segunda-feira, 30 de março de 2009

Vasilhas

Li hoje no Destak que a Ministra da Educação está muito optimista relativamente aos efeitos do Estatuto do Aluno sobre o absentismo escolar, em decréscimo de 22%. Fiquei contente, mas imaginava ultrapassada a época da permissividade escolar e docente dos anos setenta pós-revolucionários. Até julgava que a permissão das faltas actuais visavam antes uma campanha de desautorização do professorado para difamação posterior, como sucedeu, com vias à sua redução para enchimento dos cofres estatais.
Parece, no entanto, que assim não foi. A Ministra está contente com a diminuição das faltas. Faz finca-pé nisso, e não considera necessária a ameaça dos chumbos para que os alunos não faltem às aulas. Porque os alunos poderão sempre faltar, desde que provem que conseguem safar-se, nos testes ou entrevistas a que serão submetidos. Pelos professores à disposição dos faltosos.
Há sempre aulas de recuperação, o grande projecto da Ministra, e assim os alunos progredirão, em sua opinião, com o sangue, suor e lágrimas dos professores. Pois a recuperação dos alunos, a substituição dos professores – em caso da sua ausência, a maioria das vezes por conta de visitas de estudo – o aconselhamento aos pais, as reuniões constantes, o acompanhamento permanente, a informática imprescindível, todo um bla bla bla de serviços, tudo isso vai sobrecarregando os professores em funções diversas de que a mínima caberá à sua preparação técnica, obviamente com prejuízo escolar.
Mas a Ministra está contente e põe a tónica nas faltas, para nos convencer a nós, querendo impingir-nos coisas somenos por coisas altamente valiosas.
As papas servidas à cegonha pela raposa iam num prato raso que só esta lambeu. A cegonha vingou-se e serviu papas à raposa num pote de gargalo estreito que só ela pôde comer. Vem no La Fontaine.
A Srª Ministra pode enganar-se também, ao empolar medidas em que só ela crê mais o seu cabido, em lambedelas gostosas. Mas as cegonhas às vezes retribuem. Pura questão de vasilha.

domingo, 29 de março de 2009

Terror de lebre

Os nossos meios mediáticos exploram muito, actualmente, o tema do “Estado Ibérico”, que os inimigos das crises acham que é imprescindível para resolvemos a nossa. Esquecem-se dos povos que também estão na crise, e que vão tentando solucioná-la conforme os seus meios, uns, “cantando, praguejando, batalhando”, em expressão de Cesário, outros, “apedrejando”, em jeito antigo de entifada e apito, outros, remendando aqui, ajudando além, despedindo em força, fazendo trafulhices de arromba sem que sejam chamados à ordem, cada um tentando sobreviver no naufrágio em que todos mergulham. Mas o tamanho das barbatanas não é igual para todos, além de que a maioria não sabe nadar.
Foi o mesmo Cesário que descreveu o povo labutador, que se referiu ao “terror de lebre” com que a peste o fez fugir: “Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre / E a Cólera também andaram na Cidade / Que esta população, com um terror de lebre / Fugiu da capital como da tempestade”.
Uma metáfora insultuosa para a consciência da bravura que sempre definiu o povo português, sem metáfora mas com pejorativo diminutivo: “portuguesinhos valentes”, assim nos apelidámos sempre e o provámos, desde as pancadas do ardoroso defensor do nosso condado dos inícios, à mãe Tareja, fidalga sem igual fibra patriótica.
Tal fibra foi, contudo, demonstrada ao longo do nosso percurso nacional, apesar dos momentos de quebra mais ou menos prolongada mas sempre ultrapassada. Todavia, já não estamos no tempo das Restaurações.
Habituados à pacatez e ao comodismo, vingamo-nos dos opressores - sejam eles governantes, vigaristas ou exploradores - por meio da anedota ou da sátira folhetinesca, revisteira ou romanesca. Não habituados, na nossa maioria, à responsabilização dos nossos actos, sempre confiantes nos Messias salvadores, povo atrofiado e atrasado sempre, sem consciência nacional, queremos é o nosso bem-estar, venha ele donde vier, aterrorizados com o descalabro. Di-lo o nosso Nobel das Letras, que sabe muito.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Monumento

Hoje, a minha Mãe faz 102 anos. Entendi dedicar-lhe um post no meu blog nacionalista, cuja bonita imagem cimeira o meu filho Artur compôs com tanta perspicácia.
Com efeito, a figura simultaneamente mimada e forte da minha Mãe merece um tratamento nacional: uma espécie de doutoramento “honoris causa” – hoje é fácil - por conta do seu apego à vida, concomitante com o seu inteligente terror da morte que, para todos os efeitos, ninguém ainda provou se corresponde ao vazio absoluto ou a outras possibilidades de vidas e de reencontros com os seres amados nesta. Ela sabe quanto aqui é bem amada, quanto os seus caprichos de aceitação ou recusa, ao provocarem reacções por vezes adversas, lhe mostram o seu poder sobre os que a rodeiam, que se zangam e perdoam, e que lhe admiram os seus jeitos de dignidade tanto como o seu poder de evocação – e não só da sua infância, mas também de outras memórias mais recentes, de sítios, acontecimentos, cantares, ditos e nomes que os mais jovens depressa esquecem.
A cinta que envolve o “Jornal de Vouzela”, dirigida a si, vem em nome de Henriques, o apelido de meu Pai, mas era Rodrigues Brás que ela gostaria que fosse assinalado – o sobrenome do seu Pai, que sempre prezou, com grande orgulho pela sua família e pelo seu Pai que, no Carregal, nos inícios da República, conseguiu mandar ir uma professora para a povoação, em breve repatriada, é certo, por crime de maçonaria. Creio mesmo que, mais tarde, a troca dos apelidos nas filhas – Henriques Brás em vez de Brás Henriques, se deveu mais a esse seu orgulho de raça, paralelo à modéstia do meu nobre Pai, do que ao engano do funcionário da Conservatória, como foi dito. Por isso, a sua assinatura, feita com a aplicação da dificuldade, era sempre completa – Rodrigues Brás Henriques, por muito que lhe disséssemos que bastava o Henriques do marido.
Ama a natureza, lembra com saudade as cabrinhas dos rebanhos que pastoreou, fala com os pássaros, na varanda, e conseguiu convencer-nos a deitar-lhes as sobras do pão ou do arroz, a eles destinando as bolachas que rejeita para si, na refeição matinal. Reage aos crimes ou sensacionalismos aterradores dos noticiários televisivos com compaixão e lágrimas, e fica decepcionada se os finalistas do “Preço Certo” não ganham o bolo todo. As tendências críticas que lhe reconhecia no passado, ao acentuarem-se com o avolumar dos anos, tornam-se repetitivas e por vezes massacrantes, mas tudo isso é esquecido em função da idade e do amor que lhe temos.
Se lhe levo pão de manhã, não o come, mas, se lho não levo, protesta e faz-me ir buscá-lo. Há dias, os dois pedacinhos de pão iam encimados com uma fatia de queijo e duas de paio. Mas achou que o pão era pouco. –“O pão agora de manhã está duro, não presta!” – “O que não presta é não haver pão” – foi a resposta imediata.
Por isso não acredito quando se faz esquecida. Sabe muito, a minha Mãe, o seu discurso tantas vezes sentencioso, que nos espanta, o prova também, além das pequenas astúcias e caprichos do seu comando. Merece o “honoris causa”!

terça-feira, 24 de março de 2009

A Boceta (cont.)

