quarta-feira, 29 de abril de 2009

Como salvar Portugal

Esperava-se que Fátima C. Ferreira convidasse os vultos nacionais mais exponenciais para decidir o assunto, mas tratou-se, antes, de um espectáculo de exibição de saberes ou experiências sem importância, dos expoentes do costume - Mário Soares, que tem sempre saída, Leonor Beleza não se sabe bem porquê, e alguns outros emparceirando respeitosamente com o primeiro expoente-mor e as suas histórias bem intencionadas, pelo menos do seu ponto de vista um tanto romanceado, em episódios que a sua excelente memória vai desenterrando, para manutenção da sua auréola ficcional.
Todos apontaram, é certo, nos seus diagnósticos sobre o estado da Nação, os défices de valores, entre os quais o da educação de cidadania, a falência dos códigos de deontologia, o défice de moralidade segundo designação do livro referenciado de Eduardo Prado Coelho.
Alguém informou também que a democracia dá muito trabalho, não sabemos se estava a referir-se ao trabalho dos que tomam nas mãos as rédeas dos dinheiros públicos em termos de uso pessoal o que, certamente, lhes exige esforços desgastantes na urdidura das teias imprescindíveis para tal, ou se se tratava dos patrões que se aproveitam do pânico dos despedimentos para imporem exigências laborais impertinentes aos seus empregados, ou, enfim, dos que se esforçam por mostrar que amam e protegem o próximo menos dotado, dentro da doutrina da solidariedade em função de uma possível reviravolta de oportunidades para si próprios.
O professor universitário do programa achava que na Instituição Universitária reside a chave para a salvação da crise, quer pela produção do conhecimento, dela específico, quer pela transferência das peças centrais do seu xadrez para o artilhamento social em reconversões profissionais, ou mesmo pelas actividades investigadoras que proporciona, tão necessárias para se concorrer aos prémios científicos no estrangeiro...
Via-se que ele estava convencido dos seus pontos de vista, mas acrescentou logo o pedido de apoio financeiro, porque não é só dar, deve-se também receber, como explica a canção romântica. Como conheço casos de professores a quem a Universidade ficou a dever impunemente inúmeros ordenados – é certo que se tratou de Universidade particular, mas deve haver regras, mesmo para o particular – não sei se o professor do programa da Fátima não terá exagerado a respeito da competência cultural e ética da Universidade para a saída da crise aguda que atravessamos.
Houve também quem referisse a partidocracia, a falta de união dos partidos como obstáculo à solução da crise, cada partido pouco interessado na Nação e apenas em si próprio, para chegar mais rapidamente ao poder e assim partilhar também do bolo que este proporciona, como se tem visto.
Os únicos casos em que houve união dos partidos, constituindo êxitos nacionais, pela cooperação partidária, foram o caso de Timor, a adesão à Europa e a inserção no euro. Só não explicaram o porquê disso.
Quanto a mim, a questão de Timor não nos exigiu tanto esforço assim, Timor como terra dos confins, todos nós podendo demonstrar afecto e uma canção de saudade, que não nos custaram praticamente nada, simpáticos como somos e bons cantores, além de que quem realmente os ajudou quase em peso foram outros, os do costume.
Quanto à adesão à Europa e à inserção no euro, isso só nos beneficiou, economicamente falando. E quando se trata de dinheiro, não há quem resista. Todos nós nos unimos à volta do osso.

Os Três DDD

Descolonização, Democracia, Desenvolvimento – estes os slogans de um dos convidados de Fátima Campos no “Prós e Contras” desta semana. O sorriso surgiu de imediato, de puro êxtase, por verificarmos a nossa continuidade discursiva apoiada no slogan, na abreviatura, no unigrama, de fácil captação, com que se diagnostica imediatamente o tema, sem termos de o desenvolver em forma de raciocínio analítico de expressão abstracta e dificultosa.
Dantes eram os três FFF, designativos de Futebol, Fátima e Fado, que estabeleciam as coordenadas dos nossos horizontes espirituais, já por vocação miserabilista já por educação de parcimónia. Mas os tempos evoluíram, as leituras fortaleceram-se com os contactos internacionais, a política alargou os seus pareceres, os três FFF, permanecendo, embora, com a solidez das suas fortes raízes comprimidas no rectângulo pátrio, sugeriram novos símbolos – os três DDD - para denominação dos valores e objectivos de organização e trabalho.
Descolonização, estamos aviados, não vamos levantar mais pó, Democracia ainda com falhas mas trabalhamos virtuosamente para ela, Desenvolvimento, vamos a caminho.
Devemos ter esperança, a esperança é a última a morrer, diz o provérbio também sintético, com que alcançamos de imediado o sentido oculto das mensagens, por muito que o Alberto Caeiro se esforce por garantir que “o único sentido oculto das coisas é elas não terem sentido oculto nenhum”.
Desta forma, o caminho do Desenvolvimento, pesem embora os entraves do percurso, em que andamos às voltas, com não todos mas a maioria a gemer, está a ser percorrido, com o afinco de quem pretende continuar a salvar a Pátria em perigo de ruir. Os que governam regozijam-se com a obra feita, os opositores não acreditam nela e desmistificam o optimismo dos primeiros.
Entretanto, os sem emprego, os de emprego precário, os que vivem no pavor de perder o emprego, vão subsistindo, assustados aqueles, no horror da sua instabilidade que um magro subsídio episodicamente acalenta, estes no trauma psicológico de serem os despedidos a seguir... O horror do presente, a desesperança no futuro, a consciência da nossa derrocada como nação, mau grado os nomes ilustres que nos farão amá-la sempre...
Não, não percamos a esperança. Havemos de encontrar petróleo. Ainda que para o desenvolvimento, apenas, dos de sempre...

