quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Happy New year!

Último dia do ano! Com a história das “histórias do pós-Abril”, tenho descurado a minha amiga, que me traz os textos das suas indignações para comentar. Nem tenho tomado nota das suas frases, e hoje não vou ter tempo para anotar as suas graças e ironias. Tenho que ir limpar os vidros da casa, há semanas que ando para limpar as vidraças da casa, hoje vou fazê-lo para ter a casa lavada no Ano Novo de 2010, depois das humidades destas chuvas clamorosas que vêm provar que um Deus bom nos vai dando a água na quantidade precisa, apesar das secas que já havia no Egipto, nos tempos do Moisés. Isto nos serve, pois, para ter esperança ainda, contra os anunciadores do descalabro nos gelos nórdicos em fusão precipitada. O Deus da nossa fé não vai deixar que a nossa Terra se destrua assim. Basta que o façam os homens para quem as vidas humanas são letra morta, basta que o façam aqueles que tomam em mãos os destinos finais daqueles que matam e se matam com eles, em cadeia contínua suicidária de assassinatos, no Médio Oriente, ou na África os que instauram ditaduras mortíferas, em lutas tribais pelo poder, ou na América Latina, os que se entrematam também pelo poder. E os que vão morrendo à míngua, pela seca, pela fome, pela doença, pela solidão, pelo desamor.
Hoje é véspera do ano novo de 2010, dia de alegria, dia de cozinhados bons, dia de festas felizes que se desejam a toda a gente.
E assim, eu o desejo a todos os meus, a toda a gente, e em especial à minha amiga, sempre receosa do Deus castigador de cada vez que se expande em frases das suas incompreensões acerca do destino, dos outros e do seu próprio. Sensível como é às misérias com que topamos, mas que, observadora como é, ela topa antes dos outros, quer pelas suas leituras, quer pelas percepções imediatas dos seus olhos de mulher alta que olha de cima e tudo vê e tudo sente, muitas vezes é a inspiradora destes textos das nossas realidades comezinhas.
A ela pois, dedico este, em final de ano, augurando-lhe um bem melhor 2010, num “happy new year” de muita amizade.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Histórias do pós-Abril (conclusão)

A ignorância imperava, e com ela o ódio e a vileza davam-se mãos, sobretudo contra aqueles que, fugidos à pressa do Ultramar para não serem esmagados sob a onda de violência deflagrada, embatiam num muro fechado de animadversão ou indiferença acintosas. Para não terem que reconhecer os erros de uma descolonização precipitada em Angola, jamais os órgãos informativos, tão generosos a lamentar a miséria do povo, como produto do regime fascista, abriram qualquer subscrição para os milhares de vítimas angolanas, chegadas à Metrópole nas condições mais desastrosas. Se os atacantes em Angola eram o MPLA, facção comunista apoiada pelo nosso Governo (apesar do acordo por ele feito de reconhecimento de três partidos, a quando das conversações sobre a independência), discretamente se referia a guerra em Angola. Se entrava a FNLA em acção, nesse caso usavam-se grandes parangonas contra os desordeiros que assim derramavam o sangue dos seus irmãos. O mesmo se verificava em Portugal em relação às sedes dos partidos. Os da esquerda destruíam as sedes do centro ou da direita e, a não ser breve referência satisfeita, tudo continuava em ordem. Os do centro-direita passaram a destruir as sedes esquerdistas e logo imprensa, rádio e televisão notificam com assanho o facto, e organizam mesas redondas onde, sem um mínimo de ética ou de equanimidade, se denunciam os culpados exigindo-se-lhes o castigo.
Causava estranheza também a forma capciosa com que os governantes e órgãos informativos se referiam ao “Processo revolucionário por via socialista”, em perfeita contradição com as suas tendências nitidamente esquerdistas, mas sem coragem de o afirmarem bem alto, talvez por complexos herdados ainda do fascismo anterior, intransigente à aceitação do comunismo, ou porque entendiam assim enganar a nação, que escolhera realmente a via socialista, por desconhecimento, aliás, do seu verdadeiro significado.
E do outro lado, a par das notícias dramáticas sobre a guerra em Angola, e posteriormente em Timor, chegavam-nos as notícias dos vilipêndios e maus tratos a que um partido único sujeitava sobretudo as populações brancas em Moçambique, obrigadas a denegrir e a aceitar os constantes insultos à pátria portuguesa e a suportar toda a casta de vexames, corroborado e incitado pelos frelimeiros pressurosos, que para esconder um passado notoriamente pouco digno de exploração colonialista, exageravam na sua devoção por esse partido único, denunciando todo e qualquer foco de resistência.
E, tal como na Metrópole, onde o povo, vendo-se guindado a uma promoção mais aparente do que real, supunha ingenuamente que comeria alguma parte do bolo que se lhe prometera e por isso denunciava o rico na ânsia de colher largo pedaço, bem politizado dentro de um clima de ódio sabiamente injectado, expulsava os brancos para lhes açambarcar as casas, mal supondo quanto aquelas já estavam destinadas às futuras elites negras, mais reivindicativas e exploradoras do que os próprios governantes brancos anteriores, pois passaram a viver no aparato cénico dos bons carros e casas e até aviões particulares de que não prescindiam, como indivíduos deslumbrados pelas coisas realmente válidas da vida. Entretanto, qualquer mínima infracção era punida com trabalhos agrícolas ao sol tropical, só com a finalidade de amesquinharem e vilipendiarem os brancos, mestiços ou negros que assim tinham de se submeter.
Também, é certo, na Metrópole, regressada, em consequência da descolonização, à necessidade de uma economia que punha na agricultura (e nos empréstimos ao estrangeiro) as esperanças da sua sobrevivência, por incapacidade de desenvolverem a sua indústria, quer por falta de matérias-primas, quer por falta de bons técnicos saneados, quer pelo abandono comercial e industrial do estrangeiro, rígido perante a duplicidade, falava-se na necessidade de irem todos trabalhar para o campo, numa ânsia de inverterem categoricamente posições, por meio do vexame da burguesia endinheirada ou intelectual que iria funcionar na rabiça, passando operários e agricultores possivelmente a funcionar nas escolas ou nos hospitais.
Entre a oratória caricata usada pelos negros, infantilmente cruéis, por vezes surgiam autênticas anedotas para amenizar a tensão, como o caso, por exemplo, de um discurso do presidente da Câmara de Inhambane, onde aquele utilizou, com saber, todas as noções históricas de que se deveria revestir naturalmente um discurso governativo: “Abaixo o Vasco da Gama! Abaixo o Pedro Álvares Cabral! Abaixo o fascista do Salazar que para cá os mandou!” E a cada advérbio “abaixo!” o povo o povo rugia alto, preso de extrema compenetração e ânsia de esclarecimento, o seu “abaixo!” aderente.
Não menos grotescas se tornavam na Metrópole as discursatas frequentes, o papaguear de noções colhidas à pressa nas conversas dos vizinhos ou na imprensa diária. O psitacismo, as frases feitas, os chavões banais como “batalha da produção”, “exploração do homem pelo homem”, “escalada revolucionária”, “serventuários do capital” e os diversos “ismos” resumidores de conceitos, imperavam nos diálogos radiofónicos ou televisivos, nas canções enérgicas, energia só manifestada, infelizmente, através da garganta, de largo uso actual, e nas frequentes mesas redondas onde, em todo o caso, com certo malabarismo verbal notório, se conseguia ladear questões importantes sem se informar o público objectivamente e com honestidade.
Fora o povo explorado que os escritores neo-realistas haviam tentado definir e apresentar em feios quadros de miséria e rebaixamento vis, fora um regime totalitarista que haviam querido atacar, cônscios do seu papel de denunciantes e benfazejos, esquecidos da eterna semelhança entre os homens, não melhores uns do que os outros nem menos interesseiros, mas fora a pátria portuguesa que realmente haviam contribuído para devastar, sem pejo do seu papel anti-imperialista incoerente. Colonialismo, capitalismo, imperialismo, não passavam de termos vãos, como os muitos outros de que se serviam. Porque, se se partira do princípio de que a África era para os negros (minimizando deste modo a cobiça de americanos, russos, chineses e quejandos sobre as ricas possessões que largámos com tanta magnanimidade e desamor pátrio) teríamos que expulsar americanos, brasileiros e os povos da América Latina dos países de que foram usurpadores. E atacar a Rússia no seu imperialismo desenfreado, e a própria Inglaterra sem razão para manter a vizinha Irlanda sua dependente contrariada. E dar razão aos Açores nas suas pretensões à Independência. E...
Neste longo Prefácio, denúncia de um processo histórico mais podre e desumano do que o do regime deposto, está implícito o desejo de ver os verdadeiros homens do meu País libertando-se das peias do terror para erguerem o punhal certeiro da oposição honrada e corajosa que consiga ainda lançar um pouco de dignidade neste pequeno canto ocidental da Europa, que um dia muito recuado, por vontade dos seus naturais, se tornou uma nação independente e séculos depois, movido pela mesma vontade, se tornou uma nação grande, dando a sua quota parte para a expansão e enriquecimento do mundo.
Agosto 1975”



30 de Dezembro de 2009:

Hoje, que recuperámos da negra “noite do Copcon” e período seguinte, graças ao surgimento oportuno, em 1976, de um general, qual desejado Sebastião, “A bem nascida segurança / da lusitana antiga liberdade” - como afirmo numa das partes de “Cravos Roxos” – “Messias” - apondo, todavia, uma interrogação dubitativa ao nome de Ramalho Eanes, por, na altura da composição do livro – 1981 - aquele, que fora o libertador da destruída nação, pender já, em segundo mandato presidencial, para ínvios caminhos de orientação comunista - vamos atamancando a marcha da Nação ora com medidas mais saudáveis, ora em tropelias a cada passo vindas a lume.
Filhos de uma geração de revolucionários, educados no desprezo dos valores antigos, os sucessivos governantes, a par das naturais medidas contrutivas dos seus governos, todos se esmeraram em abocanhar, como lobos famintos, o pecúlio deixado, em proveito próprio ou dos seus amigos de partido.
Chegámos, assim, a uma situação de falência, de falhanço, em todos os níveis da nossa estrutura política, económica, social. O clamor é diário, os protestos contínuos - contra os escândalos financeiros, os escândalos sociais, os escândalos no Ensino, na Justiça, na Medicina, os escândalos, a incompetência, a corrupção. Atingimos o caos. E não temos já esperança em nenhum Messias.
Porque aquela figura de mulher, que poderia restabelecer a ordem, pela sua seriedade, inteligência e probidade, é constantemente ridicularizada, pelos do seu próprio partido, que avançam os seus tentáculos para chegarem ao poder, como outros o fizeram, como outros fazem. Sempre em proveito próprio. Jamais com decoro. Jamais em proveito da Nação. Despudoradamente. Na infâmia da rede tentacular. No desrespeito pelo cidadão. No atropelo. Na libertinagem. No medo do futuro.
Um balanço da nossa tristeza, o destes 35 anos da nossa democracia.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Histórias do pós-Abril (Cont.2)