Retomo a questão da Igreja. Considerar que esta, sobretudo no que concerne o Papado, deveria despojar-se dos seus ouropéis, obtidos à custa do atraso espiritual e da boa fé dos acólitos - que a Igreja vai conseguindo nas suas práticas - e repartir com os povos oprimidos, não levaria a lado nenhum em termos de providência e ficaríamos mais pobres em termos de arte. Sem o esplendor das catedrais, dos vitrais, dos mosteiros, dos frescos disseminados pelo mundo cristão, como manifestações do espírito do Homem tentando perspectivar os mistérios do Além, por vezes em autênticas radiações luminosas – e cito apenas, com velha ternura, o apoteótico esplendor dos vitrais da Sainte-Chapelle – a Terra não seria um espaço tão rico de beleza pela criatividade e imaginação dos artistas que as produziram, mau grado as considerações filosóficas de Rousseau que vê nas maravilhas da natureza argumento sine qua non comprovativo da existência de Deus. Porque o Homem consegue ainda ser a maior das maravilhas – no Bem como no Mal, na monstruosidade como no poder de invenção e na criatividade.
Se houve gastos inconvenientes, se continua a haver, podemos pensar que sempre os houve e todos pensam que sempre haverá. Vem nos livros. Retomo Gil Vicente e o seu “Auto da Feira”, onde o Diabo foca, com grande mestria, o desconcerto económico e social que vai no mundo: “E mais as boas pessoas / são todas pobres a eito; / e eu por este respeito, / nunca trato em cousas boas, / porque não trazem proveito. / Toda a glória de viver / das gentes é ter dinheiro, / e quem muito quiser ter / cumpre-lhe de ser primeiro / o mais ruim que puder.”
Ficam-nos a matar estes ditos, de actualidade persistente.
E quanto aos despropósitos da Igreja, as falas de Mercúrio à Roma (/Cristandade) desavinda, contêm ainda a solução: “tenha sempre paz com Deus / e não temerá perigo”.
É o que vemos nos Papas – a busca da paz com Deus, a obediência à cartilha. E para os que nela crêem, a cartilha deve ser eterna.

sábado, 21 de março de 2009

A Boceta

Foi Pandora a mãe Eva dos antigos Gregos, criada pelo ferreiro Hefaístos por ordem de Zeus, como instrumento de vingança sobre Prometeu, para lhe destruir a raça humana que este criara com o fogo roubado do Olimpo. Assim, enviada à Terra munida de todas as graças, e mais a boceta dos males, encantou Epimeteu, que casou com ela apesar da oposição do irmão deste, o Prometeu de maus fígados. Aberta a boceta da Pandora, os maiores males se espalharam descontroladamente na Terra, consumando-se a vingança de Zeus sobre o pobre Prometeu, para mais, agrilhoado.
Vem isto a lume, por conta da opinião de alguém da “Opinião Pública” da Sic, que chamou à Igreja, fechada à humanidade, vivendo autisticamente, de longa data, segundo os seus modelos de ostentação granjeados à custa da ignorância, fanatismo e miséria dos povos a quem arranca os dinheiros com a promessa do paraíso, responsável pela difusão dos males, qual boceta de Pandora, ao não regredir desse autismo.
Assim, o Papa, que em Angola se mancomuna com os governantes, igualmente pouco escrupulosos na distribuição das riquezas, dirigindo-se aparentemente às massas, que o recebem com afecto provindo de velho preconceito fanático, a quem aconselha a virtude e desaconselha o preservativo como fonte de vício, é repudiado na “Opinião Pública” por alguns, que entendem chegada a hora de a Igreja despejar os seus bens pelos pobrezinhos em vez de pretender politizar dentro de ideias já muito estafadas. Mas a verdade é que a boceta há muito que se destapou.
E não é a Igreja que se deve condenar. A Igreja, apesar das suas falhas humanas – e não podemos esquecer o nosso desassombrado Gil Vicente, mandando para a Feira das Graças, “as Igrejas, os Mosteiros, os Papas adormidos”, convidando-os vestir as “samarras dos antecessores”, mais humildes, – pois, apesar disso e até dos crimes inquisitoriais apontados, a ela se deve a difusão de tantas luzes da solidariedade e da cultura, feitas pelos seus vários apóstolos no mundo inteiro, homens e mulheres abnegados que em nome da religião contribuiram e contribuem para tornar o mundo um pouco menos cruel.

quarta-feira, 18 de março de 2009

Os cabedais

De “Os Filhos de Saturno” de António José Saraiva, transcrevo a parte final do texto 9 – “Capitalismo”:
Mas para a sociedade mundial do nosso tempo, com os seus diferentes níveis e zonas de riqueza, com a possibilidade de os mais ricos dominarem os mais pobres, e sobretudo com a recusa, tanto maior quanto mais o capital cresce, de quaisquer valores que não sejam económicos, tecnológicos, produtivos, não encontrei ainda uma resposta.”
Texto escrito em 1974, com a lucidez de sempre, iniciado com a referência ao “cabedal” do sapateiro, com origem no latino “capitale” que o tornou “capitalista” - parcial, se simultaneamente patrão e trabalhador (ou explorador de si próprio), ou integral, como explorador de outro sapateiro – o trabalhador explorado. E todo este discurso em torno dos cabedais, integrado numa ideologia marxista, que opunha capital e trabalho, naquele tempo do Karl Marx.
Mas há muito o capitalismo ultrapassou essa dicotomia mais ou menos criteriosa de ganho/trabalho, explorador/explorado. O explorador tornava-se capitalista pela exploração do trabalhador, mas fornecia-lhe trabalho, era, pois, elemento de desenvolvimento, ou benemérito social.
Hoje em dia, o que mais se vê, são os capitalistas egocêntricos, os que vivem na sombra, interessados, sim, na satisfação das seus próprias necessidades e dos seus, quer materialistas, se confinadas às riquezas materiais várias, quer mais espiritualistas, se confinadas aos gozos das artes, das viagens pelo mundo, da vivência milionária.
Mas a forma como angariaram esse capital, foi através da extorsão, da gatunice, da fraude, dos jogos escusos, do esbulho puro e simples, da falcatrua sem pejo, da desonestidade, da falta de amor pátrio, pela sangria que a cada passo provocam nos dinheiros que não são deles. Ratoneiros sem ponta de moral, fundando empresas com o dinheiro alheio e escapando, sempre isentos de castigo, numa trama onde ninguém pode acusar ninguém, num país sem rei nem roque.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Ontem, hoje e amanhã