terça-feira, 28 de abril de 2009

“O rosto com que fita”

Fernando Pessoa era um amante extremoso da sua pátria, mau grado a sua educação inglesa, que poderia induzi-lo a olhar Portugal com a altivez distante dos povos que nos são indiscutivelmente superiores. O considerar Portugal o “rosto com que fita”, de uma “Europa” que “jaz, posta nos cotovelos” – o “esquerdo” da Itália “onde é pousado”, correndo toda a “bota” da sua origem, o “direito” da Inglaterra, este, “em ângulo disposto” afastado da mão em que se apoia o tal rosto português que fita o “Ocidente, futuro do passado” – Ocidente resultante da glória descobridora em que Portugal se envolveu primeiro – tal definição, poeticamente concisa, da localização portuguesa, é prova de um nobre espírito patriótico, em homenagem de amor com que inicia a sua “Mensagem”.
Já Camões o fizera, igualmente com profundo orgulho nacionalista, em amplo descritivo do erudito Gama, contendo referências às linhas imaginárias limítrofes da “soberba Europa” e aos mares circundantes, para, após ter percorrido os povos nela inscritos, de passagem pela “nobre Espanha, / Como cabeça ali da Europa toda”, terminar pelo “Eis aqui, quase cume da cabeça / De Europa toda, o Reino Lusitano, / Onde a Terra se acaba e o mar começa”, identificado aquele, seguidamente, com “a ditosa pátria minha amada”.
Ambos amaram a pátria, e o demonstraram, tanto Camões como o “Super-Camões”, com o engenho e o génio de expoentes literários cimeiros. Mas não foram apenas grandes génios artísticos. Porque foram grandes também nos grandes sentimentos – e o amor pátrio é um grande sentimento. Que todos os povos manifestam, sem se envergonharem de o defender, de respeitar o terreno que herdaram dos seus antepassados.
Houve, porém, e há, seres superiores que desdenham os afectos patrióticos reveladores de tacanhez. Cidadãos do mundo se consideram, amantes, sim, dos povos desprovidos dos direitos às suas terras, navegando nas doutrinas da sua erudição, que acima de tudo lhes dão projecção, na realidade sem amor por nada nem por ninguém, a não ser por si próprios.
Salazar, além de grande pensador, foi um homem que amou a herança que desejou defender contra a falácia das tais doutrinas. Sem poesia. Mas da mesma forma sentida que os poetas geniais evocados.

domingo, 26 de abril de 2009

O cinismo no progresso

O mundo é velha cena ensanguentada / Coberta de remendos, picaresca / A vida é chula farsa assobiada, / ou selvagem tragédia romanesca.” Isto afirma Cesário a propósito de um casal de amantes, ele mais novo mas submisso, ela velha e perversa mas frequentando a missa aos domingos, com o missal que o amante “levava na tremente mão nervosa”. Os dezanove anos de Cesário assim assinalavam, precocemente, traços caricaturais evocativos de Daumier, em síntese atenta ao mundo, de uma sociedade defeituosa.
Hoje, cenas dessas também se verificam, outras de faca e alguidar, de brutalidades cada vez mais requintadas, e mais mediatizadas.
Mas as crianças, Senhor! / Porque lhes dais tanta dor? / Porque padecem assim?” Não, não se trata dos pezinhos descalços da criança pobre caminhando na neve, da balada de A.Gil, estimulante da nossa compaixão em oferta imediata de sapatos velhinhos para poder atravessar a neve mais confortavelmente. As crianças de que se fala são as deste nosso século.
A notícia vinha hoje no Diário de Notícias a respeito da viragem dos medos das crianças americanas, não mais do ogre, nem do lobo feroz ou da malvada bruxa dos ingénuos contos infantis. Que o mundo está cada vez mais transformado em “velha cena ensanguentada”, na monstruosidade dos raptos de crianças, ou de violações, de sismos, todo o tipo de actos de terror, que obrigam os pais a industriar os filhos precocemente sobre a maldade do mundo e a povoar as suas mentes de pesadelos inultrapassáveis, impondo medicação apropriada.
As próprias casas, sobretudo dos bairros elegantes de outros tempos, substituíram as sebes de plantas dos seus jardins, por muros altos ou tapumes que as transformam em masmorras isoladas do mundo, donde se sai e se entra de carro, com comando à distância, garante de tranquilidade.
Aconselha-se os pais, que trabalham fora, a proibirem o acesso dos filhos aos noticiários alarmantes, das catástrofes e dos actos de terror. Mas as cenas indecorosas, os filmes de violência, são largamente difundidos nos canais televisivos e, a par de alguns filmes encantadores para os mais pequenos, cedo se lhes fornecem histórias terríficas em filmes animados, de personagens feias, hediondas, com que se iniciam no terror do mundo e nos pesadelos dos seus sonos.
A democracia ajudou à desfiguração, ao desequilíbrio, à ruptura da ordem e dos valores morais, à libertinagem, à falta de gosto de tanta “literatura infantil”, responsável pela generalização do crime, na base, pois, dos terrores em que vivem os nossos filhos, desde cedo industriados neles.
Parece cinismo, pois, o aconselhamento moral ou médico, quando tais potências do mundo adulto, que os responsáveis pelo progresso aplicam escrupulosamente, se não coibem de interferir no universo infantil - pela televisão, pelo computador, pela droga, pelo álcool... - sem obstáculos nem sanções. A família torna-se cada vez mais impotente e as escolas sofrem impotentemente as consequências disso. Em toda a aldeia global, não apenas nos Estados Unidos.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

