacidade de ler e de admirar quem escreveu e contribuiu para a evolução das ideias. Algo que nos levasse a desenvolver o turismo pela conservação dos nossos museus, criando cicerones capazes e não, como eu já vi, ou os sem viço, desfiando, monocordicamente, os pobres dados do seu pobre saber, ou os que fazem do seu trabalho uma arte de gozo, misturando dados circunstanciais da sua história a relevo anedótico, sem respeito nem amor pela arte nem pela sua profissão.
Mais do que a procissão das lindas flores na Madeira, mais do que as nossas marchas populares, como eu gostaria que se fizessem entre nós espectáculos idênticos ao de Julien Lepers, cujo programa – Questions pour un Champion - bem disposto, mas sem o folclore subjectivo das intervenções dos nossos apresentadores em programas similares – tanto tem contribuído para a difusão cultural, com incidência sobre milhões de assistentes que, em França, Bélgica, Suíça, criaram clubes idênticos, que participarão anualmente no programa. Tal como se fazem os campeonatos entre as escolas universitárias, ou até entre os juniores! E é belo assistir à participação e alegria inteligente dos jovens estudantes, batendo-se por alcançar o troféu final da Vénus de bronze, mas alcançando, sem dúvida, sempre inúmeras obras para seu enriquecimento cultural.
Ultimamente, contudo, o sentido do termo cultura desviou-se por caminhos ínvios, de tal maneira que, para elevarmos o nosso nível cultural no confronto com os outros povos europeus, se fabricam à pressa diplomas de cursos de pura mistificação, atentatória da nossa dignidade como povo, e atropeladora de todos os valores, sobretudo dos que seguiram honestamente os seus cursos. É a nossa cultura de pacotilha, a que nos permitiu atropelar as regras da língua, com um Acordo Ortográfico de pacotilha.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Os excursos da nossa governação


Venho agora das compras, onde costumo ir com a minha amiga Ilda. Ainda ontem, vergadas ao peso dos sacos do Pingo Doce, considerávamos quão pouco tempo nos resta para entrar no rol das octogenárias, e interrogámo-nos sobre a hipótese de nessa altura os ossos – mais os meus do que os dela - ainda nos possibilitarem os odisseicos excursos com os sacos do nosso descontentamento.
Nem sempre, contudo, mergulhamos em coisas comezinhas. Também a intelectualidade despretensiosa esfuzia nos nossos discursos de exaltação. Como ela está sempre em protesto, já que lê mais jornais e ouve mais programas do que eu, que sou, aliás, de índole mais passiva, dá-me muitas vezes o mote para eu esbater ao computador o nervoso causado pela nossa actuação política interna e externa. Aliás, nesse ponto, também devo prestar homenagem ao meu marido que, esse sim, lê as notícias à boa maneira portuguesa - e não só aos domingos como referiu Sttau Monteiro, enquanto a mulher se esfalfa nas lides que lhe foram distribuídas, por debilidade - mas diariamente, que diariamente compra o Diário de Notícias e aos fins de semana o Expresso, inspirando-me temas e sugerindo as soluções do nosso bom senso comum de dois.
Mas hoje, as nossas conversas ao café, já arrumadas as compras na bagageira, versaram, entre outras, sobre os motivos do desacordo da Ilda - o nosso Presidente da República e os seus discursos de “Josezinho” simplório, que explica o seu “emploi du temps” nos passeios à Turquia onde já em tempos tinha ido com a família e os amigos, e onde, enquanto ele se entrega, no presente excurso, às altas reuniões de negócios turcos a obter, permite à esposa que faça as compras para os presentes para a família, não pagas com multibanco, note-se, mas mesmo com euros à vista, expressivos de comedimento económico e oportuno sentido da crise.
Eu, que em tempos admirei bastante o Dr. Cavaco Silva, quando ele era mais discreto em referências pessoais, logo o defendi, todavia, e achei que, pelo contrário, os excursos dele não diferiam dos nossos, sobretudo no que concerne o viajar de carro e o carregar dos sacos, que até nos aproximava humanamente da nossa Primeira Dama, a qual também os carrega, fazendo reverter sobre nós uma aura nobilitante, motivo mais que suficiente para a nossa ufania.
Quanto aos excursos do Engenheiro José Sócrates à Madeira, igual motivo de condenação da minha amiga, por lhe parecer humilhante a sujeição do nosso Primeiro Ministro a alguém que tanto o tem desfeiteado, encontrei igualmente motivos para a sua defesa - o profundo amor à Pátria que revela, pela difusão da cultura magalhanense, e pelo estreitamento dos laços que não deixarão de se verificar, eliminando tensões, certamente com a oferta de lindas flores do jardim madeirense, que vão, sem dúvida, contrapor-se aos sapos vivos que o nosso corajoso Ministro vai ter que engolir no seu excurso insular. O que lhe vale é que ele não se rala muito. Ou não se chamasse Sócrates.