Senti hoje o enternecimento da saudade, no retorno a um passado de incisivas mas mansas falas – de governantes e de eclesiásticos – impondo obrigações que nos esforçávamos por cumprir. Mas não éramos estimulados ao cumprimento só através das falas percucientes. Havia escritos insignes, e recordo um que me maravilhou, quando o topei numa parede da escadaria do liceu de Aveiro – de certeza agora já apeado. Era de Salazar o escrito, bem demonstrativo das profundas tribulações da sua vida inteira: “Se tu soubesses o que custa mandar, gostarias de obedecer toda a vida”. E foi assim que nos pusemos a obedecer e nós próprios, povo, nos definíamos por um amesquinhante colectivo, apesar da utilidade da lã da sua produção para o burel das roupas.
Hoje, embora pareça menos bem, na nossa democracia liberal, tão ampla sujeição, vê-se que o gosto de mandar e de se ser obedecido ainda permanece vivo. Há pouco, senti essa satisfação na voz da nossa Ministra da Educação, lembrando, em voz contida, quanto escolas há que já só fecham no final do dia, ocupadas em tomar conta dos discentes de manhã à noite, obedientes às imposições superiores, tal como era costume no Estado Novo. E a Ministra prometeu mesmo continuar a política da dilatação horária, até à total sujeição das escolas.
Por seu turno, o Primeiro Ministro todo se escama com as rebeliões, e mesmo de longe nos critica em doloridos brados, sem nenhuma contenção discursiva - que a contenção só impende actualmente sobre os empregos e as despesas. Tais zangas a tanta distância – estava em Cabo Verde então - são exemplos de indiscrição que, embora envergonhem alguns sensíveis à vergonha, não deixam de comover os sensíveis à dor, que somos muitos, e habituados a vergar, como nos descreve o Fado. Por isso, amanhã assim será também, ao contrário do “nessuno saper potrà” da cantiga da Doris Day.
A diferença é que Salazar era realmente afeiçoado à pátria dos seus avós, e hoje perdeu-se a ideia do parentesco, cada um governando mais para seu próprio governo, bem apoiados uns nos outros, cada vez com maior arreganho, em progressão sem controle.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Uma peça de teatro

Escrita em 1979, em plena efervescência pós-abrilina, entende a Ilda que se mantém actual e que deve ir para o meu blog, transcrita do livro “Cravos Roxos”. É por isso a ela, que a dedico aqui.

EXERCÍCIO ESCOLAR
(Cenário do Argumento e Final: despido. Apenas os cortinados por trás dos homens do CORO, vestidos de negro.
No II e V Quadros, o CORO manter-se-á a um dos lados da cena.)

ARGUMENTO
CORO DO PARTIDO
Necessário foi, senhores,
Que nas trevas que vivemos
- Cinquenta anos de dores –
Surgisse luz redentora
Que quebrasse a maldição.
Revolução salvadora
Elegeu os sofredores
Castigou os opressores,
Repôs o Bem e a Justiça,
A Igualdade, a Liberdade,
Fraternidade, União,
Deu ao pobre a unidade,
Ao rico a humilhação.
Primavera esclarecida,
Bendita revolução,
Conquista cheia de glória
Das páginas da nossa História.

I QUADRO
(No monte. Não perceptível ainda, pela escuridão envolvente. Música suave, “SONATA AO LUAR”, op. 27, nº 2, de Beethoven. Uma luz gradual vai destacando a figura graciosa da PASTORA no monte. Logo uma marcha guerreira (GRÂNDOLA, por exemplo), de intensidade rítmica crescente, substitui aquela, coincidindo com o aparecimento súbito do DEMOCRATA, em trajes mefistofélicos.)

DEMOCRATA: Vem aqui, linda donzela, que te quero esclarecer.
Tu vais agora ser livre, muito feliz vais viver.

PASTORA: Mas, Senhor, eu sou feliz, juro por Deus e o meu bem,
Sou feliz porque sou livre, não tenho raiva a ninguém.

DEMOCRATA: Dizes isso tão segura, não passas de uma ignorante.
Liberdade consciente só teremos doravante.

PASTORA: Não entendo o que dizeis, explicai-me isso melhor:
Porquê agora ser livre é diferente, Senhor?

DEMOCRATA: Agora haverá partidos, para poderes escolher
O que quiseres que governe, que mais garantias der.

PASTORA: Disso não entendo eu, mas explicai-me, Senhor,
Que garantias são essas que prestam tanto favor.

DEMOCRATA: As que enobrecem o povo e o libertem da ignorância,
Lhe dêem mais reflexão e o calor da abundância.

PASTORA: De reflexão não entendo, ignorante não me julgo.
Tenho o saber experiente que é o saber do vulgo.

DEMOCRATA: Podes mudar de ofício, deixar trabalho tão pobre,
Ascender a melhor cargo, alcançar posto mais nobre.

PASTORA: Minhas ovelhas não deixo, são minhas boas amigas,
Não tenho mais ambições, desdenho de outras fadigas.

DEMOCRATA: Assim provas tua inépcia, teu espírito sem enfeite.
Sonhar é proprio do homem, desejar, puro deleite.

PASTORA: Tenho o monte e o céu por palco, esses espaços me bastam,
São demasiado amplos, doutros desejos me afastam.

DEMOCRATA: Monte e céu são paisagem, não podem satisfazer.
A alma quer mais espaços, os espaços do poder.

PASTORA: Todo o poder que desejo é a meus pais vir a dar
A saúde na velhice e o amparo no meu lar.

DEMOCRATA: Se isso queres, donzela, terás de seguir-me então.
Porei o mundo a teus pés, a glória terás na mão.

PASTORA: Ao meu bem já entreguei a guia do meu destino.
Só dele espero ajuda, tudo o resto é desatino.

DEMOCRATA: Toda essa teimosia é fruto de cretinice.
Tenho muito p’ra te dar, põe fim a tanta pequice.

PASTORA: Dizei-me, então, tentador, o que devo eu fazer
Para alcançar a riqueza e a fama merecer.

DEMOCRATA: Escolherás o partido de ideais vingadores,
Que livre o povo oprimido da opressão dos opressores.

PASTORA: Mas os direitos do povo não são sempre defendidos?
Não é esse o objectivo dos diferentes partidos?

DEMOCRATA: Astúcia e triste dolo imperam na maioria.
Só um partido é sincero, só esse será teu guia.

PASTORA: Dessa forma não entendo porque é bom haver partidos,
Se só devo escolher um p’ra vingar os oprimidos.

DEMOCRATA: Este partido trará, da vil miséria o desgosto
E a terra a quem a trabalha com o suor do seu rosto.

PASTORA: Visto que insistis assim, aceito a vossa proposta
Com submissão e humildade. Eis, Senhor, minha resposta.

(Fica prostrada, enquanto se repetem os motivos musicais da marcha.)

II QUADRO

(Sala ricamente mobilada, destacando-se, ao fundo, o dístico SALA DAS PROMOÇÕES. Figurantes vários, vestidos a rigor. Ao centro, a PASTORA, sentada em cadeirão de espaldar e com imponente manto. Música ligeira inicial: DANÇA RITUAL DO FOGO de M. Falla.)

O FADISTA: A esplendente garganta que em acordes de altiva sonoridade entoa o fado do povo, não mais gemido ou chorado, merece uma guitarra em galardão, que deponho na sua nívea mão.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!