As bichas do nosso desconforto

Quando vim de África, juntamente com as levas de famílias que de lá vieram também, nos aviões solidários dos TAP, que sucessivamente nos iam despejando cá, na debandada provocada pelo momento feliz que estamos todos a festejar pela trigésima quinta vez com o mesmo cravo rubro na botoeira, habituei-me às bichas da documentação necessária para as transferências dos adultos e das crianças – primeiro lá e depois aqui. Bichas longas, entediantes, morosas, vividas na surpresa do caos que sobre nós desabara com a descolonização.
Muitos são os heróis que promoveram essa surpresa, bem galardoados pelos seus feitos heróicos em promoções, bons ganhos e perpetuidade na glória.
Passado tempo, ultrapassadas as bichas da papelada para reorganização material da vida cá, outras bichas surgiram, mais longas e entediantes ainda, pois duravam o dia inteiro, com continuação, por vezes no seguinte, para se receber o vencimento, reduzido a metade, na situação de funcionários adidos. Eram as bichas no B. N. Ultramarino, ao Rossio, inicialmente, posteriormente transpostas para a FIL, com as avalanches em acréscimo imparável.
Mas, enfim, a Pátria estendera-nos a mão, restava-nos cumprir e adaptar-nos. O sentimento envergonhado de equiparação com outras levas – de animais ou de desterrados Judeus - não ousávamos manifestá-lo, reconhecendo-nos numa posição infinitamente superior à daqueles, mimados nós outros no confronto.
Adaptámo-nos. As bichas pararam, excepto as das greves aos produtos. Outras vidas se ergueram, na pretensa estabilidade trazida pela ajuda europeia. Mas a democracia por que os bem intencionados ou os fala-baratos lutaram, ruíra, no outro caos dos laxismos, que generalizaram a indisciplina moral e mental, levando à nossa miséria.
Outras bichas se formaram e estas estão para se manter. Jovens sem futuro, velhos sem arrimo, os telejornais os mostram, maltrajados, infelizes, tristes, os filhos do nosso amor, que a Pátria, esgotada de recursos, porque houve quem os sugasse, não pode mais obter, desde que a prevaricação se institucionalizou. Custa olhar!

As saias de Elvira

Vem isto a monte por via da conversa que tive com a minha amiga Binha, que esteve em Paris e vem ofuscada, de causar inveja, com o brilho de um espaço criado por gente que se cultivou e que construiu um mundo onde se exige e onde se tem. A filha estuda na Universidade e o nível de exigência ali é grande. Trabalha-se, mas compensa-se o trabalho. Diz a Binha que também lá há manifestações, greves, reivindicações, cartazes, protestos. Contra as políticas, ou contra os políticos. Mas os noticiários são parcimoniosos, não empolam os casos, mais amplos nas referências às políticas mundiais.
Ao chegar, a decepção do costume, o sentimento da inanidade, do vazio, perante a especulação infindável e provinciana sobre os nossos temas jornalísticos, os dos despedimentos, do desemprego, da crise, da corrupção, dos casos de doença e de miséria, dos desesperos e da desesperança, sobrecarregando os noticiários, com muito ruído, muitas lágrimas, muita violência palavrosa. E o como vai o mundo relegado para o fim, também com especulação sobre o factual, o acidente, o rumor, o cãozinho português ou de origem lusitana, qual Viriato, a servir de brinquedo à mesa do rei... E os rodapés acumulando simultaneamente outras notícias, em mastigadelas que desconcentram.
As acusações. Mas o grave é que não temos bom senso, com o desrespeito que revelamos, com este acumular de sensacionalismos e efervescências dos nossos ataques.
Não evoluímos e parece até que regredimos, sentimentais que somos. Ou cada vez mais pobres, como o demonstram as bichas do desemprego ou das sopas da nossa generosidade.
Era Fradique Mendes que definia o nosso lirismo romântico como “enclausurado nas duas polegadas do coração, não compreendendo dentre todos os rumores do Universo senão o rumor das saias de Elvira...”.
O certo é que a nossa sensibilidade hoje continua de cariz lírico, a centrar as nossas preocupações políticas no imediatismo do rumor das saias, mais ou menos amarrotadas, de Elvira.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