E o que acima de tudo assombrava na palhaçada política em que se vivia era a falta de originalidade de todo o processo revolucionário. Se no governo se formavam triunviratos, fora porque já na Roma antiga e na moderna Rússia se fizera assim. Se se impunha o serviço cívico obrigatório aos alunos com o sétimo ano, antes do seu ingresso nas Faculdades, o mesmo se observava na China comunista e na Cuba de Fidel Castro. Entretanto, ganhava-se tempo para impedir a avalanche no ensino superior que revelasse a realidade da impossibilidade de ingresso nas Faculdades, por falta de estabelecimentos de ensino e de professores capazes, saneados em consequência da extrema gritaria e actividades destrutivas dos estudantes que pensavam, muito justamente, chegar mais facilmente ao topo das suas pretensões escolares ou, pelo menos, impedir que o fizessem os seus colegas mais aplicados.
Neste Seminário que frequentei, pude constatar quão pueris por vezes eram as queixas dos alunos contra os professores saneados, lamentando-se porque a universidade lhes não dava o leite todo que pretendiam mamar, restringindo os seus programas, não lhes facilitando a possibilidade de desenvolverem as suas qualidades oratórias, raramente os interrogando, limitando-se a um expor de cátedra com todos os foros do “magister dixit” medieval. Vi, pois, como os alunos pretendiam não receber lições mas brilhar no palco, embora, creio bem, com poucas perspectivas de que tal sucedesse, vista a timidez intelectual de que sempre se revestiu a maioria estudantil portuguesa, apática e mais apta a uma constante perda de tempo nas mesas estéreis dos cafés que ao labor mental probo e disciplinado. Também parte dos alunos se queixavam contra os seus professores que nos exames os vexavam pondo em destaque pouco cristãmente a sua ignorância. Mas pareceu-me que o ponto fulcral da questão residia num roaz sentimento de inveja desses mesmos professores, alguns dos quais verdadeiras inteligências a aproveitar para o país, e que a inconsciência estudantil reivindicativa e fútil assim fazia, com autoridade, que toda se permitia num país não adulto, pôr de parte.
Em breve a nação se tornaria um foco de reclamações mais ou menos fraudulentas, de saneamentos, de ocupações de casas, quintas ou empregos, de assaltos e roubos, de fugas precipitadas para o estrangeiro.
No ensino secundário, estudantes adultos, maltratados nos exames escritos através de notas vergonhosas, protestavam contra o mau tratamento infligido, não querendo reconhecer a desonestidade das suas tentativas de se sujeitarem a exames sem um mínimo de preparação básica.
De comissões de gestão constituídas por jovens estudantes dependia a colocação de professores, pessoas superiormente formadas, que viam amesquinhada a dignidade das suas funções, acolhidos como eram por adolescentes, aliás gentis, mas manifestamente os menos capacitados para resolver os problemas dos adultos, e que procuravam talvez, por meio da sua inclusão na gestão das escolas, um processo fácil de concluírem o seu curso, dada a importância do cargo como factor pressionável sobre as consciências dos professores.
Havia-se acordado salvaguardar os interesses dos funcionários ultramarinos efectivos, ingressados, a quando da descolonização, no quadro dos adidos, mas para os magistrados e os professores, em virtude da barreira posta pela magistratura e o professorado metropolitanos, tal não se aceitara. Os magistrados ultramarinos não teriam acesso aos tribunais metropolitanos, a pretexto de haverem servido o regime colonialista-opressor, perfeitamente tranquilos os magistrados metropolitanos a respeito do regime que eles próprios haviam servido, aparentemente diverso do dos seus confrades de além-mar, mau grado o pessimismo do recoveiro Malhadas que a todos englobava na designação deprimente “Uma choldra de ladrões.”
Quanto aos professores contratados sem estágio, teriam que concorrer como eventuais, perdendo assim todos os direitos adquiridos de redução de horas e estabilidade. Como um “pushing-ball” saltavam de um ministério para outro, cavilosamente enganados nas informações, enviados igualmente aos liceus e escolas. Mas nos liceus e escolas, se interrogavam as comissões de gestão, para um possível ingresso, reenviavam-nos para o Ministério da Educação, donde aparentemente partiria a distribuição dos professores. Entretanto, cada liceu e escola tinha autonomia – e usava-a com prodigalidade, para criar muralha maior contra os professores colonos – para reconduzir os seus professores, ainda quando aqueles não tivessem curso completo, saltando, pois, por cima de todos os realmente formados e com anos de serviço. E os professores adidos ficavam, naturalmente, no fim da lista, só colocados após a distribuição de todos os outros, sob o mesmo pretexto de terem explorado e colonizado os negros enquanto exerceram o seu maléfico ofício de educadores nas terras de além-mar, que nas de aquém-mar se considerava nobre e extremamente espinhoso. No Ultramar, no entanto, as esposas dos oficiais em comissões de serviço haviam sido favorecidas, com curso ou sem ele, com uma pronta e reverente aceitação nas escolas, conquanto todos soubessem o escasso mérito da actuação desses mesmos oficiais como defensores daquilo que, tinham aprendido na instrução primária, e reforçado possivelmente na instrução militar, se considerava território nacional, herdado de antepassados valentes e briosos.
Por toda a parte se escarrava a sujidade moral de cada um, quer nas paredes dos edifícios revestidas dos mais espantosos dislates, pintados a coberto da noite, quer nos comícios ou sessões constantes onde se gritava muito e nada de positivo se obtinha, já que, eliminadas as cabeças cimeiras donde deveriam partir, dentro de um clima de confiança e respeito, as decisões supremas, todos desejavam mandar e ninguém se propunha obedecer.
Continua

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Histórias do pós-Abril (cont.2)

No comboio em que regressava de Coimbra, à noite, eu verificava como as Forças Armadas haviam adquirido ultimamente poder, pois algumas avalanches de tropas nele embarcadas rugiam alegremente a sua exuberância, granjeada possivelmente nas suas sessões de esclarecimento político-social, rumo ao norte e televisionadas.
No entanto, também pude pôr no povo as minhas esperanças de ressurreição pátria um dia em que uma matrona, entrada na estação, ao exprimir, pela atitude, as suas pretensões de se sentar em determinada cadeira, tendo sido informada de que tal assento estava destinado a outrem, o que se provou constituir escandalosa e despiciente falsidade, expeliu, durante o resto da viagem, calorosos protestos dinamizantes, contra os fascistas arrogantes e visivelmente despolitizados.
Utilizei este argumento da mulher do povo pródiga em epítetos injuriosos, resultantes, decerto, das tais sessões televisionadas e atacantes do regime anterior, contra a tese da humildade tradicional do nosso bom povo hospitaleiro, defendida pela nossa professora, experiente e bem intencionada, mas em virtude do seu alheamento dos programas informativos audio-visuais, não se dando conta das mudanças temperamentais sofridas por esse bom povo, que Fernão Lopes já descrevia como extremanente apaixonado.
Também na rádio, além das canções e dos noticiários explosivos e convincentes, se apresentavam, por vezes, programas informativos dinamizantes, com valiosas achegas culturais, como o de um diálogo entre duas senhoras sobre a necessidade de três meses de férias após o parto. Interrogada sobre o motivo da presença indispensável da mãe junto do filho nos três primeiros meses, a informadora respondeu objectiva e concretamente que tal assiduidade era imprescindível por causa do chichi do bebé, requerendo constante mudança de fraldas. Pudemos assim escutar uma defesa dos interesses das parturientes a um nível revolucionário-progressista, por meio de uma linguagem simples e acessível a todas as camadas, para maior pressão sobre os órgãos legisladores, certamente também sensíveis à simplicidade e precisão vocabulares.
Uma sociedade inteira soçobrava na inquietação e desequilíbrio económico, mas dos mesmos que assim sentiam o naufragar dos seus destinos e da sua pátria partiam anedotas políticas cheias de oportunidade e espírito que intimamente me acabrunhavam, por observar nesse escape, espécie de vingança estática, a nossa eterna inconsciência e falta de aptidão para o trabalho sério e actuante. A anedota ia suprindo assim uma acção enérgica, indispensável para pôr cobro a um processo de galopamento político apelidado de revolucionário, e que infringia todos os princípios democráticos prometidos no início da revolução.
Alguns professores de português, perfeitamente – “ou du moins en ayant l’air” – esclarecidos a respeito da ideologia marxista, conquanto menos a respeito dos trâmites lexico-gramaticais dos textos a explorar, propunham-se politizar os seus alunos, reconhecendo a utilidade dessa orientação pedagógica, para a revelação das suas personalidades actualizadas e vitalizantes. Rádio, televisão e certa imprensa, miraculosamente se revelavam todos adeptos das esquerdas, sem ninguém a contrariar tal imposição ideológica, pouco inteligente, porque menos ecléctica. Na imprensa, sim, vozes discordavam, fervorosamente lidas por um povo que via tombar de novo sobre si o espectro fatal e hereditário da opressão.
E na “Ilha da Purificação”, onde se pretendera existir uma paz podre, a ânsia da paz real conduzira o seu povo do continente à miséria, e o ultramarino à degradação, à morte e à ruína.
Se se caía no descuido de denunciar a nacionalidade ultramarina, logo uma voz ou duas surgia, interrogativa e insinuante: “Porque não volta para África, se é a sua terra?” Mas fora terra portuguesa, cujas fronteiras portugueses haviam delimitado a poder da sua coragem, e onde se vivera numa relativa paz, tentando desenvolver os territórios legados pelos antepassados e continuar o nome de Portugal, ajudando à sua própria manutenção económica. Porém, contrariamente a esses factos verdadeiros, o que prevalecia no sentimento dos metropolitanos, que os haviam apunhalado traiçoeiramente pelas costas, entregando-os, completamente indefesos, aos negros vingativos, era a justificação de que cada português colono fora necessariamente um colonialista e explorador, personagem que enriquecera sugando o negro por todas as formas, esquecidos de que os sugadores mais efectivos, além da nação portuguesa em si, haviam sido precisamente esses dos metropolitanos que, de passagem por aquelas terras, enviavam para estas os frutos pródigos da sua estada fecunda. Desde os donos metropolitanos de bastas fazendas ou fábricas ultramarinas, exploradas a preceito a distância, para poderem proporcionar aos seus donos ausentes uma “dolce vita” europeia, desde os governantes, aos altos chefes, a todos os das comissões de serviço ultramarinas que deixavam na terra-mãe grande parte dos seus proventos, todos eles assim foram empobrecendo as terras que, já fartos e enfastiados, entregaram finalmente aos naturais negros, sem contemplação para com os seus irmãos brancos, que nessas terras haviam tentado orientar as suas vidas sob melhores ou piores auspícios, como em qualquer outra parte do mundo, dando cada um o seu contributo para o desenvolvimento daquelas, desenvolvimento que ao branco sobretudo se devia, mas cuja acção se olvidara, na pressa metropolitana, perfeitamente estulta, de se livrarem da carga, ultrajando a memória dos que por ela combateram e cobrindo de opróbio o exército português. E o ferrete de colonialista ficara para sempre a aureolar a fronte de cada colono, tratado sem contemplação no seu regresso à pátria e a quem se desatendiam facilmente os interesses que se acordara respeitar. “Porque não torna para lá?” perguntavam os metropolitanos ansiosos e perfidamente insinuantes, reparando tarde nos efeitos prejudiciais de uma descolonização acelerada que só lhes podia tirar o sossego, dadas as avalanches que diariamente desembarcavam nos aeroportos, ameaçando a doce paz antiga.
(
Continua)

domingo, 27 de dezembro de 2009

Histórias do pós-Abril

Notou Salles da Fonseca a pertinência de uma das partes do meu livro “Cravos Roxos”, contida no Prefácio de “Literatura da Resistência”, de 1975, sugerindo-me que o transcrevesse em blog, faseadamente, se possível com comentários de confronto com a actualidade.
Nesse sentido, pois, vou transcrever o texto longo, fruto de uma experiência de “retornada” de África, texto resultante da frequência de um Seminário de Literatura Portuguesa em Coimbra, num interesse de actualização do curso de Filologia Românica feito em Coimbra alguns anos antes. O Seminário, dirigido por Andrée Crabbé Rocha, era sobre os Escritores da Resistência que, paulatinamente, tinham contribuído para o alertar das consciências, sobre os condicionalismos sociais portugueses no tempo de Salazar.
Texto narrativo é ele, contendo comentários críticos sobre o que foi a odisseia de tantos milhares de Portugueses obrigados a abandonar os territórios das precipitações descolonizadoras dos políticos da altura.
Muito tempo depois, já integrada na nova vida, com os filhos crescendo e desenvencilhando-se dentro dos seus interesses e critérios, acalmado o sofrimento na luta pela sobrevivência, a que não foi alheio o apoio familiar, várias vezes pensei, como penso hoje ainda, que, dentro das nossas características de país pequeno e povo mísero mas astuto, merecedor da caricatura de Bordalo, não foi totalmente negativo o comportamento de uma Nação que acolheu e continua a acolher, de acordo com os consensos políticos, aqueles “portugueses de segunda” do complexo ultramarino.
Pode-se afirmar que esses portugueses de lá tinham os mesmos direitos dos de cá, mas uma nação pobre como a nossa conseguiu superar as barreiras económicas, estendendo, às avalanches retornadas, os braços, se não amigos, pelo menos acolhedores dentro de certos critérios de justiça que tinham a obrigação de seguir, mas que poderiam desprezar, em caso de impossibilidade material, mau grado as fontes de riqueza que tais territórios ultramarinos tinham significado antes, para a pátria-mãe. Não fora, todavia o “auxílio” europeu a que a pátria teve que “encostar-se”, e o desastre teria ocorrido mais cedo, dadas as convulsões que num país, aparentemente sem rumo, nos vão “chutando” para um qualquer precipício, sempre profetizado, sempre temido, e sempre adiado. Eis o texto referido:

«... Porque me parece que vivemos num certo clima de compadrio literário que reputo quimérico e fruto de estagnação mental, perceptível em todos os âmbitos da vida portuguesa, de que a rádio, a televisão e a imprensa se fazem porta-vozes através de programas perfeitamente risíveis, no seu processo de dinamização das massas e de defesa das causas justas, mas tornadas pueris pela forma como são apresentadas – dispus-me a erguer uma voz discordante, sabendo embora quão dificilmente ela terá aceitação, dado que as liberdades democráticas, ao que parece prometidas num 25 de Abril de 74, não são interpretadas de igual forma um ano após. (...)
Como pessoa ferida no mais íntimo dos sentimentos patrióticos e humanos, radicados, naturalmente, como acontece em todos os povos unidos por uma língua, história, literatura, arte e religião comuns, eu não aderi ao entusiasmo da maioria dos colegas pelos escritores neo-realistas, responsáveis, em parte, pelos movimentos de destruição pátria perpetrados com o 25 de Abril. De resto, tais entusiasmos pareciam-me essencialmente fruto de juvenilidade, e há muito já eu ultrapassara, “hélas!”, a juventude.
Se, em todo o caso, pus objecções à entronização de alguns autores, posso afirmar que o fiz sem “parti pris”, guiando-me por um ponto de vista puramente estético e literário, embora de cariz pessoal necessariamente limitado. Facciosas, sim, me pareceram as observações idolátricas em alguns trabalhos, só porque os autores em causa haviam berrado contra a miséria e a exploração de outros. Dificilmente tais berros literários poderiam comover a quem os ouvia ou lia diariamente, mesmo sem literatura, nos órgãos de informação, zelosos por mostrar uma bondade unilateral..
Eu conhecera muitos “bondosos” que se governavam muito bem, rosnando contra os caídos. Conhecera os que haviam tramado na sombra contra a pátria e agora, à luz solar e em alta grita, forcejavam por amparar-se nos bons empregos, irradiando os outros a quem, por sua própria incompetência, não haviam conseguido ultrapassar anteriormente. Conhecera os adeptos recentes e vigorosos de uma ideologia que no regime anterior haviam atacado, também vigorosamente, sempre aptos e maleáveis a todas as viragens. Conhecera aqueles cuja missão fora aparentemente a de defender a pátria, e que agora, em públicas mesas redondas, apregoavam com extremo orgulho a traição perpetrada no tempo das suas missões militares, em que se mancomunavam com os movimentos de libertação, recebendo embora chorudos ordenados da pátria-mãe apunhalada mas sempre generosa, aliás, com a infâmia subserviente.
Vivia-se numa irrespirável atmosfera de reivindicações, protestos e desmazelos. Todos queriam chegar depressa, atropelando sem lei – que a não havia – nem controlo – que também não – excepto para formar ridículas barricadas na via pública. O espectáculo tornava-se caricato e jamais Portugal teve, talvez, tanta ressonância como neste momento de extrema sonoridade interna.
(Continua)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Evolução (conclusão)


Transcrição de um texto escrito nos anos 70 (antes do Golpe), em África, contido em “Pedras de Sal” e em “Cravos Roxos”, em 2ª edição daquele:

«Natal Português

Disseram-me – tenho viajado pouco por falta da gasolina – que lá pelas Alemanhas e países nórdicos não há pedintes. Talvez existam pessoas menos ricas, mas todos se vão ajeitando na dura lei de gerir a sua própria vida, e para isso trabalhando, é bom de ver. Claro que são ajudados por organismos que lhes concedem naturais regalias – e naturais porque têm direito a elas, como seres humanos encarados como tal, e não como coisas desprezíveis a quem a sociedade potente esmagou nas suas rodas.
Evidentemente que o facto de não existirem pedintes traz desvantagens, e a que se me afigura mais séria é a impossibilidade de os nórdicos poderem manifestar, tal como nós, os sulistas, o terno sentimento da solidariedade.
Porque é uma quadra tão amável, tão fraterna esta do Natal que a todos sabe bem, de mistura com os pinhões e as rabanadas, confortar os pobrezinhos com as nossas esmolas, para eles terem também amendoins à sua mesa. Convém, evidentemente, não exagerarmos nem pretendermos uma perfeita analogia de mesas! Mas o peru recheado saber-nos-á melhor se conhecermos que aos pobrezinhos não faltarão os amendoins e que para isso nós contribuímos preenchendo listas, acudindo às rifas ou simplesmente dando os nossos escudos das sobras àqueles mendigos muito sujos e muito tristes, nesta quadra ainda mais sujos e mais tristes, pois eles são mestres na arte de explorar o sentimentalismo alheio.
Para quê, pois, uma real assistência médica e de remédios a preços módicos a quem trabalha, o auxílio efectivo às viúvas e às mães solteiras, e aos acidentados do trabalho, para quê fomentar no indivíduo a dignidade como ser humano, que se traduzirá em não explorar, nem pedinchar, nem ardilosamente enganar os outros?
Torna-se, evidentemente, mais fácil para muitos, explorar e pedinchar e ardilosamente enganar os outros.
Por isso, o espectáculo folclórico dos pedintes deve ser amparado com carinho, para podermos compensá-los, por alturas do Natal, de lhes termos tirado tudo, mesmo a própria dignidade.»

Acabo de ver, num dos nossos canais televisivos, numa reportagem de rua, um exemplo das nossas indignidades, não mais em solo africano mas bem português, dos nossos tempos, que confirma o assunto do texto trancrito, em acréscimo de amplitude: indignidade não só da pessoa que é entrevistada pelo repórter, na altura em que telefonava ao filho em Angola a contar que era um triste “sem-abrigo”, e a perguntar, de forma humildemente astuta e idiota, se não, de facto, apenas miserável, se o filho sabia o que isso era. Indignidade do próprio repórter que o interrompe para o questionar sobre essa situação de exclusão humana. Indignidade do “canal” que erige tal estatuto obsceno de anulamento social, para a escarrar aos nossos olhos, sem pudor, com malignidade e sadismo. Indignidade, aliás, há muito instituída na nossa televisão, com a busca de casos de escândalo e faits-divers de efeito sensacionalista, que exploram o sentimento ou a indignação, ao invés de alargarem os horizontes culturais do povo, com objectividade, rigor, sensatez, e o auxílio de mapas esclarecedores da geografia dos factos políticos descritos.
Mas é dia de Natal, devemos ter esperança. É o que dizem os cartões de Boas Festas: Feliz Natal, Joyeux Noel, Merry Christmas... E Próspero Ano Novo, Bonne Année, Happy New Year!... Para todos nós.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Evolução (Continuação)

Transcrição de um texto dos anos 70 (de antes do Golpe), em África, contido em Pedras de Sal (1974), e, em 2ª edição, em Cravos Roxos (1981):

“Aqui há pobres:
A caridade é uma virtude que se deve estimular com fervor logo nas crianças, sempre muito receptivas aos estímulos.
Contava-me há dias um amigo um episódio a propósito, passado com escuteiros:
Todos os dias eles deverão praticar uma acção generosa para obedecerem às máximas da sua estóica organização. Um dia, dois escuteiros, por falta de motivações, davam voltas ao cérebro para conseguirem praticar o seu acto generoso daquele dia. De repente, avistam uma senhora idosa passando, agarrada ao seu bordão, no passeio em frente. Logo os bravos rapazinhos se precipitam sobre a senhora espavorida, ajudando-a, cautelosamente, a atravessar a rua. A senhora esbracejava, mas os garotos não quiseram perder a oportunidade da boa acção e transportaram-na, sã e salva, ao lado de cá. Quando, finalmente, a velhita furiosa conseguiu explicar-lhes que o seu destino era o lado de lá, pos gentis rapazinhos reconduziram triunfalmente a senhora ao ponto de partida, duplicando, deste modo, a acção esmoler do dia, sem dúvida lançada em crédito sobre o dia seguinte.
Censurei o humor negro do meu amigo, motejando sobre as coisas dignas, e apontei as inúmeras vantagens de uma conduta caridosa, de entre as quais avultam a inefável pacificação espiritual, o contentamento de alma, bem patentes no zelo altruístico dos dois escuteiros.
Por isso exultei hádias, ao ouvir uma frase agradabilíssima aos meus anseios espirituais: “Até ao dia de hoje não têm faltado pobres na nossa terra, e também quem deles se lembre”.
Sim, graças a Deus assim é. Não faltam pobres, felizmente, na nossa terra. Na Metrópole também não, tive a grata ocasião de o observar recentemente. Tanto ceguinho por lá, pelas ruas, a cantar! Bem, nem todos cantam! E outras mais espécies existem, fartamente. Não me cabe a mim especificar, tarefa essa muito mais digna de um Cesário ou um António Nobre.
Ainda bem! Não fossem os pobres e aqui estaríamos nós, os generosos, sem podermos dar vasão às aspirações da nossa alma.
O Joracy Camargo é que tinha razão quando demonstrava, pela voz experiente do seu mendigo, a necessidade da existência dos pobres numa sociedade bem organizada. Talvez sem eles jamais os ricos pudessem merecer o céu, com os quais resgatam uma consciência por vezes menos perfeita.
Eu também tenho os meus pobres – além de colaborar em todas as associações caritativas, incluindo a do “Zé dos Pobres”. Não quero significar com isto nem excessivas riquezas materiais, nem pecados ocultos de que pretenda livrar-me por uma conduta caridosa. Tenho-os porque gosto, naturalmente, de dar, alegre como sou, e o dar desenvolve-me a capacidade bendita da alegria
Por isso achei extremamente aprazível a frase ouvida há dias num virtuoso programa da nossa Rádio: “Até ao dia de hoje não têm faltado pobres na nossa terra, e também quem deles se lembre”.
Assim seja sempre, para felicidade de todos nós...”

Foi este espírito de generosidade cristã que nos marcou especialmente o carácter, de par com uma certa irresponsabilidade de conduta naquilo em que nos devíamos, de facto, empenhar, que exige reflexão, profissionalismo, valores ligados ao espírito e à vontade de progredir. Habituados ao improviso, ao atamancamento, às pressas, que custam menos em esforço, em vez de construirmos racionalmente e organizadamente, também aceitamos facilmente uma situação de precariedade, de parasitismo, em vez de lutarmos por transpor as barreiras das dificuldades.
E a expressão “não têm faltado pobres na nossa terra e quem deles se lembre” assim nos define, no miserabilismo da aceitação e da resignação, de que se aproveitam cada vez mais os abutres do poder, distribuindo subsídios – esmolas – assim camuflando, com uma falsa bondade, os seus atropelos de proveito próprio, eles próprios parasitas de um "status quo" criado pelas políticas europeias.
Estamos mais pobres do que nunca, e sabemos porquê.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Evolução

Um texto dos inícios dos anos 70, em África. Extraído de Prosas Alegres e Não:

«Natal... às listas:

O enternecimento é geral. Só se vêem pessoas amáveis, felizes por espalhar o calor das suas dádivas. Algumas senhoras prestáveis e com o sentido das responsabilidades prontificam-se mesmo a fazer peditórios a favor dos outros. E todos colaboram, contentes de dar, ou envergonhados de dizer que não dão, especialmente se as senhoras prestáveis são conhecidas ou esposas de senhores conhecidos.
Afixam-se listas nas paredes. É para as crianças, para os soldados, para os leprosos, cancerosos, lastimosos...
Mas bem vai a coisa quando é nas paredes que as listas se afixam, e não são as senhoras bondosas que as apresentam. Nesse caso, a maioria abstém-se, tal como nas eleições, aonde só vai quem esteja mais directamente interessado. Tudo o mais se encolhe, num caso por preguiça ou indiferença, no outro porque acha um exagero que tanta gente dependa de si.
É certo que este ano vamos ter o 13º mês, mas também nem por esse motivo a vida se compõe: aquele arranjará a primeira prestação para o carrito em segunda mão – já que os novos, só a pronto, por especial deferência e sem desconto. Aquela outra comprará os beliches para os filhos, com que alargará os espaços da sua casa pequena, de renda antiga e por isso religiosamente conservada. A D. Isaura comprará o “abat-jour” (“quebra-luz” para os puristas) para o candeeiro de pau preto o qual há meses espera revestidura. Outro terá o rádio portátil com que sonha há muito. A minha comadre Micas comprará o seu fogão a gás, com 20% de desconto nesta quadra do Natal, outro ainda limitar-se-á a saldar as suas dívidas anteriores.
Mas há muito o 13º mês deixou de bastar e é por isso que as tais listas causam tremores coléricos nos mais egoístas.
Eu sou das que colaboram sempre. Dou para as crianças, os soldados, os leprosos, os cancerosos, os lastimosos. Pelo menos se as listas são apresentadas pelas senhoras responsáveis dos senhores conhecidos. Caso contrário, não gosto de me salientar, colocando o meu nome quase logo abaixo do do meu director. Se o fizesse, diriam que pretendo engraxar, e eu sou muito sensível a suposições. Fico, recatadamente, à espera que os outros dêem o primeiro passo.
Mas parece que todos esperam o mesmo, porque as listas lá estão, quase só com o nome do meu solitário director que, coitado, não pode eximir-se a estas praxes de generosidade forçada uma vez por ano, quando se comemora a data longínqua em que, numa cabana humilde, uma criança nascia que pregaria a fraternidade universal e constante, tão bem entendida pelos homens em geral e muito particularmente pelas nobres senhoras dos senhores conhecidos.»