O DESPORTISTA: Medalha de ouro para vós, que vedes o desporto progressistamente, não como meio de obter frívolas vitórias deformativas da personalidade, mas de formar o corpo são, sem baixo espírito de emulação.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O COMODISTA: Eu, Comodista, estou-me borrifando para os lados donde os ventos soprem. Apoio esta dama como outra qualquer, nas tintas para o que der e vier, desde que me não incomodem.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O ANARQUISTA: Elegemos-vos gostosamente chefe dos anarcas, pois que topastes o esquema dos nossos ideais, que apoiam a desordem como sistema e defendem os instintos como virtudes nacionais.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O PATRÃO DA EMPRESA: Em acção de uma coerência sem quebras, de dedicação pelo nosso mister, que a fez subir, subir, com rapidez, a dama, aqui presente, vai ser empossada no cargo do anterior presidente, aqui prostrado.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O GENERAL: No vosso peito, ilustre dama, vou prender a grã-cruz da ordem descolonizadora, pela justa defesa que tomastes dos princípios anticolonialistas e o destemido ataque que fizestes aos opressivos erros fascistas.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O LENTE: As apolíneas musas vão pousar, por intermédio do seu servo ante vós curvado, singular coroa láurea, em quem tão súbito absorveu o sal da cultura proletária,

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

O PRESIDENTE: Eu, Presidente, invisto V. Exª no cargo de Primeiro Ministro pelo poder jamais visto de articular palavras brilhantes, que traduzem da nação inebriante visão.

PASTORA: Como me sinto encantada! Rainha p’ra ser servida, santa p’ra ser adorada!

CORO DO PARTIDO: Conquista bem merecida! Vitória bem alcançada!

(Mesmo motivo musical do início do quadro.)
III QUADRO

(Sala do palácio. A PASTORA, embevecida, escuta a ODE À ALEGRIA da NONA SINFONIA de BEETHOVEN. De súbito, o ANJO surge, num halo de luz.)
PASTORA: Jesus! Jesus! Socorrei-me! Que visão esplendorosa ante meus olhos se abre?

ANJO: Sou o Anjo do Senhor, que do Céu desceu à Terra pedir contas dos teus actos.

PASTORA: Dos meus actos, Senhor Anjo? Não tendes que reclamar! Paz, bem-estar social, fraternidade geral, eis o quadro equilibrado que ponho perante vós.

ANJO: Consola-me verificar tão íntima satisfação, tão encantado sentir. Fui todavia informado que de graves mazelas enferma este reino, onde se expende em excesso e se produz deficientemente.

PASTORA: E para que se há-de produzir mais? E porque se há-de expender menos? Gastos diminutos tornam diminuto o prazer de viver. Produção excessiva aponta para uma abundância de capital, sinónimo, como sabeis, de exploração mesquinha da máquina humana trabalhadora pela desumana patronal.

ANJO: De política não entendo, mas não me parece forçosa a aliança que solidariza capital e exploração.

PASTORA: Desconheceis, Anjo meu, os eflúvios poderosos emanados do papel moeda – mesmo em inflação como o nosso – sobre o seu possuidor. O raquítico se faz hércules, o humilde arrogante, o ofendido vingador.

ANJO: Bem depressa o convívio com quem te serve te tornou ciente dos seus defeitos.

PASTORA: Antes virtudes, Senhor Anjo. A evolução é própria do homem, não lhe podeis exigir uma perfeição tão divinamente estática como a vossa.

ANJO: Esse princípio eufórico conduz a exageros reprováveis. Talvez por isso ouço falar na vossa desordem geral. Nas escolas, por exemplo, a liberdade em plenitude provoca situações maquiavélicas que desprestigiam o vosso ensino.

PASTORA: Contra o que afirmais, uma plena liberdade defende os alunos da escravização ao trabalho e ao mestre, tão opostos ambos à sua natureza de instintos puros que devemos acalentar.

ANJO: Sendo assim, não podes esperar resultados positivos, numa campanha urgente de alfabetização do país.

PASTORA: Não se trata propriamente de alfabetizar o país com urgência, porquanto bem sabeis quanto a civilização corrompe os homens. Trata-se, sim, de retornar ao primitivo selvagem, muito mais próximo da virtude exigida por Deus, como tendes presente.

ANJO: Mais justo seria então fechar as escolas...

PASTORA: Por outro lado, são necessário técnicos que nos irmanem com o nível civilizacional dos outros povos.

ANJO: Cais, forçosamente, em contradições: por um lado, pretendes o progresso, sinónimo de corrupção, por outro lado a ignorância, expressiva de bondade...

PASTORA: Mas esta última supera o primeiro, podeis confiar. Além do mais, a falta de matérias-primas origina a diminuta precisão de técnicas que as apliquem. Por isso, se as nossas estradas se esboroam facilmente – e observo-vos, de passagem, com mágoa e mesmo reprovação, quanto a invernia nos é nociva – também a ausência de combustíveis nos faz retomar meios de transporte mais singelos e económicos que não exigem o conserto daquelas, pois o rodado das carroças é menos sensível às fendas. Se as pontes ruem com as cheias, ou as casas se destelham com os vendavais, ou os cabos eléctricos se despedaçam de vento e de velhice, tenhamos presente a máxima de que o sofrimento na Terra prepara a ventura em Deus.

ANJO: Admiro os teus sentimentos cristãos, mas posso garantir-te que eles não são gerais. Há dias, por exemplo, ao guichet de uma repartição pública, fui atendido com muita incivilidade, e o mesmo me sucedeu no hospital, onde o pessoal paramédico se revelou excessivamente descortês e até menos humano com os doentes.

PASTORA: Mas, Senhor Anjo, se tivésseis revelado a vossa identidade, logo as maneiras mudariam. Foi um risco voluntário!

ANJO: Esqueces que o civismo, a cortesia, se não confundem com a subserviência. Devem ser atributo de todo o homem para com o seu semelhante, sem privilégios de castas.

PASTORA: De toda a maneira, precisamos de nos couraçar contra a adversidade, que não propicia o agudizar de sensibilidades. E graças a Deus, ninguém nos leva a palma em generosidade e hospitalidade. Quando os peditórios se tornam necessários para acudir aos pobres – e chamo especialmente a vossa atenção para a expansão humanitária da quadra natalícia dedicada ao Deus Menino – todos se despojam em favor daqueles. Quando chegam emigrantes à Pátria, até os lares mais principescos lhes oferecem refeições. Atitudes estas muito positivas.

ANJO: Apesar disso, não sou apologista da mendicidade, nem da espectaculosidade da esmola. Pedir parece-me indigno do homem. E quanta satisfação íntima, quanto adormecimento das consciências não resultam do simples acto de dar!

PASTORA: Mas Deus prometeu aos pobres o seu Reino! Vem na Bíblia...

ANJO: Não, não deturpes os preceitos bíblicos. Tratava-se de outros pobres.

PASTORA: Oh! Meu Senhor! Não penso competir convosco em debate literário. Mas só vos lembro que os actuais estudos linguísticos possibilitam uma maior abertura de leituras.

ANJO: Bem sei, a ambiguidade... Um processo, como qualquer outro, de se alterar, tantas vezes, o valor primitivo dos textos, num rebuscamento a que falta a virtude da simplicidade.

PASTORA: Mas torna-se inegável a sua maior dimensão. Por isso o nosso lirismo é tão apreciado, mesmo lá fora.