O queijo

Uma raposa esfomeada viu nas águas de um poço a lua reflectida. Lua grande, tentadora, que ela julgou ser um queijo que a fome lhe saciaria. Para o balde cimeiro saltou, suspenso da corda com que o dono do poço a água extraía, e assim no poço caiu. Molhada, enregelada, logo do erro se apercebeu, apenas reflexo da lua e não queijo o que encontrou.
Podia ter aceitado o seu destino deixando-se morrer afogada, mas, uma vez mais, se portou à altura da matreirice que sempre a denunciou, como La Fontaine escreveu. Esperou, esperou, a lua minguou, até que o lobo apareceu. Para o repasto do queijo a raposa o convidou:
Compadre lobo, salte para o balde, venha comer o queijo antes que eu com ele acabe”. E o lobo, ingénuo que era, apesar de malvado e às malandrices da raposa já habituado, pois confiou. Para o outro balde cimeiro saltou e assim desceu, desceu, enquanto a comadre raposa avante passou, de papo cheio, segundo lhe pareceu, quando com ela se cruzou, reduzido o queijo a quarto minguante.
Era a vez do lobo se desenrascar, mas na questão da astúcia com a raposa não se poderia equipar. O mais certo é que se deixasse afogar. Por solidariedade, podemos duvidar.
Andamos todos a tentar o queijo apanhar. Mas não tenhamos dúvidas de que, num balde ou noutro, vamos todos, pelo queijo, no poço cair. Mesmo as humanas raposas se deixam enganar. E ainda que chegue a vez delas de um incauto humano lobo atrair, dificilmente poderão a fome saciar, na Terra queimada por gente só forte no destruir, sempre mais fácil, compreensivelmente, do que o construir, que exige cálculo mental, actualmente quase inexistente.
Há quem possa fugir. Sempre houve quem fugisse e assim até construísse. Impérios, civilizações, terrenos amados por quem os amou...
Hoje, isso acabou. Outro rumo haveria a tomar, mas o rumo de agora é só brincar, divertir, destruir, sem cálculo mental e sem preocupação pelo devir.
Juízo Final? O Apocalipse? Quem o dissesse! E outro Cristo, ou mesmo o mesmo, ressuscitasse, que nos safasse...

terça-feira, 21 de abril de 2009

Os crimes do ABC

Vivemos numa sociedade criminal, de impunidade geral, onde imperam a Ambição, a Bajulice e a Cunha para melhor realização pessoal. Mas podíamos percorrer o alfabeto quanto a realizações, sem olvidar a Trafulhice, a Vanidade e tudo o mais de que é capaz a falta de moral, que se contesta hoje, como todos os mais valores. Até mesmo a ponderação. Fiquemo-nos com a Agatha Christie, e lembremos ainda o La Fontaine, na questão de uma sociedade de animais, onde o leão, o lobo e a raposa são actores principais.
Essa fábula aplica-se aos cortesãos, que roem na pele alheia quando estão junto dos reis: Um Leão decrépito quis rejuvenescer e mandou vir médicos do mundo inteiro para tal efeito. Só a Raposa se escusou, e o Lobo aproveitou para a desconsiderar perante o Rei Leão, que, furioso, a Raposa mandou chamar, decerto que para a tramar. Esta compareceu em jeito de grande humildade e devoção, afirmando ter estado a rezar pela saúde do seu rei e que trazia o unguento para o mal real – o mal da frialdade que a velhice provocara, só curável com a pele do Lobo, esfolado vivo, para cobrir o corpo do velho Senhor da Selva. E o Leão, de pôr em prática a sugestão.
La Fontaine conclui a história aconselhando seriamente os cortesãos a fazerem a corte sem se destruirem mutuamente, porque “o mal lhes será retribuído pelo quádruplo do bem” acrescentando que estão num cargo onde “ninguém perdoa a ninguém”, como se viu por este exemplo de escalpe total em jeito de vingança pessoal.
Já, portanto, assim era, no tempo dos cortesãos. Para nós, em que as cortes passaram de moda, só podemos usar o termo em tom figurativo. Mas as mesmas artes e manhas que imperavam nesse tempo florescem pujantemente no nosso, de corrupção denunciando ambições, bajulices, proteccionismos, traições, mas em que parece já não haver um retorno que nos garanta estabilidade moral e material.
Só se garante o escalpe, o Mal pelo quádruplo do Bem. E a impunidade.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Não se trata de cor

Cor política. No fundo, todos os comentadores políticos sabem coisas e apontam razões mais ou menos pertinentes dos seus pontos de vista, contestando ou apoiando os políticos de outra ou da sua cor. Alguns até têm muito chiste, quando não se atropelam em argumentos, em tom altissonante, para sobrepor o seu ao do adversário amigo.
Porque são todos amigos. Em democracia devemos aprender a respeitar todas as opiniões, como se respeitam os erros gramaticais dos alunos levando-os à detecção do erro e da regra gradativamente, por dedução, em vez de lhes impormos logo de início as regras, que custam a decorar. É claro que se perde muito mais tempo por este processo, e por isso chegamos a este século em que os dislates linguísticos ou ortográficos são cada vez mais visíveis, mas devemos acatar isso, porque também os nossos políticos não se importaram de destruir a sua própria língua, em acordo ortográfico insano, tal como lhes é indiferente o futuro hipotecado dos seus filhos e netos, ou mesmo o presente, num país a despenhar-se.
Dantes, havia territórios vários que alimentavam este país. Depois, foi a Europa que ajudou a hipotecá-lo com afinco, mas os governantes, deslumbrados, permitiram que muitos desses empréstimos fossem esbanjados pelos que souberam precaver-se furtivamente, em termos pessoais.
Não houve o desenvolvimento económico necessário, a expressão “fartar, vilanagem!” aplicou-se-nos uma vez mais, com a inocência dos incautos. E incautos são tantos dos filhos que gostaríamos de educar dentro de valores, os outros.
Mas a mocidade de agora também nem sempre os revela. Que o digam as bebedeiras dos estudantes, as garrafas atiradas para as ruas nas Queimas das Fitas, a vandalização das escolas, a insanidade.
Por isso, todos os comentaristas que até gostamos de ouvir ou de ler, apenas se atrevem a criticar ou troçar. Porque acção é impossível num país sem lei, e corajosos os que se atrevem a pegar nas rédeas. Mesmo no seu próprio interesse.