Adivinha: Quem sou eu?


Resposta ao Sr Cap. José Verdasca que, no “Portugal Club” escreveu um bonito texto que não resisto a transcrever para o meu blog, mas não por ser como a rã da fábula, que quis ser do tamanho do boi e tanto inchou que rebentou. Porque o que sou, só alguém com qualidade e isenção o definiu, que eu, afinal, também penso de mim mesma o mesmo que tão primorosamente foi escrito. E que nunca ninguém reconheceu, a não ser esporadicamente. E eu sei entender porquê.

O texto do Senhor Capitão José dos Santos Verdasca:

“O ESTILO BERTA BRÁS”
“Acabo de ler o último texto aqui postado e assinado “Berta Brás”. Quando terminei, senti necessidade de o reler lenta e atentamente, como se deve ler o “La Fontaine” que cita, para melhor entender a “fábula” que explicita e também - e principalmente – melhor me aperceber do conteúdo das “entrelinhas” que evita, mas que estão lá bem patentes, talvez escritas “entre dentes” mas verdadeiras e “quentes”, o que significa perto do alvo, onde se refugiam aqueles que se tentam pôr a salvo. De qualquer modo, o que pretendo dizer é que aprecio, não apenas o estilo, que é forma, mas principalmente o “sumo”, o miolo, o conteúdo, a revelar muita informação, vasta instrução e muita educação. Não tendo a honra de conhecer a senhora, mas imagino-a uma lady prevenida, viajada e vivida, quem sabe mesmo sofrida, cujos inteligentes textos são lições de vida, espelhos de ética, “tratados” de pedagogia. Pelo menos assim me parecem.
Ainda não tenho a certeza se deveria escrever este texto, temendo estar invadindo a privacidade da senhora, mas não resisti ao impulso de chamar a atenção para a primorosa redacção, objectiva mas sensata, incisiva mas cordata, informativa mas – por vezes – “abstracta”. Seja-me – pois – perdoado o atrevimento, tendo em conta a boa intenção, apesar de, como diz o aforismo – de boas intenções estar o inferno cheio. Termino parabenizando a senhora Berta Brás, pelo que de bom nos dá, com a sua frequente aparição neste PortugalClub, que já foi apelidado “INCULTO”, apesar de apresentar belíssimos exemplos de BEM DIZER, BEM ESCREVER, BEM REDIGIR.
Cordialmente JVerdasca “


À laia de agradecimento ao sr. Cap. JVerdasca, começo por transcrever um texto de um livro meu “Anuário – Memórias Soltas” – que lhe dará um retrato genérico de uma mulher que nunca foi “lady” (mas que gostava de o ser), que viaja mais pela leitura ou no sofá frente à TV, do que pelo mundo, que foi professora, é mãe de cinco filhos e cinco netos, e que gosta de rir, apesar de sofrer, como toda a gente sensível aos males. Espero que o texto do meu “Anuário” o faça rir também... e que não perca o fôlego, se o ler depressa, devido ao estilo corrido:

8 DE MARÇO

Para a minha Irmã


O dia de hoje foi muito cheio de alegrias porque se tratava do DIA MUNDIAL DA MULHER que a ONU decretou para 8 de Março e logo de manhã enquanto preparava os tachos para o almoço ouvi falar nele numa estação emissora com muita música.
Disseram coisas muito gentis, referindo-se especialmente às mulheres que trabalham dentro e fora de casa e também às mães e até interrogaram uma futura mãe que ia ter um par de gémeos e estava contente com isso, mas se fosse na China não devia sentir-se assim tão contente pois dizem que agora há lá controlo de natalidade e só é permitido um filho por casal. Felizmente aqui não há controlo nenhum e por isso a senhora interrogada se mostrou tão eufórica que nem deu pela greve dos nossos transportes que só essa empanou um pouco o brilho do nosso Dia Mundial das Mulheres pelo menos o das futuras mães menos eufóricas, obrigadas a andar a pé.
Como mulher mãe e trabalhadora hoje fiquei pois muito contente porque os locutores dirigiram saudações sobretudo às mulheres que trabalham e vi assim compensados os meus esforços. Percebia-se que eles também estavam muito satisfeitos por poderem reconhecer o mérito das mulheres que trabalham dentro e fora de casa e nem só uma vez se referiram às mulheres fúteis que passam o tempo a comprar vestuários e jóias para elas, a alindar o corpo e a divertir-se sem pensarem em trabalhar. Até achei que os locutores exageraram um pouco nos elogios às mulheres que trabalham ignorando totalmente as que só se enfeitam e divertem, porque a verdade é que eu sempre pensei que eram estas as preferidas do sexo masculino, pois nos anúncios da televisão a gente vê que quanto mais bem vestidas e perfumadas andam as mulheres mais eles ficam seduzidos e até vão contra os vidros tal a distracção em que os põe a elegância feminina.
Depois, à noite, na televisão, também mostraram as lutas das mulheres pela conquista dos seus direitos já desde o século passado e apresentaram marchas nas ruas de uma cidade europeia com mulheres empunhando cartazes e gritando, que não se pareciam nada com as mulheres dos anúncios a quem os homens oferecem flores quando usam perfumes e mais uma vez me congratulei por ser tão trabalhadora, pois pertenço ao grupo das mulheres que hoje foram referidas pela rádio e tevê e os jornais com muitos elogios mesmo sem termos empunhado cartazes.
Há quem diga que os homens só têm a ganhar com o trabalho das mulheres dentro e fora de casa, mas quanto a mim não foi por esse motivo que nos elogiaram tanto mas sim porque eles realmente nos acham boas colaboradoras e não houve nenhum paternalismo na maneira como o reconheceram posso garantir porque ouvi tudo enquanto tratava dos tachos e até acharam que a ONU também devia decretar um Dia Mundial dos Homens para haver igualdade de direitos, o que me pareceu muito justo pois sempre discordei das desigualdades sociais mas já soa por aí que a ONU vai decretar esse dia para os homens não se sentirem tão marginalizados na questão das comemorações embora eles possam participar nas do Governo aonde exploram os cargos quase todos mas uma comemoração a mais só lhes vai fortalecer o sentido da justiça por isso a ONU vai acrescentar o Dia do Homem à Declaração Universal dos Direitos como já o fez para a mulher que não é mais do que ele para ter um dia assim comemorável isoladamente.
Há também quem diga que os homens gostam muito que as suas mulheres trabalhem dentro e fora de casa para efeitos de maior equilíbrio orçamental e alimentar, mas que realmente quem eles procuram para o equilíbrio amoroso - porque o homem não vive só do alimento - são as mulheres bem vestidas e perfumadas que têm mais disponibilidades nesse campo por falta de trabalho.
Mas como nem os locutores nem os jornalistas se referiram a esses casos, penso que as pessoas que dizem isso são mal intencionadas e deviam mudar de opinião depois de terem ouvido os louvores como eu ouvi às mulheres trabalhadoras no Dia Mundial das Mulheres decretado pela ONU para hoje oito de Março.

1984

Talvez o Sr. Casimiro Rodrigues não se importe de postar no seu PortugalClub este texto já antigo mas, afinal, sempre actual na temática de um feminismo sem ilusões.
Quanto ao seu texto, Sr Cap. JVerdasca, é com gratidão que lhe respondo. O reconhecimento das qualidades alheias não é muito comum. Um espírito generoso e sem “parti pris” soube reconhecer as minhas. Do coração lho agradeço.
Berta Brás

quarta-feira, 13 de maio de 2009

“Estão verdes”

Dois sentimentos opostos se me albergaram no espírito, ao ouvir hoje o noticiário das treze: de alegria e de tristeza. Alegria, por verificar que afinal não há grande diferença entre os homens, quaisquer que sejam a sua nação, credo político ou religioso, bem-estar ou penúria material ou intelectual, e que foi ingenuidade minha supor o contrário. Foi isso quando ouvi que os participantes da governação inglesa todos eles abusaram dos dinheiros públicos para refazer as suas piscinas ou viajar na Terra. Tal como os nossos, e isso me fez regozijar-me por não sermos únicos nesses actos reprováveis, segundo o meu conceito, que reconheço agora bastante rígido, porque os povos com mais posses materiais e espirituais os cometem também.
No entanto, a esse sentimento positivo para a minha auto-estima, em que as psicologias de agora fazem tanto finca-pé, seguiu-se, de imediato, a reacção oposta, de tristeza, confesso que acrescentada da negra inveja, porque alguns dos ministros e deputados não se ralaram nada com as acusações e prometeram desportivamente devolver os dinheiros usados indevidamente, que no seu caso foi de libras, por conservadorismo, orgulhosamente britânico, de não adesão aos euros da uniformidade continental.
Os nossos do governo e seus aderentes, que também sempre usaram e abusaram dos tais dinheiros públicos, como se tem visto ao longo destes anos todos, não só na sua envergadura exterior bem apessoada, como na frota transportadora topo de gama com que o governo lhes complementa o vestuário e a distinção, como também nos tais arranjos domésticos, ou nas passeatas pelo mundo que fazem, ou mesmo na deposição dos ditos dinheiros, de que tanto se fala, nos tais sítios paradisíacos para a fiscalidade, pois os nossos não prometem devolvê-los, sem desportivismo nenhum, como os seus irmãos em competências, do governo britânico. Vê-se que o dinheiro é o grande motor das suas ambições e têm razão nisso, mas deviam reconhecer o erro da sua extorsão e não o fazem, o que me entristece e envergonha.
Por isso olho com pesar as figuras sorridentes dos outros, tal como a raposa que não pode apanhar as uvas da latada, e limito-me a justificar o facto com os cães da desculpa raposina. Não são para nós gestos assim.