ANJO: Deixemos o assunto, que me parece estéril. Outros motivos me preocupam mais em vós. O modo, por exemplo, como passais o tempo em protestos, reivindicações, greves sindicais, discursos exaltados...

PASTORA: Bem vedes que o povo, tantas vezes sufocado por um regime opressivo, acumulou uma vitalidade de expressão e uma vibratilidade de acção que devemos respeitar. É, aliás, uma forma específica de se proporcionar horas de diversão gratuitas, dada a incompatibilidade dos seus salários limitados com os preços elevados das diversões a pronto.

ANJO: Mas parece-me a mim essa uma forma de se precipitarem irreflectidamente para uma vida mais mesquinha.

PASTORA: Isso é porque desconheceis o nosso provérbio “Morra Marta, morra farta”. De comida ou de prazer, indiferentemente. É um provérbio ambíguo.

ANJO: Observo em ti uma visão eufórica e um tanto estouvada dos problemas que afectam o teu país. Por esse motivo, reconhecendo a inutilidade das minhas observações, retiro-me desportivamente, deixando-te entregue à ampla liberdade do teu humano arbítrio.


(O Anjo desaparece num rasto de luz. Retoma o motivo musical do início quadro.)


IV QUADRO

(Mesmo cenário de III. Na estereofonia, toca, dos Gemini, DAILI-DOU. A uma mesa, ao centro, PASTORA e DEMOCRATA conversam.)

PASTORA: Senhor Democrata, como correio-geral dos meus reinos, deveis confiar-me o que os vossos olhos têm neles observado. Igualmente vos darei parte daquilo que de vós exijo no exercício das vossas funções.

DEMOCRATA: Às vossas questões responderei, a vossos mandatos obedecerei.

PASTORA: Consta-me que o meu Governo se tem caracterizado por um excesso de aumentos. Concordais?

DEMOCRATA: Depende do ponto de vista, Excelência, ou, segundo um conceito dialéctico, cada princípio implicará, naturalmente, o seu oposto.

PASTORA: Explicai-me isso melhor.

DEMOCRATA: O aumento dos preços corresponde a uma diminuição da produção, tal como o aumento do desemprego a uma diminuição de postos de trabalho, ou o aumento populacional a uma diminuição territorial... Destas antíteses, o povo constituirá a síntese, como parte directamente interessada.

PASTORA: Tudo isso me parece remediável. Assim, novos decretos se acrescentarão à Constituição, proibindo o excesso de consumo, tal como o excesso de produção de filhos.

DEMOCRATA: De filhos, Excelência?

PASTORA: Sim, cada casal não poderá gerar mais do que um filho. Desta forma, dada a dificuldade de importação da pílula anticonceptiva, instituir-se-á a lei do aborto nacional, aplicável sem excepções.

DEMOCRATA: Um pouco parecido, Excelência, com o que fazemos nas ninhadas prolíficas de cães e de gatos. E quanto ao excesso de consumo...

PASTORA: Fica instituída a lei da dieta nacional, a fim de se desenvolver no nosso povo, de injustificáveis e desprestigiantes tendências para a obesidade, o cuidado pela magreza estética.

DEMOCRATA: Assim se fará, Excelência. E quanto ao excesso de desemprego...

PASTORA: Fica instituída a lei da bicha nacional como forma de ocupação diária. Haverá bicha para o leite e bicha para a carne, bicha para os impostos e bicha para os vencimentos, bicha para os autocarros e bicha para os postos de socorros urgentes.

DEMOCRATA: Achais esse decreto importante, Excelência?

PASTORA: Sem dúvida, contribuirá não só para uma ocupação das horas livres, que serão todas, mas para a criação de um ordeiro espírito de resignação e alinhamento nacional.

DEMOCRATA: Pensais em tudo, Excelência. E quanto ao território reduzido...

PASTORA: A nossa pátria é o mundo, a nossa língua universal. Em qualquer latitude ou longitude sempre uns braços abertos acolherão os excedentes populacionais do nosso país.

DEMOCRATA: Todavia, a redução pátria estreitou-nos os recursos, inegavelmente...

PASTORA: Lembrai-vos do vosso preceito dialéctico: tudo uma questão de focalização: a redução de uns significa o alargamento de outros. E não há dúvida que as verdadeiras potências, as que lutam calorosamente contra a oposição e o colonialismo, puderam dilatar extraordinariamente as suas máximas igualitaristas, com a nossa rejeição territorial. O mundo ficou mais rico.

DEMOCRATA: Tendes razão, Excelência. Outra questão se me afigura bem mais grave. Observa-se no reino uma precária situação económica, manifesta na escassez da moeda nacional e estrangeira.

PASTORA: Quanto à nacional, não nos preocupemos. Temos árvores com polpa bastante para a fabricação do papel-moeda. Quanto à estrangeira, não nos faltam, felizmente, amizades escorreitas nos países financiadores, interessados em alargar os seus domínios de fraternidade universal.

DEMOCRATA: Sendo assim, podemos tranquilizar-nos. Jamais nos faltarão recursos. Um outro problema de certa acuidade é o da reforma do ensino. Como sabeis, pretende-se fazer da escola um meio directo de intervenção do jovem aluno na sociedade a que ele pertence com aguçado sentido de responsabilidade. O facto tem, contudo, levantado celeuma, sobretudo entre professores cuja especialidade dificilmente se coaduna com um ramo de ensino de maior abertura física.

PASTORA.: Não noto a gravidade da situação. Para o ensino activo das escolas, levar-se-ão os materiais necessários à formação dos verdadeiros homens de amanhã. A semente e os adubos para a transformação dos campos de recreios anteriores em campos agrícolas, de superior utilidade nacional e igualmente favorecedores da ginástica escolar. O ferro e o aço para os ferreiros e os ferradores das alimárias, aumentadas estas em função dos transportes públicos. A cal para os pintores. Em suma, será a escola aberta uma vasta forja de cabouqueiros de um país em renovação.

DEMOCRATA: Mas os tais professores, Excelência, os de especialidades incompatíveis com o ferro e os adubos?

PASTORA: Não existem tais incompatibilidades. Os professores de línguas explicarão na língua da sua especialidade os nomes das coisas e das atitudes que forem utilizando na sua esfera de acção, os de história, contarão os feitos brilhantes dos heróis, ligados ao esplendor do metal das armaduras e dos arreios das cavalgaduras, os de filosofia explicarão ao lançar da semente, o mistério metafísico da criação. Quanto aos de ciências, fácil se torna imaginar as alianças possíveis entre os estudos concretos e os estudos abstractos.

DEMOCRATA: Todavia, Excelência, deveis contar com a inadaptação dos professores mais idosos, ou dos de menor robustez física. Especialmente por altura das podas e das colheitas, que exigem jeito trepador e sentido de equilíbrio.

PASTORA: Pôr-se-ão, como gestores do ensino aberto, nas escolas, o lavrador e o ferreiro, o ferrador, o caiador e o marceneiro, que orientarão tecnicamente em boa língua castiça, além de fornecerem os escadotes para o equilíbrio.

DEMOCRATA: Em tudo haveis pensado, Excelência. E cuidais que essa forma de ensino favorece a formação de médicos e de engenheiros?