sábado, 18 de abril de 2009

Tricas

Mário Soares está incomodado com a possível eleição de Durão Barroso para o alto cargo de comissário europeu, que tanto nos honra e favorece Barroso, ainda por cima com o apoio do partido socialista, orgulhoso e patriota, como José Sócrates se farta de frisar.
Mário Soares, zangado por causa da vergonhosa recepção anfitriã, nas Lajes, de Barroso aos leaders Felipe Gonzáles, Blair e Bush, por alturas da invasão no Iraque, bem criminosa na sua tentativa de destruir um povo inocente a respeito de armas nucleares, Mário Soares, indignado, acha que não se trata de patriotismo, como refere Sócrates, mas de um nacionalismo de baixo calibre esse tal do apoio a Barroso. Com tão subtil diferença sinonímica, Mário Soares deve estar a referir-se ao amor exagerado e desvirtuante que em tempos Hitler também demonstrou pela sua nação e tão maus resultados provocou mundialmente, embora ele não deva imaginar que o nosso Sócrates vá por aí impor-se com a mesma dimensão nacionalista, belicista e conquistadora, do facinoroso Hitler.
Há quem diga que Mário Soares devia estar calado, visto que o seu tempo de reivindicar louros já lá vai – louros patrióticos ou nacionalistas, tanto faz, mas há quem neles veja apenas individualismo e mesmo um narcisismo retórico, nele incrustado de longa data.
Porque se Durão Barroso tem discursos anémicos como comissário europeu, protocolares e pouco mais, porta-voz sem poder de decisão, Mário Soares também os tinha assim anémicos, quase só centrados na conquista das liberdades democráticas que nos faltavam, pois em confronto ideológico com alguns portugueses desse tempo, ou estrangeiros como Felipe Gonzáles, ele ficava a perder no debate, bem mais artilhado de conhecimentos específicos, do ministro espanhol ou qualquer outro.
De resto, nem se percebe tanta crítica assim a Durão Barroso como apoiante belicista de Bush, esquecido Mário Soares de quanto o seu anti-belicismo semeara, no seu tempo, apenas dor e ruína, descontada a retórica libertária.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

A cartilagem de tubarão

Conheço alguém a quem foi detectado um cancro da mama e a quem foi aconselhada a preparação imediata para uma imediata operação. Preparação logística, entendendo por isso a despesa imprescindível, a disponibilidade familiar de estar doente, que não tinha, por ter o marido doente crónico e na sua dependência, a disponibilidade psicológica que ninguém tem, pelas sequelas provindas da operação, em que a que menos conta é a queda do cabelo.
O medo da família e dos amigos. Não era possível! Não a minha amiga, não o meu familiar, não a perspectiva da morte para a pessoa de quem se gosta.
Mas alguém a quem sucedera o mesmo, a mesma urgência operatória, e, que, aconselhada por outro alguém, consultou um médico naturista que lhe prometeu a cura e a fez desistir da operação, arriscando a sua vida na confiança pelo médico naturista, de preferência à tal operação mutilatória, esse alguém levou a minha amiga ao seu médico naturista. E a minha amiga confiou, no horror da outra perspectiva que lhe era imposta.
Fez o milagre a tal cartilagem de tubarão, reconstituinte dos tecidos. E os outros remédios receitados. Está melhor, a minha amiga, mas a médica que aconselhou a operação não crê nisso, tais como os médicos da sua amiga não acreditavam. Ironizam, nem querem saber do como, limitam-se a descrer, o São Tomé quis ver. Os médicos convencionais não querem ver.
Talvez não haja interesses lucrativos na sua rejeição, apenas humanitários, mas se os não há, há masoquismo, isso sim. Salvar, embora mutilando, sempre com urgência, quando a urgência ainda é possível.
E o cancro, alastrando, em concomitância com os traumas da crise em que vivemos, fica muito caro ao Estado, nas múltiplas operações que impõe, porque a Assistência aos seus Servidores não comparticipa os custos da medicina naturista. Por isso os médicos não querem saber.
Mas cinco anos passaram e a tal amiga da minha amiga está dada como curada e a minha amiga melhorou. E de que maneira! Em poucos meses...

quarta-feira, 15 de abril de 2009

“Nem que seja para abrir buracos”