Zelo

Trata-se de uma ilustre história nossa, que me traz à ideia mais uma fábula, tanta é a multiplicidade de fábulas do La Fontaine com aplicação à nossa causa. Mas suponho que às dos mais também, pois na questão da originalidade só lá pelos séculos passados é que se nos pôde alcunhar de pioneiros. Agora, pelo contrário, até costumamos posicionar-nos modestamente nos últimos lugares das listagens sobre as coisas positivas.
Esta é, assim, a história de seis cavalos puxando um coche penosamente por uma ladeira acima, bem suados e babados, que o calor era “de ananases”, como o definiu Eça um dia, diante do Fradique Mendes, a quem queria agradar usando termos do reportório fino e só lhe acudindo as sordidezas da gíria. Também o caminho era árduo e poeirento, impróprio para as patas delicadas dos cavalos da corte, e assim o consideraram o padre e as damas do seu transporte, que até desceram do coche para aliviarem os cavalos do seu excesso de peso. A mosca quis ajudar nesse lance e picou, picou, em azáfama e num zumbido bem de mosca, mas quando chegaram ao cimo da ladeira embandeirou em arco, considerando-se a promotora do êxito da viagem e pediu a paga aos cavalos.
Também por aqui há disso, veja-se o caso Felgueiras, veja-se o caso Freeport, vejam-se outros mais. Zeloso e amigo, o sr. Procurador do Euro-Just diz-se que se apressou, qual mosca zelosa, a avisar no primeiro, a ameaçar, no segundo, e assim a Justiça se fechou em copas, deixando fugir inicialmente a Felgueiras do caso Felgueiras e preparando-se para protelar e mesmo encerrar o segundo caso, segundo consta, por subentendidas sugestões de pressão para que tudo ficasse em pratos limpos, apagando os alvos importantes de suspeitas, e deste modo aplanando o caminho árduo da governação dos nossos governantes, autárquicos ou ministeriais, que todos têm as suas mais-valias, e se propõem prosseguir em frente, na sua ladeira penosa, bem escudados pela mosca.
O Senhor Procurador, eficiente nos avisos, não deixará de exigir a sua paga, à semelhança da mosca, e não terá a condenação de que agora se fala. Se a tiver, outro cargo superior ao de agora lhe será ofertado e este caso da pressão - existente ou não - é mais apenas um desvio ao caso principal que convém arquivado.
Os senhores jornalistas também deveriam ser menos metediços, pois igualmente lembram a mosca. Não sei se se trata de zelo expurgativo moralizador o deles, se de zelo sensacionalista, de efeito lucrativo para a sua imprensa. Há muito poder, no quarto poder. E nem sempre pelos melhores motivos.
Mas os processos que o seu zelo investigador vai despoletando arrastam-se e arquivam-se, por falta de provas ou por excesso de tempo decorrido e chegamos sempre ao fim da ladeira, embora cada vez mais suados e esgotados. Os outros poderes também são bons, não tenhamos dúvidas disso.
A nossa vinha, ao contrário da de Cesário, é que já não “verdeja vicejante”, está cada vez mais ressequida, porque o nosso tempo se foi escoando com os tais casos da nossa governação, que brotam como cogumelos e que impõem os afazeres de muitas moscas, para os sanar e de muitas pagas para as honrar.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

“Leva a sua palhinha”