PASTORA: Como não? Os hábitos de análise dos materiais em decomposição como o estrume, ou as ligas como o aço, despertam no aluno o interesse pelo estudo das células, e o dos corpos em estudos já mais avançados. Contudo, parece-me secundária a formação de médicos e engenheiros num país como o nosso, de acentuados recursos agropecuários.

DEMOCRATA: Sem dúvida que os hábitos de trabalho físico neste território com tão saudável escassez de poluição, preservam notoriamente a saúde, o que exclui os médicos.

PASTORA: E o retorno à enxada e ao martelo, foice e outros instrumentos tão antigos exclui igualmente os engenheiros.

DEMOCRATA: Em tudo haveis pensado, Excelência, e tendes razão como sempre. Por isso as consultas externas nas nossas Caixas de Previdência e outros organismos de medicina socializante se efectuam num ápice, o que comprova a robustez física do nosso povo.

PASTORA: Outro problema me preocupa mais. Para a instauração de uma democracia efectiva no nosso país, pensei em chamar ao governo os meus familiares e os homens bons da minha aldeia. Cada um desempenhará o cargo competente, e desta forma a democracia não será mais uma palavra vã, mas bem à nossa medida.

DEMOCRATA: Excelente ideia, de um alcance longo, que mergulha nas fundas raízes da palavra.

PASTORA: Sinto igualmente saudades das minhas ovelhas e dos meus recos, por isso vos peço que façais transportar a aldeia em peso, com os seus homens e as suas bestas, para os meus paços.

DEMOCRATA: Assim se fará, Excelência.

(Repete a música do DAILI-DOU.)


QUADRO V

(Sala das Investiduras. Os homens bons da aldeia formam semi-círculo, em trajes domingueiros. Cada um deslocar-se-á, a seu tempo, para junto da PASTORA, retomando posteriormente o seu lugar. A PASTORA, de longo manto, ao centro, vai-lhes entregando as Pastas respectivas, ao som dos guizos dos rebanhos, em surdina.)

PASTORA: A vós, meu pai, que de sol a sol mourejáveis na nossa aldeia, e que tão correctamente distinguis os terrenos de semeadura dos estéreis, designo-vos Ministro da Pradaria Nacional, cônscia de que os campos irão florir em pujança, entregues nas justas mãos reformadoras.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, meu bem, que nas águas ora cristalinas ora turvas da nossa terra vos dedicáveis frequentemente à pesca das bogas, faço, com emoção, Ministro da Pescaria Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Joaquim, que como emigrante longe do solo pátrio suastes o pão amargo do servilismo ao estrangeiro, nomeio-vos Ministro da Cordialidade Internacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio João, apaziguador das querelas do povo da nossa aldeia que frequentemente explodiam com arreganho e hombridade, designo-vos Ministro da Cordialidade Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Romão, que pacientemente ao longo da vossa vida fostes juntando os tostões no interior do vosso colchão de palha moída, distingo-vos com o cargo de Ministro do Capital Nacional e Internacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Zeferino, que com alegres histórias maliciosas divertíeis os serões das nossas desfolhadas, confio a Pasta melindrosa da Promoção Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Francisco, que por falta de transporte, costumáveis andar à boleia pelos rudes caminhos da nossa aldeia, elejo-vos com simpatia, Ministro do Transporte Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio José, que especial jeito reveláveis para a aquisição gratuita de produtos no minimercado da nossa aldeia, concedo a pesada Pasta do Comércio Nacional e Internacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Crispim, de tão notável gosto para a fabricação cuidada de anzóis e redes, em cujos fios profusamente envolvíeis os vossos ouvintes maravilhados, confiro a Pasta da Indústria Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

PASTORA: A vós, tio Manuel, que indignado com os sucessivos atropelos à ordem, dos vossos concidadãos, gostosamente os denunciáveis ao regedor da nossa aldeia, nomeio, com particular empenho, Ministro da Fiscalização Nacional.

CORO DO PARTIDO: Justiça foi feita a tempo!
Glória a Deus, nos Altos Céus!

(O coro dos guizos faz-se mais nítido.)

PASTORA: De todos vós, Senhores Ministros aqui reunidos, amplo apoio pretendo para a dolorosa missão de governar que nos cabe e nos une num sagrado objectivo de servir democraticamente a nossa pátria, entregue, com justiça e em boa hora, à ampla maioria popular.

(Guizos.)

FINAL
Coro do Partido:

Neste país transformado
Por revolução de flores
Que aniquilou prepotências
E irmanou ricos e pobres
Trabalhadores e gestores
Num ideal renovado
De comum realização
Só se escuta o martelar
Dos malhos dos ferradores
Dos maços dos calceteiros
E os gritos dos operários
E os olés dos boieiros
E o chocalhar das ovelhas
E os protestos dos doutores
E os risos dos proletários
E os discursos partidários
E o gorjear dos cantores.
Pelas ruas transformadas
Em caminhos pedregosos
Onde as flores são espontâneas
E os frutos tão saborosos,
Brotam as almas mais cândidas
E os sentimentos mais soltos.
Eis a mensagem, senhores,
Da nossa festa das flores.

(Assim fenece a farsa).


Era assim em 1979. Não é totalmente assim em 2009. A CEE / UE possibilitou a transformação dos caminhos em autoestradas vertiginosas. E nós apressámo-nos a “soltar” os sentimentos com cada vez mais arreganho - o nosso "salero".

terça-feira, 10 de março de 2009

O erro e as estrelas

Dantes, a instrução primária era assente sobre a memorização – de regras (gramaticais, aritméticas...) - e de conhecimentos sobre história, geografia, ciências... que, duma forma progressiva iam ajudando a estruturar o pensamento. No caso do português, a gramática tradicional fornecia a distinção entre os elementos morfológicos, a organização sintáctica, o estudo da ortografia, com cópias, ditados, correcção dos erros... O ensino secundário, recuperando esses valores que ajudavam à descodificação do sentido dos textos, introduzia outros valores – os da formação das palavras, por exemplo, por via erudita, mergulhando directamente no latim clássico, por via popular, tendo em conta as transformações fonéticas e semânticas sofridas na linguagem oral, que a invasão de outros povos contribuiria também para enriquecer. A adaptação de estrangeirismos foi constante, acompanhando o progresso e os inventos. As alterações à escrita iam-se fazendo, num objectivo de simplificação - de fonemas, de acentos - mas de forma racional, sem grande desvinculação da etimologia, exceptuando os ph>f, as duplas consoantes, tais os ll...
A nossa língua deu origem a outras, que, naturalmente, seguiriam o seu próprio caminho, mercê da junção de características provindas da multiplicidade das suas etnias, que cada vez mais foram adulterando a sua estruturação sintáctica, lexical, fónica e ortográfica, sem preocupação pela primitiva etimologia clássica.
Daí que um Acordo Ortográfico entre as línguas lusófonas, já que se trata de línguas diferentes, não tem sentido que não seja o de subserviência económica a povos com maior expansão mundial. Como diz Herman José, através de uma das suas personagens - o diácono Remédios - “Não havia necessidade”...
Todo este longo intróito vem no sentido de contestar um comentário anónimo que transcrevo:
Mas os pontapés na gramática são a evolução da língua! É tão belo e emocionante assistir ao nascer de vocábulos e regras gramaticais como ao nascimento de estrelas ou de bebés! Sem esses pontapés ainda estávamos a falar indo-europeu”.
Trata-se de uma frase elegante, até poética, muito progressista, mas falsa. Porque não se trata tanto de pontapés na gramática mas de um fenómeno de evolução que justifica o faseamento da própria evolução dos hominídios, segundo a Ciência. Os pontapés na gramática são de outro calibre, e não têm beleza.
Aceitar esses pontapés como elementos do Belo, quando só sentimos indignação perante os dislates – e estou em crer que ao sr. Anónimo, que tão bem escreve, só provocarão o sorriso superior – é pretender desculpabilizar paternalisticamente e hipocritamente um grave fenómeno de penúria intelectual que infelizmente nos caracteriza. É, pois, um falso comentário desdenhoso, que não abona moralmente quem o escreveu.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Pedagogia do erro (cont.)