Esta expressão de uma telespectadora, lembrando a terra como recurso, ao comentar a inércia, vulgo preguicite nacional, que muitas vezes aceita acomodadamente o subsídio em vez de procurar outra forma de subsistência, trouxe-me ao espírito memórias antigas e outras muito mais recentes, de abertura de buracos na nossa terra.
Era em Coimbra, não nos tempos prodigiosos de Antero e Eça, naturalmente, mas de meados do século seguinte, percorrido já pelo automóvel, que eu estranhava, prosaicamente, a constante abertura de valas na Ferreira Borges, e não compreendia aquela sequência interminável de dias de valas que se não fechavam, mesmo junto ao consultório do Dr. Adolfo Rocha, tão estimado, na dimensão da sua arte em verso e prosa. Mas nas outras cidades o mesmo se ia passando, construindo, destruindo, abrindo, fechando valas, interminavelmente, ao longo dos tempos, em ensaios muitas vezes de amadores, pois o fecho das valas nem sempre era perfeito e o incauto facilmente se estatelava, sobretudo na calçada à portuguesa, feita e refeita com lombas e buracos.
Nos nossos tempos, cada companhia, de diferente manipulação, abre e fecha a vala por conta própria ou da câmara da terra, nunca de forma organizada segundo parâmetros de coincidência temporal. Assim, no caso dos colectores de saneamento, abrem-se as valas por longos tempos e fecham-se, para a seguir vir a companhia das águas abrir e fechar para as respectivas tubagens, e a da electricidade para os cabos... E os passeios da Câmara, para a reparação da calçada danificada. E tudo leva tempos infinitos, difíceis para todos e mais ainda para os que andam em cadeira de rodas ou com canadianas ou tacões finos.
Por isso me assustei com a expressão da senhora que manda os mandriões trabalhar, “nem que seja para abrir buracos”.
A menos que os buracos fossem no trabalho da terra. Mas a União Europeia proibiu e o melhor é os campos continuarem assim, maninhos. Temos o subsídio.

A lava do nosso medo

Somos um povo bom e generoso, sempre pronto a ajudar o próximo, é bem antiga a Santa Casa da Misericórdia, instituições como a do Padre Américo, os Sem Abrigo e até a Casa Pia são comprovativos dessa nossa bondade, bem precisa para ajudar quem de nós precise e são cada vez mais os nossos pobres, acrescidos ultimamente com os pobres de outros países pobres que os deixam vir com satisfação. Somos esmoleres de longa data, a instituição da mendicidade cobre as nossas ruas como uma lava petrificada que escorreu do magma da nossa incapacidade de educar e de governar sem ser salvaguardando uns tantos com o menosprezo da maioria. Desde sempre.
Por isso a maioria pobre foi tentando sobreviver trabalhando de sol a sol, sem tempo nem condições para se instruir, esbulhados nos seus direitos, alombando com os pesos do trabalho duro e dos encargos familiares, não deixando, contudo de ajudar os mais pobres ainda, com a esmola da côdea ou da malga de caldo comido à soleira da porta. Era assim dantes, dizem os avós e até os livros passados. O Charles Dickens também conta histórias de miséria e o Victor Hugo, mas a par disso, até pela caricatura, os tipos sociais descritos têm algo de consistente, de gente com capacidades intelectuais que certamente lhes advinha de um status menos embrutecedor. A nós ficou-nos o fado chorado e as expressões exclamativas da nossa ternura generosa, como o “coitadinho” e afins.
Vê-se que vamos continuar a ter que despender a nossa generosidade e mesmo o nosso Primeiro Ministro não foge à regra esmoler portuguesa, pois dizem que anda a distribuir com muita garra discursiva pelos que não têm condições de sobrevivência, que aumentaram, por via dos desempregos que se multiplicaram, para acréscimo da despesa pública.
E se alguns acham indignas tal pobreza e tal mendicidade e este apoio generoso à inércia que nos condena, logo surge a resposta de que o que é indigno é roubar, e, contudo, os que mais roubam são os mais honrados no nosso país.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O rabo da serpente

Cada vez me convenço mais de que os clássicos já disseram tudo o que havia a dizer a respeito da humanidade e nós agora não fazemos mais do que aplicar-lhes a sabedoria. O próprio La Fontaine afirmou que pintava heróis de que Esopo era o pai, teve só que ampliar-lhes a narrativa dos feitos, coisa que, antes de si, Fedro também já tentara. A própria Bíblia está recheada de aforismos e parábolas, prova de que também eles – os que a fizeram – sabiam da poda a esse respeito.
A história contada por M. Filomena Mónica sobre o Secretário da Educação, Valter Lemos, cabe inteirinha na fábula da serpente cujo rabo, que contém veneno, como os dentes da cabeça, que também contêm, para injectar nas presas e assim governar a vida, se achava com os mesmos direitos da mana para conduzir o seu rastejante corpo de ofídeo.
O Céu, complacente, satisfez-lhe a vontade, do que resultou que a serpente, guiada pelo rabo, disparou às cegas e acabou no Estígio, tal como a sua irmã cabeça, mais o tronco rastejante. A moral da fábula, segundo La Fontaine, é toda actual: “Malheureux les États tombés dans son erreur.”
M. F. Mónica conta do percurso educacional e político de Valter Lemos, ex-professor de biologia, formado em Ciências da Educação pela U. de Boston, passagem ao governo com os améns gratos do PS. Teve faltas injustificadas na Câmara de Penamacor, terra natal, nunca participou em debates parlamentares, nunca discursou, mas fez um livro – “O Critério do Sucesso – Técnicas da Avaliação da Aprendizagem” que lhe proporcionou os amens e a gratidão. Livro fundamental, que desdenha os saberes, apoiado em normas pseudo-científicas expressas em quadrados, transformando o ensino português numa salada mista de ingredientes que dão sabor ao universo da fantasia estudantil e lhe retira as responsabilidades de outros universos mais racionais e dignos.
Foi este livro do seu secretário - o rabo da serpente – que a cabeça orientadora da Ministra da Educação quis aplicar, para governar o corpo da serpente – a nossa Educação. Assim. Às cegas, e sempre rastejando. Espera-nos o Estígio.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Um conto de dragões que pode ser pascal