Era com estes discursos trocistas dos nossos intelectuais contra a burguesia trabalhadora que nos habituámos a desvalorizar o trabalho. Agora, como a cigarra do La Fontaine, dançamos na corda bamba.
É muito bonita a canção da Amália, muito expressivos os versos de Alexandre O’Neill: “Minuciosa formiga, / não tem que se lhe diga: /leva a sua palhinha / asinha asinha. “Assim devera eu ser / e não esta cigarra / que se põe a cantar / e me deita a perder. “Assim devera eu ser / de patinhas no chão / formiguinha ao trabalho / e ao tostão. “Assim devera eu ser / se não fora não querer.”
Trabalhar não quisemos, não queremos mais. Conjuntos cantantes temos muitos, boas cantadeiras e bons cantadores também. Mas não se consegue ensinar mais os nossos alunos que é preciso trabalhar a sério. Ou seja, agora são eles que ensinam os seus pais e os seus professores que não estão para isso.
Também, é certo, porque a sociedade lhes diz frequentes vezes que não poderão competir com quem absorve vencimentos resultantes de injustiças, fraudes e espertezas. Por isso absorvem outros fumos do seu saber fácil e atacam noutras frentes que lhes podem ou não render a subsistência que pretendem.
As pessoas vivem assustadas, dizem titubeantes à televisão que o bairro de Setúbal onde se incendiaram carros e cometeram muitos mais desacatos que ainda não foram sanados, por muito que a polícia se esforce, não reflecte bem o que por lá se passa. A maioria dos habitantes é pacata, a miséria é que, alastrando, gerou toda essa criminalidade, apesar de o nosso Primeiro Ministro afirmar exaltadamente, após o que aconteceu no bairro da Bela Vista, que “nos países democráticos não se ataca a polícia”, o que é rotundamente falso, como foi demonstrado, além de revelar oclusão da sua responsabilidade nesse alastrar do crime.
Pois foi. O trabalho que fez elevar socialmente alguns dos cidadãos, pelo estudo, pela eficiência, pela previdência no aferrolhar, foi menosprezado pelos filhos dessa burguesia trabalhadora, os quais frequentaram universidades e leram os filósofos, e se habituaram, ingratamente, a pôr a ridículo os seus progenitores laboriosos que lhes pagaram os estudos.
Por isso, porque gostamos muito das temáticas altruísticas e depreciativas da materialidade, sinónima de boçalidade, apesar das múltiplas provas do inverso, até mesmo entre nós, embarcámos todos muito bem nas normas da U.E., que nos mandaram deixar os campos em pousio. E as matas também.
E estamos na altura dos fogos ateados pelas mãos criminosas, vamos recomeçar a arder, que o verão está a chegar e as nossas matas estão facilmente inflamáveis, pelo descanso em que vivemos, deixando-as entulhar-se.
Muitos dos delinquentes que defendem a sua reputação por conta da falta de trabalho, poderiam ser empregados nas matas, limpando-as e ganhando para a sua subsistência. Era uma medida que talvez ficasse menos dispendiosa do que o apagamento posterior dos fogos e os julgamentos de farsa dos incendiários.
Sr. Primeiro Ministro, providencie para evitar mais essa catástrofe do Portugal a arder. Dê trabalho aos delinquentes, mande-os limpar a mata.
Asinha, asinha, antes que seja tarde demais.

sábado, 9 de maio de 2009

Radars humanos precisam-se

Acode-nos a ideia de uma Polícia Secreta, como antigamente havia. Chamavam-lhe PIDE, “de má memória”, como convém apodá-la, para não sermos nós outros apodados de pactuantes com o sistema que a introduziu, embora nos pareça que se deveria render homenagem a quem possibilitava o sono mais tranquilo aos cidadãos da altura.
Dizíamos, pois, que uma Polícia Secreta nos tempos presentes, que ajudasse a desmantelar as redes disseminadas de banditismo que tanta instabilidade social provocam, seria uma medida muito útil. Não direi favorecedora da nossa democracia, longe disso. Devemos sempre acarinhar a liberdade sem peias que pauta o nosso sistema democrático.
Como pessoas esclarecidas e amantes de uma ideologia igualitária, cujo caminho nos foi primitivamente aberto pelos revolucionários franceses, devemos apoiar a democracia com todas as veras, apoio que nos possibilita uma defesa solidária e fraterna dos mais desfavorecidos - e mesmo dos mais favorecidos - e uma abertura indescriminada de fronteiras a todos aqueles povos que nos procuram, como se tivéssemos muito que lhes oferecer, sem previamente estabelecermos “numerus clausus”, de contenção – agora chamam-lhe "quotas" - para não sermos apodados de racistas.
Os bandos de gente que provoca distúrbios, que assassina e assalta e furta e mata os próprios polícias, com as reportagens jornalísticas gravando, ali na hora, os assaltos e as frases vociferantes das meninas rebeldes - mais as do sul - vomitando ódio e afirmando com arrogância que ainda deviam ser mais os polícias mortos – meninas e meninos rebeldes e insolentes, que os nossos professores têm que suportar nas suas aulas, porque não existem mecanismos de expulsão para o sul, a nossa Educação compactuando temerosamente com o sistema da generosidade democrática, para que o Estrangeiro nos olhe como povo evoluído – pois esses bandos de criminosos parece pedirem o estabelecimento de uma Polícia Secreta que se infiltre disfarçadamente nas redes e previna o crime.
Creio que outros povos civilizados o fazem. Doutra forma, não se abortavam, entre eles, tantos dos ataques terroristas. As nossas PSP e GNR também vão remediando alguns desaires desses e desmantelando o tráfico de drogas, disseminado pelo mundo, muito dele por cá, e até arriscando as suas vidas na tentativa de combater a violência detectada.
Mas a miséria é muita, a falta de trabalho favorecendo-a, e a miséria moral também. Só, de facto, uma Polícia Secreta, eficiente e zelosa, poderia proteger os cidadãos e proporcionar mais segurança social.
Tais os radars que impõem o respeito aos limites de velocidade, assim a PS imporia regras de pacifismo e mais educação. Ainda que pelo medo. Como na ditadura, como alguns gostam de a definir, para não parecerem reaccionários ou menos evoluídos. Os que se consideram livres, agora como outrora, poderão explicar que tais regras não eram impostas pelo medo, mas por educação. Ou sequer por racionalidade.
No entanto, sabemos que não convém uma tal PS, demasiado eficiente, a uma sociedade como a nossa, demasiado fraudulenta. Porque logo os mais favorecidos – economicamente falando – ergueriam aos céus as suas vozes clamorosas, defendendo uma democracia solidária que igualmente os protege.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