Retorno à vaca fria, ou aos meus carneiros, para utilizar uma linguagem do foro zoológico na designação do assunto em questão – os erros do magalhães – que, volto a frisar, não completei no texto anterior, por excesso dos caracteres exigidos em caso de participação dos leitores na coluna a eles reservada.
Fez-se um extremo burburinho em torno dos tais erros e até se criticou Sócrates por, deslumbrado pelo fulgor do seu aparelho técnico, ter descurado as questões da correcção linguística, mas, afinal, não parece isso de espantar numa figura de relevo nacional, que protagonizou as alterações da escrita do português, já com a ideia fisgada da criação do magalhanês de seu prestígio pessoal.
Não há muito li também uma frase que vem em abono das cogitações linguísticas do nosso Primeiro Ministro, ao alegar que os pontapés na gramática são tão belos como o nascer de uma criança ou, mais liricamente – (porque creio que se não enxerga isso tão bem, a menos que haja telescópio ao pé) – o nascer de uma estrela, frase incontornável, de tão desmedida, que me deu a ânsia de demonstrar também as minhas capacidades observadoras da nossa revolução cultural, como o próprio Mao não desdenharia de a ter providenciado. Assim, transcrevo um excerto de uma peça escrita nos anos setenta, após o desmanchar caótico das nossas convicções nacionalistas, e das nossas vidas vandalizadas. O tamanho excepcional do texto implica, naturalmente, que ele não será enviado para a coluna dos leitores, por via dos cortes.
A peça – “Exercício Escolar” – pretende simbolizar a criação de um novo “status quo”, pondo em destaque uma figura de Pastora que, inicialmente modesta e sem ambições, se deixa tentar pela voz satânica do Democrata, passando a governar com a competência dos seus interesses pessoais, tal Sancho Pança a sua “Ilha da Baratária”, embora este com um senso moral superior. Peça demonstrativa de qualidades proféticas que não são de escutar, quais as de Cassandra preconizando, em vão, a queda de Tróia:

“....DEMOCRATA: Sendo assim, podemos tranquilizar-nos. Jamais nos faltarão recursos. Um outro problema de certa acuidade é o da reforma do ensino. Como sabeis, pretende-se fazer da escola um meio directo de intervenção do jovem aluno na sociedade a que ele pertence com aguçado sentido de responsabilidade. O facto tem, contudo, levantado celeuma, sobretudo entre professores cuja especialidade dificilmente se coaduna com um ramo de ensino de maior abertura física.
PASTORA.: Não noto a gravidade da situação. Para o ensino activo das escolas, levar-se-ão os materiais necessários à formação dos verdadeiros homens de amanhã. A semente e os adubos para a transformação dos campos de recreios anteriores em campos agrícolas, de superior utilidade nacional e igualmente favorecedores da ginástica escolar. O ferro e o aço para os ferreiros e os ferradores das alimárias, aumentadas estas em função dos transportes públicos. A cal para os pintores. Em suma, será a escola aberta uma vasta forja de cabouqueiros de um país em renovação.
DEM.: Mas os tais professores, Excelência, os de especialidades incompatíveis com o ferro e os adubos?
PAST.: Não existem tais incompatibilidades. Os professores de línguas explicarão na língua da sua especialidade os nomes das coisas e das atitudes que forem utilizando na sua esfera de acção, os de história, contarão os feitos brilhantes dos heróis, ligados ao esplendor do metal das armaduras e dos arreios das cavalgaduras, os de filosofia explicarão ao lançar da semente, o mistério metafísico da criação. Quanto aos de ciências, fácil se torna imaginar as alianças possíveis entre os estudos concretos e os estudos abstractos.
DEM.: Todavia, Excelência, deveis contar com a inadaptação dos professores mais idosos, ou dos de menor robustez física. Especialmente por altura das podas e das colheitas, que exigem jeito trepador e sentido de equilíbrio.
PAS.: Pôr-se-ão, como gestores do ensino aberto, nas escolas, o lavrador e o ferreiro, o ferrador, o caiador e o marceneiro, que orientarão tecnicamente em boa língua castiça, além de fornecerem os escadotes para o equilíbrio.
DEM.: Em tudo haveis pensado, Excelência. E cuidais que essa forma de ensino favorece a formação de médicos e de engenheiros?
PAS.: Como não? Os hábitos de análise dos materiais em decomposição como o estrume, ou as ligas como o aço, despertam no aluno o interesse pelo estudo das células, e o dos corpos em estudos já mais avançados. Contudo, parece-me secundária a formação de médicos e engenheiros num país como o nosso, de acentuados recursos agropecuários.
DEM.: Sem dúvida que os hábitos de trabalho físico neste território com tão saudável escassez de poluição, preservam notoriamente a saúde, o que exclui os médicos.
PAS.: E o retorno à enxada e ao martelo, foice e outros instrumentos tão antigos exclui igualmente os engenheiros.
DEM.: Em tudo haveis pensado, Excelência, e tendes razão como sempre. Por isso as consultas externas nas nossas Caixas de Previdência e outros organismos de medicina socializante se efectuam num ápice, o que comprova a robustez física do nosso povo...”

sábado, 7 de março de 2009

Pedagogia do Erro

O Expresso traz hoje na “Une”, aquilo que já se sabia desde ontem à noite pelos comentaristas televisivos - a bombástica referência aos inúmeros erros gramaticais dos duzentos mil magalhães distribuídos a duzentas mil crianças. Trata-se de um software gratuito feito por um português emigrante em França desde os dez anos, com a quarta classe passada aqui, e que os do projecto entenderam aceitar, por ser generosamente gratuito. Já bem basta a aflição da nossa despropositada inflação, provavelmente proveniente dos erros na Banca - e também dos paraísos fiscais que o Dr. Durão Barroso, estranhamente, condenou, considerando que a vida seria mais feliz sem os offshores que arruinam os países, sendo o nosso um exemplo dos mais expressivos.
Custou-me a compreender as razões da condenação dos paraísos – fiscais que sejam – pelo Dr. Durão Barroso, pois, como pessoa católica que me prezo de ser, segundo a orientação que me foi dada na instrução primária e na secundária, um paraíso é sempre bom, para mais numa “Ilha da Purificação” como a nossa, segundo apelidação carinhosa do Cavaleiro de Oliveira, estrangeirado um tanto desafinado, é certo. Além do mais, o nosso Altíssimo Comissário Europeu nunca me pareceu refractário aos paraísos do bem-estar material trazidos pela progressão na carreira, com bons objectivos por trás - que ele não se compara com os nossos “professorzecos”, que recusam os objectivos e os substituem pelas passeatas de protesto aos sábados.
Mas voltando aos erros do magalhães, o nosso Primeiro Ministro soube descartar-se muito bem das responsabilidades pelo facto, como aliás fez toda a equipa, e como é usual entre nós.
Quanto a outros entusiastas do magalhães e responsáveis mesmo pela Educação do País, afirmam que os erros daquele proporcionam aos alunos o ensejo de os detectarem, em excelente exercício de reconstrução textual, e segundo a técnica da Pedagogia do Erro, de bom efeito educativo.
Para mais, comprovativa da nossa modernidade cultural.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Golias