Vivemos hoje numa sociedade democrática, as listas servem antes para formar partidos, não como meio esmoler, até porque a corrupção trouxe a dúvida sobre o destino dos dinheiros assim angariados. Cabe à primeira dama o papel simpático de distribuir sorrisos pelos sítios onde são frequentes as lágrimas. Os “media” encarregam-se de obter receitas apelando para os telefonemas a sessenta cêntimos mais IVA, em programas de festejos, com artistas dispostos a contribuir para a animação geral. Os próprios lugares que fornecem alimento aos que deles precisam, melhoram o menu da quadra. Nos supermercados, crianças entregam sacos às donas de casa para colherem proventos para os bancos da nossa fome...
Houve evolução, decerto. Evolução na fome, evolução nos meios de a debelar. Já sem listas. Mas pela caridade sempre. A nossa “caridadezinha”.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

A velha escola

Conheci Pedro Mexia por alturas do primeiro Eixo do Mal e senti decepção quando, pouco tempo depois, se retirou. No meio da decisiva vocação do grupo de galhofar e manifestar arrogante desprezo por “essa gente” que logo excluía os intervenientes no debate, de idêntico estatuto desprestigiante, Pedro Mexia sobressaía numa seriedade educada, de intelectual a quem, provavelmente, incomodavam as irreverências e os enxovalhos mais ou menos mascarados de aparente isenção, dos críticos companheiros, preocupados em fazer galas de uma ironia assente em ditames de uma sofismada boa formação moral, pela defesa de alguns direitos, e boa formação política e literária pelo ataque a algumas vilezas e sobretudo a falhas culturais dos governantes menos literatos, traduzindo origens humildes, mau grado a ascensão que, por esforço próprio ou alheio, os tinha catapultado aos altos postos do poder. Embora crítico também, a postura de Pedro Mexia pautava-se pela elegância que o fazia não partilhar a alegre propensão dos companheiros para o disfrute, no respeito humanista por tudo o que é humano.
Lamentei, pois, quando foi substituído, talvez por decisão pessoal de se retirar. Alguns textos dele li em jornais que confirmavam a primeira impressão de intelectualidade e de moralidade, segundo velhos conceitos éticos.
Vejo, na Internet, que Pedro Mexia é um nome já bem expressivo na intelectualidade portuguesa, como escritor que se vai afirmando numa certa densidade de pensamento de formulação moderna.
Li, aí, alguns poemas que me pareceram de grande originalidade, na expressão reflexiva do mundo das coisas, por mais comezinhas, como ponto de partida para uma problemática não propriamente de angústia existencial, embora a pressinta, mas de altiva e positiva mansidão do comentário de irónica ou aguda percepção da realidade exterior e íntima.
Eis dois exemplos:

Duplo Império
Atravesso as pontes mas
(o que é incompreensível)
não atravesso os rios,
preso como uma seta
nos efeitos precários da vontade.
Apenas tenho esta contemplação
das copas das árvores
e dos seus prenúncios celestes,
mas não chego a desfazer
as flores brancas e amarelas
que se desprendem.
As estações não se conhecem,
como lhes fora ordenado
mas tecem o duplo império
do amor e da obscuridade.

Caixa de costura
Nunca compreendi
a caixa de costura.
Testemunha muda
de tardes e gerações
poder feminino
sobre o útil, no fundo
dos carrinhos e dos dedais
devia haver
a esperança.
Este último poema, síntese de um passado de gerações femininas desligadas de uma consciência cultural, indicativo do contraste, pela incompreensão, entre o universo masculino mais racional, e esse universo feminino ainda relativamente próximo, terminando em apelo a mudança, pela autoconscientização da mulher.
Pedro Mexia foi nomeado, ainda em tempo do Director da Cinemateca Portuguesa, João Bénard da Costa, vice-director da mesma e, com a morte de Bénard, director interino daquela.
Esperava-se a sua ascensão ao mesmo cargo do seu antecessor. Tal não aconteceu. Maria João Seixas, figura de bastante destaque também na vida intelectual portuguesa, tem ocupado cargos sucessivos nos governos socialistas e como comentadora televisiva em programas culturais.
Não sei se Pedro Mexia se sentiu frustrado, mas, pelo que li, ele próprio soube apoiar a candidata feminina, continuando na mesma posição de vice-director.
Não pretendo criticar escolhas, apesar do comentário negativo de meu marido, sobre a importância de se ser socialista, no tempo do socialismo ou outro ista qualquer no tempo de outros ismos, para efeitos das ascensões nos cargos. Onde é que eu já vi isto?

domingo, 20 de dezembro de 2009

“Partiste-me o coração”

Esta foi da minha neta mais novinha, Maria Beatriz, Maria da preferência do Pai, Beatriz do gosto da Mãe, mas foi este último que vingou. Nestas coisas de nomes, as mães têm a opção por direito, sobretudo quando se trata do primeiro filho, porque sabem quanto sofreram, o filho foram as dores delas que o lançaram à vida, quando não há uniformidade de parecer sobre o nome, vence o parecer da mãe. Foi assim que o meu primeiro filho não foi João Paulo do gosto do pai, mas Ricardo Jorge da minha preferência. Magnanimamente o João Paulo foi segundo, segundo a predilecção paterna., terceiro, embora, na sucessão, com a Paulinha de permeio.
E foi o João Paulo que me contou, impressionado com a saída da sua Beatriz. O João, por circunstâncias da vida, foi trabalhar para Angola, deixando a filhita muito pesarosa, sempre agarrada a ele, com medo de perder o seu papá. Mas o João veio passar o Natal, e a filhita continua agarrada ao papá, que tem que voltar para Angola, quer ir também. E na conversa entre os três, a Beatriz, que insiste com a mãe para irem todos para Angola, vira-se chorando, para a mamã que recusava, sorridente, o alvitre impossível, e lança no seu desespero: “Partiste-me o coração.” O João contou, pelo telefone, amarfanhado, porque sente bem a falta da sua filhinha também. Mas eu achei tão extraordinária a frase numa criança de quatro anos e três meses, que me ri e consolei. A trágica frase não significava tal dor assim, porque nem ela lhe sabia bem o sentido, estava apenas a reproduzir uma expressão que aprendera talvez com a mãe, que é brincalhona. Ele teria que lhe prometer voltar daqui a mais uns meses, e aliás, todos os dias a vê e fala com ela pelo skype. Mas a frase da Beatriz ficou no ar, no que tem de graça, e no que pressupõe de drama das crianças que a vida separa dos pais, ainda que intermitentemente.
Contei a história à minha amiga que achou, naturalmente, muita graça e se espantou como eu, com aquela pequenita que desde muito novinha conhecia todas as marcas de todos os carros e agora mantém conversa com um vocabulário inesperadamente rico, fruto do diálogo familiar, certamente, mas também das histórias que escutam, dos filmes que vêem, das escolinhas onde tão cedo são lançadas, retiradas ao conforto dos pais. Comentámos sobre o futuro intelectual das novas gerações com algum optimismo, mais crentes nas vantagens da difusão dos magalhães substitutos das tabuadas e da ortografia. Os magalhães forneciam outra forma de acesso ao mundo, gradualmente mais adulto, devíamos manter a esperança e desejar que fosse mais ético o mundo que elas próprias se encarregariam de construir para os seus próprios filhos.
Mas hoje o frio da manhã enregelava a alma e a minha amiga só viu tristeza à sua volta:
- Está aqui sozinha todos os dias, em frente a uma chávena de café.
Tratava-se de uma senhora séria, que procurava diariamente ali o conforto da sua bica, ainda que solitária, preenchida com o rumor da indiferença em redor. Creio que a proximidade do Natal agudizou mais, na minha amiga, o sentimento do atolamento em que vamos mergulhando, irmanando-a com o pesar alheio. Quando falámos na Carlita, umas lágrimas lhe correram pela cara, lembrando aquela vez em que a fôramos visitar ao hospital da Parede e ela lhe levara um presentinho que mais tarde a vira usar.
A Carlita! Era uma moça alegre, estouvada, inteligente, de expressão engraçada e espontânea, com que suavizava o drama de uma doença que logo em bebé a trouxera de África para ser aqui operada.
Recusava sofrer, era bonita, activa, estudou, trabalhou, casou, teve um filho que, por inépcia no hospital, durante o parto, foi maltratado, com uma perninha que teve de ser amputada. Lutou pelos seus direitos e do seu filho de tragédia. Mas um dia, um desastre de carro parou de vez o turbilhão das suas agonias. Morreram os três, pai, mãe e filho, numa rodoviária portuguesa de má construção, causadora de outras idênticas tragédias, enquanto não foi alterada.
- Há seres predestinados. E está sempre a suceder! Aquela mãe que ia com o filho assistir ao juramento de bandeira do filho mais velho! Até o raio do autocarro vai virar! Houve feridos, mas aqueles dois tinham que morrer! Acho que o automobilista tem a maior parte da culpa. São coisas tão horrorosas! As famílias destas pessoas nunca se refazem.
- É bem verdade isso, é por isso que devemos ser gratos se não nos acontecerem casos assim. Mas no mundo inteiro há vidas tão cruelmente infelizes!
- Num bairro de Manila vendem órgãos para sobreviver. O Ocidente compra. Vendem um rim para terem a sua casota.
Decididamente a minha amiga não está hoje nos seus dias de graça. Tento distraí-la. Mas só me acodem os casos da nossa revolta. Falei na cara de fuinha de Belmiro de Azevedo, e outros, não empresários, como lhes chama Daniel de Oliveira, no Eixo do Mal, mas patrões, indiferentes ao excesso de trabalho dos empregados - que estão a fazer um pre-aviso de greve - renitentes ao aumento de 25 euros proposto pelo Governo, apenas dispostos a aumentarem dez euros, apesar dos lucros extraordinários que obtiveram, com crise e tudo. Mas a minha amiga só consegue perguntar, ingenuamente:
- Eles não acham que é uma exploração?
Eu vou mais pelo comentário de “obscenidade” proposto no “Eixo do Mal”, e, como a minha neta Beatriz, também sinto quanto isso nos “parte o coração”.

sábado, 19 de dezembro de 2009

“Funcionários” de ontem e de hoje

O Sr. Braamcamp Mancellos, num texto meu anterior – “Como é diferente o amor em Portugal” postou o seguinte comentário sobre o seu “amor diferente”:

«Por falar em Amor, aquilo de que eu mais gosto neste País, são os “nossos” funcionários públicos. A chamada esperteza saloia associada à indiferença pelo resto, o resto, que não faz outra coisa que andar a sustentar mentes e costumes compostos por pessoas que escolheram a asa protectora do Estado como Padroeiro. O que vale é que todos eles são facilmente identificáveis, num centro comercial ou na rua, trabalhem eles numa repartição, nos Municípios, na Justiça ou num Ministério qualquer. Dir-se-ia que vieram todos da mesma santa terrinha. As semelhanças físicas são assustadoramente iguais. E as mentes também.
Glorioso País que tais filhos tem.»