Dois funcionários pertencentes a duas nações potentes – alemã e otomana – discutiam valentemente os valores da respectiva nação, a turca pertencente ao sultão, a germânica ao imperador alemão, que por ter poderosos eleitores, vivia em discórdia permanente.
Maçado com a vaidosa sensaboria do seu opositor, que não se cansava de valorizar o seu imperador, o oficial da Turquia, para lhe dar uma boa lição, contou uma aventura terrível por ele vivida um dia, com receio, é certo, concebível por estar habituado ao seu ripanço.
De facto, em bom descanso se achava nesse tal dia, por trás de uma sebe, quando uma hidra de cem cabeças tentou passá-la, direita a ele, sem o conseguir, todavia, que as cem cabeças, ao vergar-lhe o corpo, foram obstáculo a tamanha ribaldaria.
Estava o turco no estranho caso a meditar, feliz por à morte escapar, quando outro dragão, por trás da sebe surgiu, de uma só cabeça, sim, mas muitas caudas ao corpo agarradas. E o espanto do turco foi enorme, ao ver que o horrendo bicho a sebe passou, cada cauda abraçando-se de maneira, que a primeira apoiou a derradeira e todas o corpo e a cabeça cimeira.
Mal não lhe fez o dragão, que as caudas são sempre inofensivas, mas concluiu o turco que um dragão de uma só cabeça embora com bastantes caudas – que, aqui para nós, podem até ser de palha – governa tão bem e até melhor, pois atravessa os obstáculos, apoiada na parte inferior, do que um dragão com muitas cabeças as quais, com seu ar superior, lançada cada uma em sentido divergente e sem solidariedade, o impedem de ultrapassar as sebes que gostaria de transpor.
É do La Fontaine a fábula dos dois dragões, e serve como lição pascal, de que é necessária a harmonia, seja na ditadura ou na democracia.
Entre nós, contudo, o caso é bem diferente, pois que nos falta o pão e ralharemos sempre, que o provérbio não falha, mesmo tendo nós rabos de palha.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Os Titãs da nossa responsabilidade

Assisti ontem, no Parlamento, por via televisiva, a uma luta entre autênticos Titãs, tão garbosa e tonitruantemente se enfrentaram, em acusações que faziam ricochete, imediatamente devolvidas à procedência, deixando-nos indecisos sobre quem merecia, de facto, crédito, tanta a sinceridade que de todas emanava
Só na questão das lições de moral é que divergiram. O Dr. Sócrates logo objectou que não aceitava lições dessas de ninguém, o que nos leva a acreditar nele, tomando como exemplo o seu curso, onde conseguiu ultrapassar a questão das lições reais, morais ou outras, (embora outras deva ter, de facto, recebido, para chegar aos píncaros de autêntico Titã), além de que o inefável Acordo Ortográfico constitui demonstração cabal dessa apregoada rejeição às lições, linguísticas e morais conjuntamente.
Ora o Dr. Louçã, que não tem papas na língua, destruiu-lhe a auto-suficiência chamando em sua defesa a espezinhada (pelo Dr. Sócrates) democracia, segundo a qual cada verdadeiro democrata deverá virtuosamente aceitar as lições morais de cada um dos outros verdadeiros democratas. Uma afirmação decisiva, bem de Titã, que, todavia, qualquer outro que não necessite de se rotular de democrata poderia contestar, defendendo os princípios morais como apanágio de boa educação.
Mas estávamos entre os nossos Titãs parlamentares, e foram muitos, via-se quanto todos se sentiam profundamente indignados, sobretudo com os enriquecimentos gerados ultimamente neste país a trouxe-mouxe, e quanto todos desejavam instituir a sua criminalização, mas, sob o pretexto de que tal criminalização assim antecipada – em princípio, para impedir o esgotamento dos fundos bancários - amortece o ónus da prova, o Dr. Sócrates recusou a proposta, como recusou antes as lições de moral.
Nada é eterno, contudo, nem mesmo a nossa mais valia titânica tonitruante, não devemos preocupar-nos. Os próprios Titãs foram destronados por Zeus, e o inexpugnável Titanic destruído por um iceberg.