Assisti ontem a um programa do Trio Odemira, em repetição, na TV Memória. Bonito programa, de gente educada numa simplicidade e modéstia feitas de consciência do valor próprio, e uma simpatia em nada forçada, projectando o afecto entre o grupo e a cumplicidade rítmica dos dois irmãos, na harmoniosa cadência das suas vozes sem mácula. Um encanto renovado, pela harmonia trabalhada, sem estridências, que, pelo que contaram, levaram através do mundo, em toda a parte estimados e conhecidos. Como tantos outros cantores portugueses, levando a música e a língua pelos continentes que outrora outros portugueses deram a conhecer.
Pouco tempo antes tinha escutado uma voz altissonante e soberba, agredindo grosseiramente o público estrangeiro que o acolhe, com uma expressão saída dos recônditos de uma pseudo-competência mental, ao referir a “prostituição intelectual” dos seus críticos, sem qualquer laivo de respeito por esse público que contribui para a sua vasta côdea salarial. Um amplo orgulho pelo valor próprio, obtido na desmesura do “rico taco” que a sua “arte” lhe proporcionou, mas sem consciência da relatividade em que se move cada humano, e Mourinho também, por consequência.
Tantos os gigantes que nos traz a História, gente que se celebrizou – na Ciência, na Arte, nas Letras, no Altruísmo... – em quem os povos se revêem com veneração e afecto!
Estes Golias de tanto brado – tal Mourinho – tão representativos de um burguesismo pedante de novos-ricos deslumbrados, não se lembram de que existem igualmente Davids que, com uma funda e umas modestas pedras os podem suplantar –na inteligência, na beleza, no alcance das suas mensagens.
O Trio Odemira recorda-me David, no acumular da beleza dos seus cânticos e da sua modéstia, sendo credores de reconhecimento eterno.
Mourinho lembra Golias praguejante, fraco exemplar de lusitaneidade, que não nos honra, apesar dos êxitos futebolísticos dos clubes por onde passa.
Infelizmente, é de Golias, a nata dos com êxito. No nosso país.

terça-feira, 3 de março de 2009

Mastigações

Percebi hoje o efeito estrondeante da voz do nosso Primeiro Ministro. Ouço-o muitas vezes no Parlamento, onde todos o acusam de não responder às perguntas que lhe fazem sobre os desastres que atravessamos, com tanta mancha de indignidades, misérias e sacrifícios inúteis em favor dos parasitas que são muitos neste país. De facto, além de referir em voz sonora alguns desempenhos feitos ou apenas programados do seu governo, o que mais se ouve dele é um altissonante contra-ataque, ou então o brado queixoso contra quem o acusa de idênticas indignidades às dos parasitas que nelas chafurdam diariamente ou a intervalos. E quanto ao resto... é silêncio, ou o encosto à justificação da crise mundial. Não há respostas para as muitas questões, e os seus acólitos também se calam, escudados na sua maioria, que lhes dá a possibilidade do seu mutismo.
Mas hoje comemorava-se o Simplex, e o Sr. Primeiro Ministro não regateou elogios a tal processo de duzentas medidas do seu governo com efeitos sobre a saúde, sobre a celeridade nos negócios para as pequenas e médias empresas, sobre a abolição do papel no Diário da República, substituído por técnicas informáticas, sobre os cursos escolares de anos reduzidos a diplomas obtidos em meses, para efeitos estatísticos, etc, etc. E a voz era estentórica, tal como também o fora nas comemorações do quadriénio governativo em que se sublinharam os êxitos do governo absolutista para se angariarem votos para mais outro quadriénio absolutista.
E tão habituados andamos a promoções sem qualidade, que nos integramos facilmente nestes discursos repetitivos, de mastigação auto-elogiosa, de quem prefere escamotear a verdade segundo critérios de honestidade para impingir a banha da cobra em que somos mestres.
Como paralelo em mastigação, mas com efeitos encantatórios de maior alcance, relembro a zanga do Aquiles contra Agamémnon, por uma questão de saias, que ocupa grande parte do poema homérico “Ilíada”. Mas a nossa mastigação promete continuar.

domingo, 1 de março de 2009

Quem não chora...

Vem nos livros que os homens passam a vida à chapada. E mesmo à pedrada. A Bíblia é um repositório de histórias, de sofrimentos, corrupção, humilhações, vinganças, que o próprio Jeová castigou inúmeras vezes, já aquando da expulsão do Éden, continuando pelo dilúvio, a Babel, Sodoma, Gomorra, Job, um por aí fora de punições. O próprio Cristo não escapou, mesmo sem culpa. A Igreja explica que foi para ajudar a desculpabilizar os homens perante Deus. Assim ilibados à partida, com tão prestimosa cunha, os homens não param de abusar e de cometer pecados, sem responsabilidades adultas.
Cá em Portugal os pecados abundam, com a corrupção desenfreada, o enriquecimento, a formação superior, as ilegalidades várias, em truques inimagináveis, tempos atrás, também por falta dos media, é certo.
As pessoas que não imaginariam tais manigâncias, enxofram-se, exigem uma Justiça mais justa e rápida para punir ou inocentar, mas os casos de corrupção brotam do solo como tortulhos, e o povo não se cala.
Os visados revoltam-se. E lamentam-se, fugindo a explicações e optando pelo ataque a quem os criticou. Diz-se que os homens não choram, mas é mentira. Temos exemplos bastos nos livros, o Camões, por exemplo, foi bem sortido de dores e lamentações, e não podemos ignorar as do Pessoa tão esplendidamente descritas, mesmo as aparentemente irreais.
O próprio Samuel Usque escreveu uma obra - “Consolação às Tribulações de Israel” - que poderia servir de exemplo apaziguador aos nossos contemporâneos que choram para poder mamar melhor, diz-se sem respeito.
Cito: “Pois, ó Senhor, até quando há-de durar o inverno e tempestade dos meus males? O jugo tão pesado em meu pescoço? Os grilhões tão pesados em meus pés, o desassossego e sobressalto em meu espírito?”...
Com a nossa idiossincrasia facilmente rendida às emoções e às penas – daí a terna abundância dos diminutivos e dos coitadinhos – votamos neles, tanto mais que fazem finca-pé em medidas educativas de longo alcance – para a pré-primária e o 12º ano.