Achei graça à referência, e decidi transcrever um texto sobre idêntico tema dos funcionários públicos, de estatuto um pouco diferente há trinta e cinco e quarenta e sessenta anos, embora, por razões diferentes das de hoje, o desprezo dos ricos pela classe fosse semelhante. Antigamente, o funcionário público era considerado um pobre diabo de servidor, sempre mal pago, mas cumprindo com maior ou menor competência – creio que a maioria com maior – os trâmites das suas funções. Para se ter acesso a qualquer cargo do funcionalismo público, faziam-se concursos, e nunca esquecerei a imagem do meu Pai, estudando e decorando as matérias do seu concurso para Fiel de Armazém, passeando-se pela varanda da nossa casa, em Lourenço Marques, enquanto as repetia em voz alta para melhor as memorizar. Valeu-lhe o esforço, pois a minha Mãe ainda hoje lembra o primeiro lugar que ele obteve, até mesmo em confronto com um outro concorrente com uns anos de um curso superior, o qual obteria o segundo lugar. As firmas – muitas delas estrangeiras, como a Shell, o John Orr’s – é que, por tradição, pagavam melhor, segundo os méritos dos trabalhadores, embora eu julgue que os patrões portugueses exploravam os seus trabalhadores na estulta avidez de sempre, que hoje se banalizou no nosso país, de tal maneira que os donos delas despedem empregados, sobrecarregando os que ficam, sem limitações de horários, sob a ameaça de despedimento se não se conformarem com as imposições de força. Um mundo brutal, onde não há leis que valham, apenas sanguessugas aproveitando-se da conjuntura crítica para melhor sugarem o sangue alheio. E o Governo, conivente para não perder mais empresas, fecha os olhos às manobras, a própria Justiça, manietada por aquele, participando no estado geral de corrupção em que vivemos.
Mas dantes o funcionário, competente ou menos, era um ser um pouco mísero, porque se acomodara, sem asas para construir um mundo de estabilidade e riqueza, como o faziam os grandes empresários, que por isso o desprezavam, na sociedade de castas em que sempre vivemos.
Eis o texto “Conformismo”, extraído de “Pedras de Sal”, contido igualmente em “Cravos Roxos”:

«Todos sabemos quanto a ambição e o ofício de funcionário público se não ajeitam em harmonia. Quem deseje fazer fortuna terá pois de escolher outra via para progredir.
Creio mesmo que nós, os funcionários, não passamos de uns recalcados, muito tímidos, e para sempre deslumbrados perante as histórias de riquezas angariadas nos negócios, nas profissões livres ou mesmo nas empresas particulares que se fartam de conceder regalias aos seus empregados – com excepções.
O facto verifica-se até nas esferas superiores de instrução, pois risível é o ordenado do professor comparado com os proventos do médico, do advogado ou do engenheiro, possuindo, embora, todos eles, idêntico curso superior. Mas nesta questão do professorado é coisa de pouca monta o tal curso superior – talvez justamente isso explique a modéstia do seu ordenado.
Sendo, pois, o nível de vida do funcionalismo inferior ao dos não funcionários, e a profissão daqueles encarada com certo desdém por estes, em todo o caso dá-se na sociedade um fenómeno bem curioso: apenas se pressente que o governo magnânimo resolveu aumentar os vencimentos dos seus servidores e até mesmo conceder-lhes um a dobrar na quadra festiva de Dezembro, logo, radiosamente, todas as forças terráqueas – sólidas, líquidas e gasosas – se erguem em peso para lhes extorquir o pobre aumento.
Desde os pepinos ao papel de sebenta, do gás aos ossos da sopa, ainda por cima em greve, tudo aumenta fraternalmente, num laço de solidariedade, digno do espanto universal.
Por vezes, delicadamente, conta-se a história justificativa do aumento: a dos prejuízos sofridos já anteriormente pelas companhias de gás que os sofreram com estoicismo até se fartarem disso, a dos galinácios e seus produtos para o aumento dos jornais, a do preço espectacular da farinha seguido, necessariamente, do aumento espectacular do preço do pão e de uma cada vez maior deficiência de fabrico.
A acrescentar a tudo isto, a prodigalidade dos impostos, só equiparável à produção, nos mercados do Estado, dos fósforos “Pala-Pala”, profusão, de resto, indispensável para remediar a sua natureza pouco inflamável, que obriga a gastar dez para se aproveitar um.
Não, não é esta ainda a altura de o funcionário equilibrar as suas finanças, muito pelo contrário. Mas não nos importemos, nem pensemos, desconfiadamente que isto do aumento não passa de pura mistificação.
Tenhamos em conta, como princípio a seguir com fervor cristão, a máxima da inutilidade dos bens terrenos.
Ouçamos Gil Vicente, sempre bem apetrechado de louváveis sentenças:
“Que quanto menos tiverdes
Menos tereis que guardar!”
E tanto cuidado que dão as arrumações!»

É certo que não é a estes funcionários de antigamente que se refere o Sr. Braamcamp Mancellos. Trata-se dos vários que, aquando de eleições, o governo eleito introduz nas várias funções, os do seu partido, substituindo outros de partido diferente, ganhando com isso a adesão submissa e simultaneamente arrogante da sua cada vez mais vasta rede – a rede socialista, que alastra e vigora não permitindo outras hipóteses de governação. Esses os funcionários descritos no comentário, os de topo de gama como parasitas sociais que tudo secam em redor, usando de privilégios e de vencimentos que o PM tenta ocultar, empolando as questões mínimas do ordenado mínimo imposto, como medida de extraordinário alcance social, e decididamente avesso a racionar as benesses de todos os que o rodeiam e as suas, e a fazer repor os dinheiros aos que roubaram, como medidas urgentes para salvar as novas castas aterradoras dos desempregados, dos subsidiados, dos que ganham ordenados miseráveis com que não podem sobreviver com decência.
Mas o TGV vai-se fazer. A regionalização é dado assente. As novas uniões e adopções são prioridades. Puros disfarces na via suicidária do nosso País.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Como é diferente o amor em Portugal

Um lobo esfomeado que rondava
Uma quinta em busca de um pitéu
Ouviu um menino que chorava
E uma velha que o ameaçava,
Se ele não parasse a choradeira,
De o atirar ao lobo mau
Que se sentiu no sétimo céu,
Julgando a velha pessoa verdadeira
Como deve ser quem mais se preze,
No cumprimento quer de uma ameaça
Quer só até de uma promessa.
Assim o lobo mau parou, na expectativa
Do lauto banquete em perspectiva.
Mas, chegada a noite, pôde ver
Que a velha faltara à verdade
Pois o choro do menino conseguiu deter
Só pelo susto de que ela cumprisse
A ameaça de tanta crueldade,
Porque ela não era para a brincadeira.
E o lobo, enfiado, pôs-se a andar
Com a cauda a tremelicar,
O estômago a desfalecer
E as orelhas de humilhação a arder,
Daquela quinta onde não se praticava
A virtude de juntar à palavra a acção,
Coisa própria só de um bom aldrabão.

Conto esta fábula da velha e do lobo
Que Esopo em tempos escreveu
Só para mostrar como é diferente
O tempo de agora do de antigamente
No nosso país de sol brilhante.
Agora as promessas são cumpridas
Tal como foram prometidas,
Feito o seu cumprimento por honesta mão,
Mantendo-se a avaliação
O TGV, a regionalização
A união dos casais homossexuais
E tantas coisas mais
De importância vital
Para quem não pensa mal.

Já o próprio cardeal
Da “Ceia” do Júlio Dantas,
Ou qualquer coisa entre tantas
De uma antipatia igual”

Como disse Sá Carneiro
- O Mário não o Francisco –
Achava que em Portugal
O amor era diferente,
Sem “a frase subtil
Do cardeal francês,
Nem o duelo sangrento
Do italiano.
Sim, “amor coração
Sim, “ amor sofrimento
Envolto em castidade,
Envolto em honestidade,
Envolto em lealdade
Envolto em cumprimento.

E foi assim que proliferou
O exemplo do cardeal português
Que muito amou
E sofreu,
Mas cumpriu o que prometeu
À amada, que ao morrer
Dele fez cardeal.

É assim também a democracia
Cumprida com valentia,
Na honestidade da lealdade,
Mesmo contra a adversidade
Usual em Portugal.


quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Peregrinando

Foi a propósito dos apartes de que se usa e abusa no nosso Parlamento que, contrariamente ao que acontece no teatro, onde se pressupõe que só atinjam os ouvidos das plateias, são utilizados por alguns deputados para atingir o orador de ocasião, que, com isso, muitas vezes perde a tramontana, respondendo sem aprumo e provocando mesmo a desordem do nosso desequilíbrio parlamentar.
Apareceu uma nossa amiga e logo a seguir uma amiga dessa, que se puseram a trocar mútuas graças, acompanhadas de apartes da primeira que entrou, com a mão em pala, só para eu ouvir, e fiquei nervosa, com receio de que a outra percebesse.
Novamente sós, fiz um comentário de desagrado aos apartes com a mão em pala, mas a minha amiga falou em idade, em doença, em solidão da nossa amiga dos apartes, e assim calei o meu protesto.
- Eu acho horrível uma pessoa viver só. Algumas defendem-se como esta, cumprindo escrupulosamente o seu prazer diário de se juntarem todas num café, para preencherem o tempo e percorrerem a caminhada da sua ginástica diária para manutenção da elegância. Mas no inverno, às cinco da tarde...
- “A las cinco de la tarde, eran las cinco en punto de la tarde”...
A minha amiga desdenhou da erudição, embora, em minha opinião, perfeitamente adequada.
- Às cinco da tarde, as mulheres que vivem sós – é uma longa noite até ao dia seguinte, até de manhã. Muitas têm filhos e netos, mas não aparecem, embora algumas tentem encobrir isso, em explosões de orgulho dissimulador da frustração: “Eu tenho uns filhos maravilhosos”, dizem elas. Mas não aparecem, ou raramente o fazem, conheço vários casos.
- Também é triste para os homens.
- Os homens, talvez ainda pior. Mas têm mais possibilidade de sair sozinhos tarde.
E foi então que falei do sr. Basílio, que às vezes se sentava connosco – o meu marido e eu - na esplanada do café, procurando o calor da presença humana, falando repetidamente dos tempos de África, onde pensava voltar, eterno inadaptado à nova ordem. Vivia só. Às vezes, em dias de festa, ia almoçar com a família, que passava a buscá-lo. Mas um dia, um comboio compassivo trucidou-o, quando atravessava descuidadamente a linha férrea. Não, não esqueço a sua figura errante, a fingir obrigações, perdido no seu abandono. Também encontramos outros, que vivem num lar de idosos, que, tal como nós – meu marido e eu – saem para a bica diariamente, um deles muito sério, agarrado aos seus jornais e livros, outro delicado, de andar difícil e arfante, que sempre nos cumprimenta, parando, a tomar fôlego. Os lares! Triste remedeio, mas necessário, nos dias apressados de agora. Ponderei:
- Se eu tivesse um lar, gostaria que fosse um espaço de convívio e amizade, com biblioteca, e danças, e jogos e entretenimento, com eventuais trabalhos segundo as habilidades de cada um, para se sentirem úteis e vivos. Com empregadas simpáticas e alegres e educadas, que não fossem como algumas que já vi, dando ordens grosseiramente, os velhos atirados para uma sala com televisão, alguns nas suas cadeiras de rodas, isolados uns dos outros, de estarrecer.
A minha amiga concordou. E pôs também a tónica na indiferença de muitos familiares que nunca têm tempo para os visitar:
- A mudança que se dá nas vidas! Tiveram casa, família, trabalharam, amaram, criaram raízes, criaram o seu mundo. E um dia, ninguém mais tem tempo para eles. Toca de os enfiar num espaço a que nunca pertenceram a que nunca pertencerão.
- O José Pacheco Pereira no seu ABRUPTO frequentemente coloca imagens de um banco, às vezes ocupado por velhos, a que deu o título “Passagem do tempo por um banco do jardim de Santo Amaro”, expressivo de toda essa desolação. E a magnífica interpretação de Jacques Brell da canção “Les Vieux”, é bem sugestiva desse mundo vazio e angustiante da carreira final da vida humana, hoje em dia, embora o universo descrito nela seja mais sofisticado do aquele que se nos depara na nossa terra:

« ... Et s’ils tremblent un peu
Est-ce de voir vieillir
La pendule d’argent
Qui ronronne au salon,
Qui dit oui, qui dit non
Qui dit : « Je vous attends ! »…