“Um País ingovernável”

O Dr. Alberto João Jardim usou a expressão, mas enganou-se em parte. Não é só o país que é ingovernável, faltam-lhe também bons governantes. Governantes exigentes de lisura, de ordem, de esforço em função da colectividade, exigentes também de uma colectividade que respeite a ordem, a honestidade, que trabalhe e produza e seja compensada por isso. Tudo o que não temos. Não se pede uma sociedade manietada, mas uma sociedade esclarecida, firme e disciplinada.
Já tivemos uma sociedade mais disciplinada, mas nem sempre tratada com a consideração igualitária que merece todo o ser humano, porque permitimos a desigualdade.
Quando, quase diariamente, assisto a um programa na TVCinq – “Questions pour un champion” – maravilho-me com a tessitura humana que por ali aparece – alunos, professores, profissionais de altos estudos, é certo, mas também outros de profissões com menor exigência intelectual e que participam e até ganham, como os outros. Porque não se limitaram a fazer o pão ou a construir as ruas e os jardins, nas suas vidas. A sociedade culta em que se inserem força-os a participarem nela de uma forma esclarecida em autodidactismo ou integrados em cursos que os valorizem. E a Larousse contribui com a difusão de obras que dali escorrem, fertilizando o “solo” pátrio.
Tudo o que não temos. Não temos "Larousses" beneméritas, ainda que subsidiadas, e os nossos reformados – quantos reformados aparecem a concorrer, no concurso do Julien Lepers! – mas a maioria dos nossos, a gente vê-os nos bancos dos jardins, em grupos ou isolados, arrastando a sua solidão, sem sequer um rádio ou um jornal consigo, a esclarecê-los sobre o mundo que os cerca, vegetando, como os cães que por lá giram. Contudo, a nossa sociedade elegante, pedante e fútil, não melhora o nosso “visual”. E quando se ouve falar nas tais “derrapagens” de custos de obras que triplicaram em relação ao projectado, sentimos a vergonha da nossa incapacidade, onde só imperam a incompetência, o compadrio e a trafulhice. Mas quando os nossos governantes também estão marcados por idênticos desmandos, perdemos a esperança, embarcados nos princípios de que só os “chicos espertos” é que se “safam” aqui.
Porque os que se esforçam e são diferentes – que tantos são, felizmente – nem por isso os reconhecem, nem talvez eles desejem ser reconhecidos, limitando-se a cumprir como lhes foi ensinado segundo os parâmetros da tal lisura.
Num país assim ingovernável, porque também não tem quem o governe, talvez nos fizesse dar uma reviravolta, todavia, um governante estrangeiro, mais rígido e esclarecido, que impusesse regras e exigisse o seu cumprimento. Tal como fez a TAP, ao deixar-se administrar por um brasileiro. Façamos como a TAP, passemos a pasta. Ainda que temporariamente. Porque blocos centrais a governar não serão mais que outro meio de uns tantos “enfardarem”, segundo os critérios de sempre.
À maneira da interrogação ansiosa do nosso António Nobre, na espera mágica da sua “Purinha”, assim vivemos nós, pois, os "Velhos do Restelo", e certamente os que foram despejados dos seus empregos, na espera do “Desejado”, do que nunca veio, mas que poderá ainda vir, mesmo com a névoa da lenda:
“Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!”
Para isso, passemos a pasta a alguém lá de fora, que tenha cabeça e critério e nos ensine como deve ser. A ver se dá. Podia ser que desse.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Educar para o optimismo