domingo, 5 de abril de 2009

Pois se não foste tu foi teu pai

Vem a lume a fábula do lobo e do cordeiro, este último, embora tendo demonstrado a falsidade das acusações do lobo relativamente ao roubo da água do rio, supostamente praticado por si ou pelo seu inexistente irmão, não conseguiu o mesmo relativamente ao triste pai, e acabou comido.
Que os lobos usam sempre estes esquemas de acusações falsas para tramar o próximo de condição inferior, num país frágil como o nosso – e tantos mais por aí - onde prevalece a razão do mais forte, e nem precisam de grandes argumentos para comer, figurativamente, os cordeiros – exprimindo esta última figura os tais de condição inferior que, para colherem algumas benesses, se habituaram, em contrapartida, à expressão da humildade e da subserviência perante o superior.
É certo que tudo na vida se processa segundo hierarquias, mas também devemos ter presente a já estafada noção da relatividade que nos condiciona, e por isso não devíamos importar-nos tanto com as diferenças mas tentar antes alcançar a nossa, sem complexos provincianos.
Todavia, a nossa arrogância cá dentro transforma-se muitas vezes lá fora – salvo as excepções honrosas – em atitude de humilde simpatia, de efeito promocional vantajoso. Reporto-me a Durão Barroso e ao seu provinciano comentário, elogiando o discurso europeu de Obama.
Enquanto todos os comentadores acentuaram pormenores pontuais desse discurso visando o despoletar de uma abertura política, económica e social da USA sobre a Europa e o mundo, feito, aliás, com à-vontade enérgico próprio da sua superioridade indiscutível, Durão Barroso foi buscar o banal parâmetro da humildade como motivo do seu elogio sintético.
Humildade foi o que viu e lhe caiu no goto, indiferente aos dados objectivos, verdadeiros ou falsos, mas que a todos pareceram fulcrais.
A humildade que ele sabe indispensável para vencer ou convencer, que salientou em sensaborão complexo – o qual tão bem rege as nossas vidas lusas, sempre servis perante o poder dos lobos.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Esponjas

Vivemos na peste.
Não como as personagens do Camus, no romance simbólico da resistência ao absurdo do universo monstruosamente totalitário que constituiu a guerra hitleriana, e simbólico também da absurda condição humana sujeita à sua finitude, como às suas rotinas. As nossas rotinas são outras, diferentes da peste bubónica que deflagra em Oran, após a progressiva descoberta de ratos mortos infestando os espaços da cidade, com as suas tragédias das mortes, da dedicação solidária de alguns, do egoísmo momentâneo de outros, do encerramento da cidade e a claustrofobia, da visão fundamentalista do castigo divino ao ateísmo e aos vícios dos homens, do sofrimento de todos.
Não tem essa dignidade a nossa peste. Trata-se de um estranho manto geral de perversão, de cupidez, de despojamento de valores, de egoísmos perfeitos, de perspicácias de alguns, de faltas de honra, de esbanjamentos megalómanos, de destruição da pátria e da língua, de fraudes e roubos descontrolados, de despudores, de bandalheiras sem fim, de continuidade na idiotia geral, na qual me incluo....
Não tem dignidade a nossa peste. E quando supúnhamos que os castigos aí vinham para os responsáveis que roubaram e se aproveitaram da burrice alheia, e destruíram a pátria e a língua pátria, e foram causadores do mal-estar de quem perdeu emprego, quando pensávamos que era o finis patriae fatal, eis que surge a varinha mágica da nova injecção de fundos, agora dos muitos povos grados, para salvar as pátrias em risco.
Mas não são as pátrias em risco que se vão salvar. Porque a injecção de fundos, quando muito, cobrirá de esmolas os pobres, e são muitos os pobres agora, a viver dos parcos subsídios estatais.
Porque a injecção de fundos vai sobretudo para os que roubaram antes e não são responsabilizados por isso, esponjas absorventes que enrolam as sociedades nos seus esquemas fraudulentos, indefinidamente, e nunca são castigados nem obrigados a devolver o que furtaram. As pátrias continuarão em risco. Sempre.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Soluções

A hora é de peste. Convém reler a fábula “Os animais doentes de peste” do implacável La Fontaine.
Terrível peste foi essa que grassou entre os animais, os quais, por consequência, deixaram de lutar por sua sobrevivência. Deixaram de se perseguir em função do comer e do amar. Como é dia 1 de abril, podemos acreditar.
E assim foram esmorecendo os pobres animais. Mas o leão generoso e valente, com um cargo plenipotenciário, achou que se devia sacrificar, confessando os seus pecados, para obter a benevolência dos Céus. Porque os animais também crêem em Deus. Falou, pois, dos carneiros que comera e até o pastor deles que não poupara. Estava pronto, assim, a dar a vida, em expressão magoada, para obter o fim da peste, embora achasse que outros havia que mais do que ele pecasse, Tartufo modesto e zeloso de uma justiça efectiva na sua monarquia.
Outros animais se confessaram, o cão, o tigre, o urso e tantas outras potências das habituadas às reverências. É dia 1 de abril, podemos acreditar.
Mas a raposa, sempre certeira, a todos elogiou pela magnanimidade das confissões e insignificância dos seus pecados de glutões, considerando com cortesia que outros pecadores haveria de maior relevância.
Vai o burro, que nunca deixou de o ser, lembrou que um dia, esfomeado, tasquinhara um prado inteiro de erva irresistível e bem se arrependia agora da tentação em que caíra naquela hora.
E todos que o apoiam em grande alarido na humilde auto-acusação de que só um burro é capaz. Tão horrendo delito da sua própria confissão só podia merecer a morte e até a flagelação, pois um prado inteiro é bem maior do que um carneiro! Crime imperdoável, de verdade! Sacrifique-se o burro para que os Céus devolvam a saúde aos outros animais, que, embora todos eles mortais, preferem protelar coisa tão fatal, ainda que outrem espezinhando, com menos culpa real.
Mas as confissões de auto-acusação do leão e cortesãos foi farsa do 1 de abril, que já passou. De tudo isso só a memória do burro ficou.