Ainda esta manhã ouvi a canção de Jacques Brell, pela Internet. Mas lembro igualmente a maravilhosa obra de Alçada Baptista “Peregrinação Interior” em dois volumes, onde o problema da velhice, doença e morte também são magistralmente descritos, por entre a vária temática de auto-análise existencial, e não resisto a transcrever o passo seguinte, do 2º volume:

“Como disse, não sei, rigorosamente, se a angústia do tempo é natural mas não tenho dúvida que, ao retirarmos a morte e o sofrimento dos nossos planos de vida, construímos uma civilização e um homem que transporta sobre os ombros, cada vez mais agudamente, a tragédia de viver e a tragédia de morrer. Assim, quando em certa altura sentimos o barulho da morte, ela surge-nos como uma obscenidade, como um intruso que desmanchasse os prazeres dum interminável festim. A verdade é que, com isso, nos condenámos à morte antecipada do abandono e da solidão porque, não obstante todos os impedimentos que fomos decretando para proibir o nosso convívio com ela, a morte surge, em forma de angústia, a acompanhar-nos muito tempo antes do dia final.
“Um processo de astúcia colectiva empenhou-se em varrer da vida quotidiana o lixo do tempo e das dores. Impiedosamente, empurrámos velhos e doentes para o lado do mundo para que morram, entre eles, por lá. Subtilmente criou-se a morte-ficção dos audio-visuais: a guerra, os índios, os “cow-boys”, as várias abstracções em que todos heróica e alegremente se entrematam, e onde não é possível reconhecer o mistério que envolve essa banalidade agónica que é o nosso fim concreto e nossa pobre, obscura e inglória morte, sofrida no mais profundo da nossa condição.
“O problema parece que se resume em retirar quanto antes os doentes de casa, não vão eles fazer a partida de morrer por ali. Despachamos, lestos, os defuntos pelas escadas de serviço: é preciso escondê-los depressa no caixão, no carro funerário, no cemitério, e retirar a sua presença incómoda a perturbar o nosso modelo “feliz”. Ora, os enterros, com a sua solenidade e o seu peso, era o pouco que nos restava das antigas “festas da morte” e eram elas que davam todo o sentido à consagração comunitária daqueles que com os outros viveram, para lá das dores individuais dos que perdiam parentes e amigos. A realidade é que, se uma comunidade sente que já nada tem que ver com aqueles que morrem, é porque, antes disso, deles completamente se desligara e lhes retirara presença e função. Com isso criámos uma tragédia dupla: os velhos e os doentes não têm outra perspectiva do que morrer na solidão. Os vivos, sobretudo os mais jovens, ficam impossibilitados desta confrontação quotidiana, dolorosa mas indispensável à nossa aprendizagem de viver numa perspectiva de tempo. A vida e o amor não são um breve encontro: são um círculo de tempo que vai do vagido da criança à memória dos antepassados, que nos segura à nossa própria história e à nossa mais profunda identidade.»

É certo que Alçada Baptista, na questão da morte, que se despacha para os hospitais, não teve em conta os desacatos terroristas e banditistas que se praticam no mundo inteiro com cada vez maior desprezo pela vida, referiu-se apenas a uma sociedade mais acelerada, quando não insensível, herdeira daquela outra mais conservadora que foi a da sua infância burguesa.
Mas a sua análise tão pertinente é bem um hino de amor à vida e à verdadeira solidariedade, criada no respeito pelo ser humano. Só que tais preceitos humanistas são incompatíveis com as realidades atrozes do quotidiano de urgência e afundamento dos vivos.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

O umbigo do Buda

Quando o PM ganhou as eleições com maioria relativa ficámos muito tristes, a minha amiga e eu, porque preferíamos que as tivesse perdido por minoria absoluta. Mas como afirma a minha amiga, sempre o Nosso Senhor castiga as ambições, quando a estas faltam asas, derretidas com o açúcar da bica palreira.
Durante uns tempos, chegámos mesmo a acreditar que os vários partidos, que tinham prometido opor-se conscientemente ao que achavam mal no governo anterior, iriam opor-se conscienciosamente ao que se mantinha como má governação no governo minoritário actual. Mas a verdade é que o próprio PM afirma, claro e bom som, que é o governo que governa, não a assembleia. Como repete a minha amiga, “é o governo a gerir, a assembleia não serve para nada, eis a diferença.”
A verdade é que os partidos tinham prometido verificar as contas, mas o orçamento do Estado passou, com três partidos abstendo-se; o TGV vai começar, apesar do que se afirma de acréscimo monstruoso da dívida e do próprio recuo de Madrid em unir-se à Europa por TGV, como antes projectara, por não ser oportuno na actual conjuntura.
“Porque nós somos um país rico”, concluiu a minha amiga. Também na reforma no ensino, que aparentemente não foi avante, mais uma vez se joga com a astúcia e o dolo, no trabalho excessivo e tantas vezes absurdamente inane imposto aos professores, a cretinice magalhanense propícia à suspensão de aquisições básicas de nível motor e cognitivo, na infância, e, assim, à dispersão mental, pelo acentuar do lúdico, do figurativo, da irreflexão.
Mas o PM gaba-se de tudo quanto fez no primeiro Governo maioritário e promete continuar com muita gana no minoritário, sozinho, já que nenhum dos partidos quis conluiar-se com o seu, por isso só poderão ceder, como carneirinhos, às suas imposições, ou arriscar-se-ão a um golpe de Estado que o actual estado de deficiência económica não pode, de modo algum, viabilizar. E os partidos mantêm a sua aparência de mosquitos zumbindo, de roda de um Buda contemplando o seu umbigo. E ainda por cima surdo a quaisquer perguntas, usando a perfídia de um discurso de chantagem. Por outro lado o PR mantém o seu ar seráfico, de uma prudência indigente, atento à “estabilidade” do seu país, naturalmente, mas mais talvez ainda à do seu cargo.
A minha amiga aproveitou para render homenagem ao “Contra-Informação”, que merece o prémio de o melhor programa:
- Eles lá no Contra-Informação é que os arrumam. Até acho forte demais. Eles depenam-nos completamente. As figuras são engraçadíssimas, as vozes são impecáveis, os diálogos de morrer a rir, cheios de oportunidade e de actualidade. Os próprios nomes são maliciosos. O Sócrates, por exemplo é o Trocates.
Aí, discordei:
- Mas disso é que ele não tem nada, não troca uma vírgula dos seus discursos, nem um ricto dos seus esgares, de zanga, de ironia, de autodefesa, de vitimização, de satisfação pelo dever cumprido, de determinação imperturbável no dever a cumprir. E tudo isso, pela exclusiva contemplação do seu umbigo.
- Como um ciclone que leva tudo a eito
, contrapôs a minha amiga explosiva, definitivamente avessa a Buda.

sábado, 12 de dezembro de 2009

“Oropa” na nossa “Tristesse”

Falou-se do Victor Constâncio e da sua candidatura a vice-Presidente do BCE. Dizem os de cá de dentro que ele tem boa reputação lá fora, o Sr. PM reitera-o, o Sr. PR congratula-se, bem como os demais patriotas, que gostam de ver o bom nome da nossa Pátria tão bem projectado.
Só que a minha amiga não é a primeira vez que encara as inabilidades internas como ponto de referência para as habilidades ou sequer inabilidades externas. Basta que se portem mal cá dentro, têm garantida a passagem para céus europeus. É a sua convicção, explicitada com a truculência habitual. E lembrou a propósito um empresário em Quelimane, dos ricos, que ao fim de cada ano de lucros, obtidos com o trabalho e a eficiência, como era usual naqueles tempos de maior rigor, e mesmo de melhor democracia, costumava dizer: “E agora, vou p’r’à “Oropa”, a férias”. Parece que ficou na lenda, nas risadas gerais, acompanhando o O que a minha amiga reproduziu vivamente com os dedos polegar e indicador, ao mesmo tempo que pronunciou a frase do conhecido empresário: “Vou p’rá Oropa”. Ri-me também, mas considerei que nem todos vão para lá. Ficam por cá em “Oropas” empresariais, e é vê-los aumentar os rendimentos pessoais que às vezes vêm a lume nos jornais indiscretos, provando que agora vigora sobretudo um regime egocrático, protegido numa rede paralela de empenhocracia.
- Estamos tramados! - considera a minha amiga, tristemente, passado o momento divertido do episódio “oropeu”.
Mas eu ontem também tinha ficado escandalizada com a transmissão da entrega do prémio Nobel da Paz a Barack Obama, e disse-o à minha amiga.
Foi em Oslo que o recebeu e nele admirei a cabeça ligeiramente inclinada sobre o seu lado direito, em nobre manifestação de atenção delicada ao discurso do orador, e de superioridade natural, resultante da sua condição de Presidente do mais importante país da Terra.
Pois os dois comentadores invisíveis da Sic, jamais se calaram, em grande dispêndio de dados, a que ninguém conseguia prestar atenção, na expectativa da tradução dos discursos que, naturalmente não se fizeram, por ser em directo.
E nem mesmo aquando do concerto final ao piano por um jovem chinês, se calaram com respeito. Creio que consegui perceber que se tratava da “Tristesse” de Chopin, mas só ouvia o martelar de vozes na Sic, sobrepondo-se ao momento musical.
Esse, recuperei-o pela Internet, na execução de uma jovem também chinesa, e igualmente pela bela voz de Tino Rossi, nas melancólicas palavras de um Amor que se vai, tristemente, tal como a Paz , que se deseja em vão:
« L’ombre s’enfuit, tout n’est que songe
Et tu n’es plus, malgré tous nos désirs,
Qu’un souvenir ».

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Arte de Talma

A minha amiga falou da entrevista da Judite de Sousa ao Armando Vara:
- A gente ouve-o e considera-o inocente. Ele argumenta por A mais B que não foi nada daquilo que dizem. E é verdade, quando há uma coisa que ele disse que abona a favor dele: pede para as escutas serem ouvidas. Isso quase me convenceu, pá! Também tenho muita pena de que alguém seja acusado injustamente. Porque este homem, se é mentira o que dizem dele, coitado, não está certo. Para eu ser julgado tem que haver provas do que dizem. Provas não há.
- Mas há sempre truques nestas engrenagens. Eles podem ter feito manigâncias, recebido ou oferecido massas ou entrado em conluios sem deixar provas à vista. Basta que o façam subrepticiamente.
- Claro! Eles também não são burrinhos. Não vão deixar provas à mostra. Mas esta gente está sempre sujeita a grandes calúnias.
- Olhe, o meu marido o que disse - que eu nem ouvi a entrevista, entretida com “Uma famìlia às direitas” da TV Memória - mas o que ele perguntou, muito indignado, foi como é que a RTP, que é formada por amigalhaços do PS, embora todos nós paguemos para isso, se pode dar ao luxo de entrevistar um senhor que está indiciado criminalmente. Que aquilo foi tudo muito bem estudado para ele ir ali defender-se e com ele o seu amigo PM, tudo muito bem orquestrado. Que ele falou em quarenta anos de trabalho honrado, por isso é o primeiro a querer saber, honradamente, o que se passa. Parece que o meu marido não se comoveu com a decisão de ele querer esclarecer - para mais dita em tom de pessoa ofendida e triste - porque acha que há muitos como ele que também trabalharam bem e não chegaram tão longe, e nem mesmo a lado nenhum. O Vara esqueceu-se de dizer que, se subiu de degrau a degrau, ou mesmo galgando alguns degraus, foi à custa da política e dos que o apoiaram.
Mas a minha amiga hoje deu-lhe para o sentimento. Viu-se que ficou impressionada com o Vara e até contou um caso de novela, exemplificativo das calúnias que a Internet hoje em dia possibilita:
- A Alexandra entra numa telenovela da TVI, onde ela desempenha o papel de mulher um bocado poderosa. Eu estou a acompanhar a novela. Ela é uma actriz inteira. Mostrou ontem ali como se pode dar cabo da vida de uma pessoa com o computador. Ela é mazinha que se farta, é diabólica. Como foi substituída no sentimento do parceiro, pensou assim: “Vais-me pagar.” Ela, para tramar o que a pôs de parte, fez uma declaração a dar plenos poderes a esse e mete-a na pasta do patrão da empresa. O que acontece? O patrão – Nicolau Breyner, seu sogro - que não assina nada sem ver - fica possesso de raiva: “O que é isto? Isto é para me tramar?” Despede o amigo do peito. A Alexandra, que tinha tramado a coisa, mostra afectuosamente o seu desacordo com o sogro: - “Não te precipites, vê bem!” - que fica danado com ela. Ela não faz mais nada: contrata um técnico de computadores para passar aquilo para o computador de um rapaz lá empregado. Faz um pedido de readmissão do antigo namorado, mandando iniciar buscas sobre a origem da perfídia, encontram-na no computador do rapaz. Quem vai para a rua é o rapazinho. Ela agora tem os dois na mão. E ali mostraram como se pode entalar a vida duma pessoa. Mas a fulana trabalha muito bem. Pode ser considerada das melhores.
E foi assim que passámos a eruditas observações sobre as actrizes passadas, tão consideradas, embora na nossa comum opinião, demasiado formais, como a Amélia Rey Colaço e a Palmira Bastos, modelos de muitas das nossas actrizes.
A minha amiga falou da Eunice Muñoz:
- Outro dia prestaram homenagem à Eunice Muñoz. Os elogios são tantos, tantos! Aquilo que se disse parece uma coisa impressionante. É a melhor do mundo. Ela a mim nunca me fez essa coisa. Mas reconheço que tem que ser boa: tem oitenta e tal anos, a trabalhar desde os treze.
Confesso que não compartilhei a ironia sobre o engenho criado pela experiência:
- Eu gosto dela sobretudo como actriz cómica. Uma seriedade que não se desmancha, acho-a espantosa de sobriedade e graça!
- Mas quem vê as séries inglesas ou americanas, as novelas brasileiras... ou as actrizes fabulosas do passado e de agora... Aí é que há bom material! Eu é que já não vejo as séries, nem os filmes, não tenho paciência! Mas a Alexandra, acho-a muito boa, e versátil.
- Às vezes também encontramos bons actores na vida real, mesmo através da televisão.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