Ouvi a informação num noticiário televisivo matinal sobre uma professora que, desagradada do desânimo instalado neste país soalheiro, decidiu orientar os alunos para o optimismo, numa estratégia que resultou em respostas muito alegres das crianças entrevistadas, considerando a necessidade de manterem a sua auto-estima.
Estimei ouvi-las, admirei o seu saber e recordei mesmo um livro que uma biblioteca pública lourençomarquina/(maputina) me emprestara nos finais dos anos quarenta, que também expunha sobre o optimismo. Pela idade das crianças – 8, 9, 10 anos, ou até menos – achei que não se tratava da leitura do “Cândido ou o Optimismo” de Voltaire, embora as aventuras daquele pudessem comparar-se às aventuras extraordinárias ou mesmo tenebrosas dos filmes animados que hoje elas vêem com tanto gosto. Não, a professora explicara sobre a auto-estima que é preciso manter, mau grado os sarilhos em que andamos todos enfiados, tinha, pois, uma intenção didáctica a sua estratégia docente de educar pedantemente para o optimismo.
Quanto ao bastardo do Cândido, tratava-se de um ser ingénuo e crédulo, educado por um filósofo que expunha sobre todas as coisas muito estreitamente – o sábio Pangloss – igualmente educador dos filhos do barão, tio do Cândido. Segundo Pangloss “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”, embora as várias aventuras a todos eles sucedidas, frequentes vezes provassem o contrário, de uma maneira perfeitamente atroz, donde se conclui a intenção irónica e parodística de Voltaire ao expor sobre o optimismo. E tudo começara num beijo de Cândido à sua amada prima Cunegundes, logo expulso pelo pai desta, à maneira do Simão Botelho e da Teresa Albuquerque, nessa altura ainda desconhecidos, mas em perfeita imitação da estreiteza aristocrática e política que já separara os eternos amantes Romeu e Julieta. É claro que no final, as personagens se reencontram e continuarão a amar-se, (ao contrário dos outros exemplos dramáticos citados), mau grado a fealdade atrabiliária de Cunegundes, já sem grandes ambições, todos eles, e descrentes no Eldorado, mas “cultivando o seu jardim”, a conselho dum bom velho turco que os acolheu, prova de que há, ou, pelo menos, houve, turcos bons.
A professora, ao ensinar os seus meninos a serem optimistas, parece querer minimizar o horror da sociedade em que vivem alguns outros meninos, cujos pais, desempregados, sentem o seu anterior mundo estável a desmoronar-se, mundo em que nos inserimos todos, afinal, na preocupação pelo futuro de todos os nossos meninos, e apesar dos passeios ao "México" dos mais abastados e menos preocupados.
A professora não parece desenvolver princípios para uma educação racional que torne os seus alunos atentos ao mundo, com a irrequietude de crianças, certamente, mas com a inteligência apoiada em matérias que as desenvolverão, no sentido de produzir, mais tarde, melhor do que os adultos do mundo em que vivem hoje.
Porque a tal estratégia da educação para o optimismo não parece mais do que uma estratégia narcísica e vaidosa, de chavões amorfos como esse tal da auto-estima, que dá aos meninos uma convicção de importância e lhes fecha os olhos para o que é, realmente, importante - a responsabilização pelos próprios actos, o interesse pelo mundo, o valor do saber.
Pobres das crianças que aos dez anos não sejam, não direi optimistas, pois desconhecem o sentido do termo, mas apenas felizes!
Pobre país este, que, em vez de apoiar estratégias de ensino sensatas e racionais, utiliza os meios mediáticos para continuar a lançar atoardas “pedagógicas” que nunca mais nos libertarão da pobreza espiritual que nos identifica.
Nem sequer conseguimos detectar se a nossa mediocridade é causa ou efeito de si própria. Tal como na adivinha sobre a prioridade do nascimento - do ovo ou da galinha.

sábado, 2 de maio de 2009

“Haec tempora”


In illo tempore”, na Coimbra do meu tempo, não na de Trindade Coelho, havia um estudante de Direito – Narana Coissoró – de uma beleza original, olhos verdes num rosto belo e trigueiro, estatura alta, garbo no andar, que penso ter despertado paixões olímpicas, condizentes com a sua figura apolínea.
Quando, anos depois, o reconheci, lamentei que os deuses não tivessem poupado tal “espécime”, que tanto se diferenciava dos demais estudantes portugueses. Narana Coissoró estava menos olímpico, nos seus traços alargados, mas o mesmo rosto tranquilo dizia-nos que mantinha a altivez irónica com que descodificava situações ou teorias, de forma simples e sem rodeios, com a coragem precisa de um espírito liberto.
Alegrava-me escutá-lo, como me alegrou que pertencesse ao CDS, o partido que mais se assemelhava, na sua ideologia, àquela que respeitava a disciplina, como outros valores do passado. Narana Coissoró não desdenhava a Pátria, porque fora educado a não vilipendiar o sentido desse termo, tal como a maioria dos povos unidos por uma história comum.
Por isso, estranhei o comentário lido hoje de alguém que escuto e leio sempre com prazer, pela sua arte discursiva e juízos de valor que pontuam, dum modo geral, a inépcia política alheia, defendendo, todavia, figuras políticas que também estimo.
Tal comentário referia alguns dos actuais blogues portugueses “inclinados para uma direita ideológica herdeira do Independente e do Paulo Portas e Monteiro”, “na sua atitude um pouco enjoada e nefelibata sobre o 25 de Abril”, “em moda nascida por volta de 1974”, dentro da liberdade então alcançada, concluindo que o enjoo dos nefelibatas o enjoa a si próprio porque a única verdade que para ele conta é a de poder impunemente e em liberdade desancar no Engenheiro Sócrates e seu governo, o que não acontecia antes do 25 de Abril em causa.
Começo por desmontar a última observação do seu texto de ABRUPTO, que comenta com a frase “No fundo é simples”: Com efeito, se Pacheco Pereira não podia desancar Sócrates antes de 74, é porque na altura, com apenas dezassete anos, o futuro engenheiro devia andar a jogar à bola, ou a treinar corridas, ou mesmo a ler os livros de Platão para merecer um dia a fama que seu pai sonhou para ele ao registar-lhe o nome, e que ele corroborou posteriormente, como se tem visto. Por isso, ao invés de simples, me parece bem arrevesada tal conclusão anacrónica.
Quanto ao nefelibatismo da tal direita bloguista, na linha do Independente, de P. Portas ou mesmo de M. Monteiro, também me parece um ponto de vista anacrónico, já que os três elementos referidos são bastante posteriores a 1974, donde se segue que esse nefelibatismo enjoativo para José P. Pereira já fora nado à data daqueles.
Não, Narana Coissoró nunca se sairia com um comentário destes tão abusivo e desprovido de nexo, porque ditado apenas pelo narcisismo e suficiência auto-valorativa, cujas consequências sobre o enjoo nem mesmo os sais de frutos ou o kompensan ajudarão a minimizar.