"Agora é que eu não vou perder!"

Foi a propósito de uma reunião parcial do Parlamento, onde se debatiam assuntos de saúde, com representantes de todos os partidos. A Maria José Nogueira Pinto chamou palhaço a um deputado do PS – Ricardo Gonçalves – a propósito do seu estatuto de inimputabilidade, creio que por ser do PS, que lhe dava o privilégio de insultar toda a gente, sem consequências de maior. Ricardo Gonçalves lá se apurou nos insultos a Nogueira Pinto, enxofrado com a história do palhaço, embora afirmasse não se encrespar na época do Natal por via disso. Por aqui se viu que ele considera o Natal festa de palhaços e Nosso Senhor lhe perdoará, que Nosso Senhor tudo perdoa. Mas viu-se que não gostou, no dilatar de argumentos à portuguesa – grosseiramente insultuosos - pontuado pelos furiosos “oh! oh! sr. Deputado!”, “oh! oh! Srª doutora, oh! oh! srª deputada!” do moderador do debate e concluído pelas severas palavras de João Semedo do BE de que nem os palhaços nem os esquizofrénicos mereciam as palavras insultuosas pronunciadas naquela secção. Mas não explicou se algum deputado merecia. Também a ministra Ana Jorge levou as mãos à cabeça, impressionada.
A minha amiga é que se mostrou radiante:
- “Agora é que eu não vou perder! Agora é que eles estão cómicos! Porque tratar dos assuntos do país é tristíssimo! É dramático! A Nogueira Pinto parece que tem a mania da superioridade, é da linha de Cascais, disse o tipo!
- Ainda bem que vivemos na freguesia do Estoril!
- concluí eu também radiante.
- Mas já estou a ser castigada! Até o código que sempre usei no cartão multibanco me saiu errado. Tive que pagar cinco euros por conta. E era mesmo esse o código, garantiu o meu filho.
- As caixas da CGD também estão sempre gatadas. De vez em quando engolem as cadernetas e depois fecham para obras. A CGD não deve ter dinheiro para consertos.

- Pois! Mas a mamar cinco euros ou mais por conta dessas gafes das máquinas vai repondo a dívida das trafulhices nos bancos.
Mas mudámos de assunto, vivendo rodeadas de assuntos como vivemos. Desta vez fui eu que contei as minhas impressões:
- Há dias deram na televisão que o povo dinamarquês era o mais feliz dos povos europeus. A reportagem mostrou entrevistas de rua, imagens das ruas. Os dinamarqueses mostraram as razões da sua empatia com a vida: não eram muito ambiciosos, contentavam-se com o que tinham, razoavelmente bom, pois que não havia grandes desníveis sociais, grandes desníveis de interesses económicos, trabalhavam, cumpriam, tinham boa assistência médica, ensino gratuito, bicicletas para andarem nas ruas planas, passeios pedonais, carros menos abundantes – pelo menos nas imagens mostradas – respeito, pois, pelo ambiente, justifica-se bem a cimeira ali dos povos ricos e pobres que vão lutar pelo ambiente do Globo. Viu-se que era gente que sabia argumentar, sinal de que a Educação era uma pedra basilar no seu desenvolvimento e do seu país. Alguns falaram nos povos da miséria africana, sobretudo, nem se atreviam a manifestar-se, eventualmente, menos felizes, por comparação com esses.
- Oh! Esses não têm graça nenhuma! Tudo tão certinho! A viver com tanta monotonia de níveis, educações, satisfações, respeito por todos...
- Quem lhes fará os trabalhos de casta inferior? Serão os emigrantes? A reportagem não disse. Mas eles devem respeitar todos os que trabalham, não há que recear. Só que lhes devem faltar as “barrigadas de riso” à portuguesa, como dizia o João da Ega, nos seus esgares de risos gélidos, de quem, educadamente, nunca se desmancha.
- Nós desmanchamo-nos sempre, nas lágrimas como no riso, somos um povo emotivo. Qualquer dia, no Parlamento, até “amandamos” também o sapato às cabeças.
- Isso não. Isso está bem para os Iraquianos, que são bons guerreiros. Nós somos um povo pacífico. Sobretudo com os superiores. A nossa democracia será sempre empenada, por conta do desnível.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

La Fontaine ainda

Quatro buscadores do mundo novo
Escapados quase nus às ondas em furor
-
Um traficante, um nobre, um príncipe e um pastor –
Viram-se reduzidos a pedir esmola,
Tal como acontecera outrora
A um tal Belisário general
Caído em desgraça junto de Justiniano,
Imperador romano.
À beira duma fonte se sentaram,
A sua sorte lamentaram
E estranharam,
Que sendo de diferentes proveniências
E importâncias,
Se vissem igualados e enfiados
Nos mesmos palpos de aranha
Com que o destino insensível
E sempre com artimanha
Lhes quis revelar a vacuidade do nível
Social.
O príncipe era o mais ressabiado
Falando
Na desgraça a que os grandes chegam.
O pastor, mais acostumado
A essas manigâncias do mal
Alvitrou
Que era preciso esquecer
Os maus tratos da aventura
E cada um tentar
O bem comum favorecer.
E acrescentou
: -“Os lamentos vão curar?
Para a bom porto chegarmos
É preciso trabalharmos!”
Um pastor assim falar!
Não são só
As cabeças coroadas
Que possuem o condão
De ter espírito e razão!
Num pastor ou num carneiro
Os conhecimentos podem-se
Plenamente manifestar.
O alvitre do pastor foi bem aceite
Pelos outros três que com ele
Encalharam nas praias da América.
Um – era o traficante- sabia aritmética:
-
“A tanto por mês darei lições”.
- “Eu ensinarei política” -
Disse o príncipe. O nobre prosseguiu:
- “Eu ensinarei heráldica,
Farei escola.”
Como se, em face da Índia
Que era o que se julgava ser a América
Que Colombo descobriu,
Tivesse interesse
Um jargão de tal calibre!
Disse o pastor:
“Amigos,
Vocês falam muito bem. Mas de que vale?
O mês tem trinta dias. Até que se concretize
O que vocês querem que se realize,
Iremos jejuar
Por conta dessa intenção?
A esperança é bela mas recuada,
E eu tenho fome; quem nos vai dar
Amanhã o jantar?
Ou mesmo sobre que certeza
A ceia de hoje é fundamentada?
Antes de outra qualquer coisa
É disto que se trata!
A vossa ciência é curta a esse respeito.
Mas a minha mão vai dar um jeito.”
A estas palavras o pastor se foi
À mata; fez molhos de lenha cuja venda
Durante esse dia e os seguintes
Impediu
Que um longo jejum, enfim, fizesse tanto
Que os outros não pudessem exercer o seu talento.
Concluo desta aventura
Que não é preciso tanta arte
Para conservar a vida.
E graças aos dons da mãe natura
A mão consegue ser mais segura
E de maior eficácia,
Pelo menos inicialmente,
Numa qualquer conjuntura
De realização premente.”

X

Como os quatro náufragos que refere La Fontaine
Que chegaram às Índias Ocidentais
E só mais tarde Vespúcio demonstrou
Serem as Américas
Do Norte, do Sul e as Centrais,
Também nós estamos em naufrágio
E não somos só quatro, mas bem mais.
E a nossa conjuntura é pior,
Sem pesca nem agricultura
Défices estrondosos,
Desempregos penosos,
Em dramática progressão,
Disparidades sociais
De bradar aos céus,
Uma Justiça enfiada
Na geral corrupção...
Valha-nos Deus!
Mas sem convicção
De que Deus nos pode valer,
O que devemos fazer,
Para podermos, ao menos comer,
É, como o referido pastor,
Deitar a mão
À nossa conjuntura,
Nem que seja só na agricultura,
Na pesca e na lenha,
Ao menos para evitar
Pôr a mata a arder
E assim se morrer.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Uma página de livro

O ter lembrado ontem o livro de Irene Gil, associado ao papel da mulher no interior de África, fez-me reler um texto que escrevi sobre ela, em 1988, que transcrevo do livro “Anuário - Memórias Soltas”, publicado em 1999. Transcrevo-o aqui, em singela homenagem à sua memória:

«“UMA PÁGINA POR DIA”, UM LIVRO DE IRENE GIL»

Um passado. Um presente de confronto.Um espaço físico e social demarcado geograficamente nos limítrofes da colonização portuguesa. Uma vida que nele se inscreve. Uma pena que aborda espaço e tempo em viagem que a memória apurou, no suave encanto de um estilo arrumado e digressivo, um discreto humor que o conhecimento do mundo e as experiências sofridas tornaram frontal, uma sensibilidade aberta aos prazeres da vida como aos sofrimentos dos homens. “UMA PÁGINA POR DIA”, uma lição de mulher, uma canção de amor sem o erotismo da praxe.
Mulher viva e insatisfeita, reprimindo o seu entusiasmo, na educação convencional de “jeune fille rangée”, nos tabus inerentes a um viver socialmente superior, mas a quem favoreceu enérgica voz interior, suavemente modulada pelo estro poético, libertando-a finalmente na ambicionada projecção literária que o meio lourençomarquino proporcionou.
Foi assim que a conheci: elástica, viva, loquaz, abordando temas variados na sua “Página da Mulher” do “Notícias”, propondo concursos literários, organizando inquéritos, estendendo o espaço da sua Página a outras vozes e a outras mensagens, sempre discretamente espirituosa ou sentidamente humana, em cada passo do seu convívio acentuando o preceito terenciano da identificação solidária do homem com tudo o que é humano: “Homo sum; humani nihil a me alienum puto.”
Ela se retrata no seu livro – sejam as “Memórias”, os “Contos” ou os “Fragmentos de um Diário” que o compõem, guardando, naturalmente, a reserva íntima de quem não precisa de se despojar da roupa interior para se revelar inteira. A sua interioridade – aquela que a define nas suas angústias, fragilidades ou subtilezas de humor – essa nos basta para denunciar mais uma daquelas protagonistas da colonização portuguesa que, acompanhando os pais ou os maridos pelo interior do terreno ultramarino, nele projectaram algo da sua presença, quer ajudando os nativos, quer elevando socialmente o meio, quer forcejando por não soçobrar no tédio de um viver solitário, mantendo acesa a chama da cultura sofregamente apreendida.
Tudo isso sobressai na sua obra, de um descritivo impregnado de magia desses espaços tropicais, mas igualmente atento ao pormenor do comportamentop humano, na reacção ingénua dos nativos, na vaidade das distinções sociais que o excessivo número de criados domésticos possibilitava, nas astúcias de que se revestiu a gula ou a estultícia da colonização ultramarina, as mais das vezes mal orientada pelo governo central da Metrópole, desamoroso e apenas atento a uma sobrevivência multidimensional lisonjeira, sem respeito pelos homens que a isso contribuíam com o seu suor e o seu amor, enraizado por várias gerações.
Repondo a verdade, pontuando imparcialmente o erro e a virtude, “UMA PÁGINA POR DIA” constitui documento valioso da epopeia vivida pelos homens e mulheres nesse Ultramar desestimado e para sempre incompreendido.
Daí a variedade de discursos de primeira pessoa, o presente do comentário irónico ou conceituoso, alternando com os pretéritos de avanço no espaço – de Timor, de Angola, de Moçambique – em concomitância com o tempo, vago nos seus inícios – primeiro quartel do século XX – às alturas do retorno em avalanche à pátria-mãe, no seu último quartel. Conjuntamente com os perfeitos nucleares, os imperfeitos das amplas descrições retardadoras, no requinte do vocábulo esmerado e rigoroso. Pontilhando a arquitectura de uma prosa de ritmo poético e expressão clara, alguns poemas, melodias brotando da mesma fonte límpida que, sempre atenta ao mundo exterior, continuamente faz ressaltar as batidas de um coração comovido e crente.»

Irene Gil morreu em 1996.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Livros, uxoricídios, matos, no café da manhã

Como às vezes apontamos a nossa incompreensão pelo êxito mundial de Paulo Coelho, que ambas detestamos, a minha amiga trouxe-me hoje um recorte do “Correio da Manhã”, assinado por Paulo Nogueira, na rubrica “Estação de Serviço”, - “Almas Gémeas e Almas Penadas”, cuja introdução transcrevo, não só por parecer alinhar na nossa incompreensão, como porque a sua graça bem disposta nos fez rir de encanto:
Paulo Coelho vendeu mais cem milhões de livros, em todas as línguas (incluindo algumas mortas que descansavam em paz). Diz que as obras lhe saem a jacto, em duas semanas (nota-se), graças à comunhão com forças ocultas a que chama “a Alma do mundo”. A ideia de que entidades vaporosas dêem de bandeja um romance inteiro a um escritor – e que este venda milhões – é insuportável para a concorrência (como eu, que suo a camisola para gerar uma obra a cada três anos – e não propriamente best sellers.)...
De Paulo Nogueira, com cuja frustração concorrencial nos irmanámos, mas a quem desejámos, generosamente, melhor sorte livresca que a nossa própria, passámos, a propósito das garras do leão da fábula grega, referida no texto anterior, aos inúmeros casos sobre as garras dos homens nas mulheres que os abandonaram. A minha amiga referiu o último – o 27º caso português este ano. Passou-se no Bombarral. A mulher disse ao filho que a fosse buscar ao serviço, pois estava com medo do homem. O filho foi e foi ele que morreu, com um tiro no pescoço.
- E vamos a ver que o ano ainda não acabou. Veja o horror daquela mãe. Chamou o filho para a morte. Os homens vingam-se, quando são postos de lado. Chega-se à conclusão de que deviam estar internados, mas não há meios racionais para impedir estas tragédias...
- Faltam-nos os poderes mediúnicos do Paulo Coelho...
- É horrível tudo isto!
Puxei da minha erudição apaziguadora:
- Mas já é antigo. A própria Medeia – di-lo Eurípedes - para se vingar do infiel Jasão, matou os filhos de ambos e deu-os como refeição ao inconsciente pai.
Seguidamente, a minha amiga mostrou-me belas fotografias dos tempos da sua juventude em Moçambique. E falámos, a propósito de uma delas, do Carungo, uma casa no mato, perto de Quelimane. Considerámos o viver em isolamento destes homens e mulheres, viver requintado, como este no Carungo, mas afastados do mundo. Recebendo muito bem, com as suas horas de leitura, rodeando-se de meios para ultrapassar a solidão, recebendo bem, jogando canasta, mahjong, escrevendo cartas, poemas...

E eis a minha amiga explicando, com o orgulho de quem se passeou grandemente por lá, pela vasta África, a quem se sedentarizou nas suas vastas tarefas de mãe, de professora, de explicadora, de frequentadora de cafés com as amigas dos risos e das lágrimas que a vida traz:
- Eu conheci vários matos. Este do Carungo, dos Lacerdas. Depois conheci a terra de Pio Cabral, chamado Morrua, uma aldeia com tudo, tudo que ele próprio construiu, cinema ao ar livre, posto médico, cantina, casas para os empregados, aeródromo, táxis aéreos... Incrível! Como se estivéssemos nas Caraíbas! De maneira que conheci este mato. Disfrutei deste mato. Sabe como enriqueceu? Com minas de tantalite. Ele era caçador. Caçava nas redondezas. Um empregado dele descobriu a mina. Uma verdadeira mina! Nunca aquela mina acabou. Sempre a dar, sempre, sempre... É claro que ele mandava fazer prospecções. Agora não sei como é que aquilo está. Os filhos estão no Brasil. Ele morreu.
Depois há outro mato que eu conheci. Mato cerrado: Mopeia. Tem um deserto enorme, enorme, onde os caçadores caçavam. Mas lá está! O que é que eu vi? Um casal isolado. Mas havia uma aldeia, com escola primária. Mas todas estas pessoas estavam isoladas! Eu tinha muita consideração por estas pessoas, porque aquilo não era para mim!
- A Irene Gil também costumava falar no viver dessas grandes mulheres - ela foi uma delas – que tanto contributo deram ao alargamento civilizacional de Moçambique. E conta em “Uma Página por dia”. Como era mulher de um administrativo, as recepções eram frequentes, na sua casa, de gente ilustre que contribuiu para toda a sua intelectualidade. E por arrastamento, dos filhos, o Fernando e o José Gil, grandes cabeças no tablado nacional. E creio que internacional.
- Eles lá eram ricos. Ficou tudo sem nada. A história de África é incrível! As pessoas com a vida organizada, tiveram que embarcar... Completamente diabólico.

domingo, 6 de dezembro de 2009

A condição humana em fábulas de Esopo

Esopo foi um dos primeiros a usar os bichos como elementos de caracterização da selva humana, e por isso hoje, que é domingo, em “manobra de diversão” resolvi traduzir umas fábulas, demonstrativas da sua intemporalidade.

1ª Fábula: “O mosquito e o touro”
“Um mosquito que se tinha instalado sobre um dos cornos dum touro, depois de lá ter permanecido tempo bastante, no momento de zarpar, perguntou se sua excelência desejava que ele partisse enfim. O touro respondeu-lhe da seguinte forma: - “Não tinha reparado na tua chegada, tampouco repararei na tua partida.”
Esta fábula poderia aplicar-se ao homem sem poder, cuja presença ou ausência nem é útil nem prejudicial.”

Por aqui se vê, um tanto esquematicamente, que a invisibilidade dos mosquitos já era obra no tempo do Esopo, uns cinco ou seis séculos antes da nossa era. Mas já na nossa era Fernando Tordo cantou sobre touros, de mando do poeta Ary dos Santos, afirmando, todavia, que “nós vamos pegar o mundo pelos cornos da desgraça e fazermos da tristeza graça.” Referia-se na altura, na questão da tristeza, às muitas falhas do regime fascista na liberdade e no bem-estar sociais, mas a frase é sempre um incentivo, mesmo para o nosso tempo de excesso de liberdade e mal-estar social: podemos, assim, igualmente, “fazer da tristeza graça”. Mesmo que não conquistemos o mundo, que isso é tarefa de concretização limitada.

2ª fábula: O leão e a rã
“Um leão que tinha ouvido uma rã coaxar, foi em direcção à voz, julgando que pertencesse a um animal corpulento. Depois de esperar algum tempo, viu uma rã sair do charco. Então aproximou-se e esmagou-a com estas palavras: “O quê? Com um tamanho desses fazes tal chinfrineira?
Esta fábula aplica-se ao tagarela, que nada mais sabe a não ser falar.”

Já o nosso Vieira ironizou a respeito dos roncadores, as roncas do mar, em absoluta disparidade de voz e tamanho, tal como a da fábula, e com que se topa a cada passo, hoje em dia, facilitado o acesso, nalguns casos, por via radiofónica e televisiva.

3ª fábula: “Um leão amoroso”
“Apaixonado pela filha dum camponês, um leão pediu-a em casamento. Ora o pai, que não podia nem sofrer a desonra de dar a filha a uma fera, nem despedir um pretendente tão perigoso, imaginou o subterfúgio seguinte: como o leão multiplicava os seus pedidos, disse-lhe que o julgava digno da mão da filha, mas que a não podia conceder a não ser que ele arrancasse os dentes e eliminasse as garras, porque a menina os receava. Por amor, o leão vergou sem custo a esta dupla exigência: então o camponês não fez mais caso dele, e quando o leão se apresentou, expulsou-o à trancada.
A fábula mostra que quando se acredita facilmente no próximo, uma vez despojados das nossas vantagens, tornamo-nos presa fácil para aqueles de quem antes nos fazíamos temer.”

Amor, “engano d’alma ledo e cego”, quão perigoso é, transformando os próprios leões em autênticos anjinhos...

sábado, 5 de dezembro de 2009

“Parecem as lavadeiras de Caneças”

- Mas era melhor chamar-se-lhes gatos fedorentos.
Foi o começo do comentário da minha amiga sobre a discussão de ontem no Parlamento. Continuou, sem dar azo a resposta:
- Mas admite-se que se perca tempo? Pode-se? Mas parece que eles vão p’r’ali p’r’a isso. Mas eu gostava mais que se discutisse como é que se salva o país! Ou não vale a pena? Ai que cenas! Ai que cenas! Ai que cenas!
Consegui titubear:
- Foi um escândalo, de facto.
- Não sei, que venha alguém que explique se aquilo é normal!
Tentei justificar:
- Casa onde não há pão...
Mas nem cheguei a completar, nem era preciso.
- Eu estava à espera que começassem a trabalhar a sério. Ó rais ta parta. Não ponha isso! Eu devia estar calada que nem um rato! Eu não estou a dizer mal do PM. Estou a dizer mal da conjuntura. Ai que coisa! Faz-me tanta raiva! A gente saber que tantas horas são perdidas! Que façam algumas perguntas, tudo bem!
- Ele não responde.
- Aquela frase do ministro que o Louçã perguntou e ele respondeu: “Mas isto é um interrogatório policial?”, pois não, não respondeu.
Saco dos meus conhecimentos:
- Foi a frase do Vieira da Silva...
Mas esqueci-me da frase. Só sei que tinha a ver com espionagem de Estado, acusação sobretudo contra o PSD, na pessoa da sua leader. Se o Primeiro Ministro tinha apresentado queixa às entidades judiciais.
- E pronto! E por causa daquilo que ele disse nunca mais se trabalhou. Só falta começarem a insultar-se com nomes daqueles em que a televisão terá que pôr piii.
- Então e aquela insistência do PM em falar nos 25 euros do ordenado mínimo! A cada orador exigindo respostas o PM disparava: “Pois! Mas do ordenado mínimo, não fala!?” Fazia lembrar as repetições obsessivas de algumas personagens cómicas do Molière, ditas mecanicamente, obstinadamente, reveladoras de monomanias resultantes de interesses que obstruíam qualquer outra ponderação sensata.
- Somos cómicos, sim! Só o Jerónimo de Sousa é que lhe satisfez o gosto, falando nos 25 euros como dado positivo do governo de Sócrates.
- Por isso foi muito elogiado pelo nosso PM. O pior foram outras acusações dele, merecedoras de repúdio.
- O que eu acho é que nunca mais somos governados assim!
- Não, nós estamos a ser desgovernados!
- Completamente! A situação é gravíssima! Ah! Mas os vencimentos destes novos ministros! É tudo gente que está a viver muito bem! Não são todos, mas a maioria está muito bem! Têm casas, ordenado fabuloso... A Alçada é a das que tem mais. Também é casada com um homem que ganha muito bem, da Gulbenkian, Rui Vilar.
- Como sabe tanta coisa?
- Tiveram que declarar os rendimentos. Ai, o Nosso Senhor protege os políticos!
- Mas há mais protegidos. Auto-protectores, muitos deles. É preciso saber, para se ser.