sexta-feira, 1 de maio de 2009

“Eu não devo nada ao trabalho”


Hoje é o primeiro de Maio, dia feriado, e comecei-o a cantar a “Internacional”, enquanto preparava os legumes da sopa para festejar zelosamente o Dia do Trabalho, dando ao litro. Também, é verdade, na tentativa, sempre abortada, de extrair algum quilo em excesso, próprio da idade, da atracção das doçuras e do desleixo na prática do exercício físico tão vivamente aconselhado para a qualidade de vida, para evitar os gritos de dor que o Camilo Pessanha sintetizou com arte - “Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve”.
O que é facto é que me esmerei na limpeza do pó e nas comidas, antes das compras com a minha amiga que sempre se alonga nos protestos contra a deficiente criação do Homem, que tanta carga de calorias tem que ingerir diariamente. Ela acha que a frase do Jeová aos nossos primeiros pais, expulsos para este desterro - “Comerás o pão com o suor do teu rosto” - deveria circunscrever-se apenas a pão, para não exigir tanto dispêndio de energias na preparação dos cozinhados de cada dia. Por isso é elegante, vê-se que cuida bem da sua beleza, indiferente aos doces, e sempre protestando contra tanta refeição diária.
Chegámos ao Pingo Doce, na safra diária de recolher produtos para os cozinhados, mas era Dia do Trabalho, e, espanto dos espantos, o Pingo Doce fechara. Aquele doce Pingo Doce que está sempre à mão para a última compra e o último presente quando a memória falhou, o Pingo Doce tinha as portas encerradas neste Dia do Trabalho, em antífrase, tal como o lugar “Felix” do “seco, fero e estéril monte” “onde nem ave voa ou fera dorme” do Camões, lhe mereceu o apodo de “infelice”, também “por antífrase”.
Comprámos o pão do Jeová, indicativo de um conhecimento industrial já bem acentuado no Éden, embora não acreditando nós na sua variedade de panificação, de que usufruímos agora, e prontificámo-nos a subtrair tarefas na confecção dos pratos, para acompanhar a interpretação que fez o Pingo Doce do seu Dia do Trabalho, aliás, perfeitamente moldado ao conceito generalizado de festejo e feriado.
Quando regressei a casa, a minha mãe perguntou-me que dia era hoje. - Sexta-Feira, Dia do Trabalho, feriado nacional.
Eu não devo nada aoTrabalho, trabalhei muito toda a vida”, foi imediata a resposta.
Ainda pensei recalcitrar, como de costume. Achei que a frase “não devo nada ao trabalho” se aplicava de preferência aos calaceiros, aos desempregados ou mesmo aos sem abrigo, estes por comodismo, quando não por outras razões mais adversas, ou, se a memória me não falha, àqueles de quem se diz que “não foi a trabalhar que ganhou estatuto”.
Outros casos há exemplificativos dessa ausência de débito.
Por mim, acho que devo muito ao trabalho, que me deu a possibilidade de criar família e status, “com o suor do meu rosto” da imposição bíblica, além de que entendo que, só trabalhando, é que os países e os povos progridem, mau grado algumas opiniões mais cépticas.
Mas afinal, também foi isso que fez a minha centenária mãe. Não deve ao trabalho nada porque sempre lhe deu tudo.
E se todos assim pensassem, viveríamos com mais desafogo. Em termos de nação, é claro. Globais.