segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Um conto de Natal optimista

O livro de Vasco Graça Moura “As mais belas histórias portuguesas de Natal”, presente do meu sapatinho da quadra, inspirou-me a criatividade, mas transformarei modestamente a minha história em simples conto de uns 2000 caracteres – os necessários para acesso à coluna dos leitores da nossa imprensa – com ressalvas, embora, já que muitos deles - caracteres - são eliminados, em jeitos de história antiga.
O meu presépio contaria com, deitado nas palhinhas do nosso desconforto, um Primeiro Ministro salvador do mundo – o nosso, naturalmente, lusitano, mais desgraçado de todos dentre Enganim e Cesareia - rodeado, a uma banda, pela Senhora Mãe do mesmo Reino de bem-aventurança, (“Ilha da Purificação”, segundo rótulo de um tal Cavaleiro de Oliveira), a Senhora Ministra da Educação, mãos postas em adoração ao “Menino”, ciente do seu domínio nas vias esfrangalhadas da nossa educação, e a outra banda, o preocupado Governador de um Banco nacional, ciente das palavras mágicas “Venha a nós o vosso Reino, mais na Terra do que no Céu" (daí o ar, em perfeito antagonismo com a serenidade de São José), todos os três munidos dos bons princípios para atingirem os bons fins. Nós outros, o povo em redor, óptimos substitutos do rebanho das ovelhas, vacas e burros, adorando o nosso “Senhor”, com os Reis Magos (não, necessariamente, apenas os três guiados pela estrela, que também as estrelas proliferaram), empunhando as vitualhas da sua mesa, obtidas, sob os insultos rosnados no inv/ferno da nossa incapacidade ou do nosso descontentamento invejoso ou repugnado, por processos que o Menino Jesus da Belém antiga não aceitaria, mas que o Menino das palhinhas do nosso “Curral de Moinas” não se importará de aceitar.
Ele sabe que, com a distribuição das benesses ao seu rebanho de “bem-aventurados”, será não nosso mas dele, o Reino dos Céus, embora o que conte, para ele, seja, de facto, o da Terra. Na próxima legislatura.
O Reino dos Céus continuará a ser para nós outros, segundo a promessa.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

O país da mentirinha

Aqui há uns mesitos, a banca fez constar que obtivera lucros fabulosos. Muitos milhões de euros. Aquilo foi bom para dar confiança a todos nós que não somos da banca, e nos limitamos à pia do lava-loiça – a nossa banca diária - para chafurdar na vasilha do alimento. Chafurdámos com mais entrain ao receber a boa nova dos lucros fabulosos da banca, julgando que nos dizia respeito, e até nos atrevemos a compor os pratos com mais requinte e dispêndio, diante da nossa banca habitual, atidos ao lema de que também temos direito ao sol nascente.
Afinal, o governador de uma das bancas vem agora com ar de anjo manso de quem não tem culpa, embora um pouco soturno de quem sabe que o mal é só para nós outros que não somos governadores, garantir que estamos à beira da recessão e que 2009 nos será muito desfavorável. Desfizemos o requinte e regressámos ao esfregão. Entretanto, descobriram-se mais fraudes, na banca, e até – ó céus! – ouvimos falar no desfazer de matrimónios, por via de distribuir melhor os lucros pessoais, não fosse o diabo tecê-las. Mais uma mentirinha para a governação de quem pode e sabe governar-se.
O próprio governo também é pouco escrupuloso. São as combinações de reuniões com os sindicatos – dos professores, por exemplo - que resultam em nada, porque tudo, nas intenções dos governantes é mentirinha, fraude, engano, troça. E nós, bem troçados e escarrados como lorpas, aqui estamos a continuar a ouvir e ler as mentirinhas de quem já não sabe distinguir o Bem do Mal, o Falso do Verdadeiro, os compromissos assumidos e o seu não cumprimento, só atentos às estatísticas do bem-vestir.
Temos ou não temos o absoluto direito e o honrado dever de entristecer e até de enrubescer com a vergonha de sermos como somos? Releiamos o nosso imortal Eça e a sua “Campanha Alegre”, tão parecida já, nos figurantes parlamentares aí descritos, com os de hoje, alargados, para mais, estes, a tantos outros domínios de figuração...

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

As imagens da nossa fragilidade

O nosso Presidente da República deu festa no seu Palácio. Aos filhos dos tropas que estão longe a defender os povos estrangeiros. Parece que estão a cumprir um dever, e a dar provas de muita coragem, disse o nosso P.R. Disse-o e repetiu-o, fez um discurso recheado de amor pelos filhos dos papás que defendem o bom nome da nossa pátria com o seu sacrifício, embora se diga que tal sacrifício seja actualmente da ordem do voluntariado bem abonado. Fez um discurso aos filhinhos e filhinhas dos papás, e antes de se acenderem as luzes da linda árvore de Natal contou-se do dez ao zero, o que nós cá em casa também acompanhámos e batemos palmas no final.
O senhor P. R., todavia, homem da velha guarda, jamais usou o termo filhotes. Isso está bem para a nova guarda, e assim fez a jovem jornalista ao entrevistar os meninos, falando para os telespectadores, cheia de facúndia, nos filhotes dos papás heróis lá fora. Os filhotes dos papás e das mamãs. Pouco tempo antes tínhamos visto, no tempo de antena, muitos pássaros e alguns filhotes mortos remetendo para a necessidade de salvaguardar as espécies ornitológicas com os filhotes incluídos, claro.
Achei a imagem da senhora jornalista muito bonita e recheada de ternura pelas espécies. Filhotes para aqui e ali, hoje em dia é de bom tom usar essa imagem de fragilidade, que nos aproxima da natureza inteira, nos seus comportamentos. O sexo variado e sem peias como entre os mais animais, os nudismos paralelos aos dos ditos, os filhotes dos humanos, tais como os dos mais animais... Vivemos numa época de solidariedade universal e de fragilidade e ternura humanas com cada vez maior amplitude. Será que os filhotes se sentirão felizes com a designação que, ao aproximá-los dos outros animais, lhes retira o carisma da ternura realmente humana?
Será que a instabilidade comportamental de tantos meninos hoje em dia não parte já desse tratamento de elegância social desumanizante?

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Com papas e bolos

Dizem as sondagens que os partidos de esquerda estão em ascensão. De facto assisti ontem a uma profusão de punhos cerrados, que me fez reviver outros tempos, noutras esferas do globo. Eram os discursos profusos em promessas de dirigentes de partidos africanos, aos seus povos explorados por odiosos exploradores. Alcançada que foi a pretendida governação, os generosos dirigentes enterraram as promessas e trataram de se safar bem, nas hecatombes surgidas nos, agora seus, povos, explorados sem protesto.
Com a liberdade alcançada nesta esfera do globo, forjaram-se aqui partidos, que experimentaram governar democraticamente, na tolerância e até no multipartidarismo, como disseram. Mas foi pura peta, o que sucedeu realmente, foi que cada um lutou sempre pelo bolo inteiro. Tivemos ajudas, todavia. Da União Europeia, com que construímos as estradas e fechámos as linhas férreas e os trabalhos de lavoura inúteis.
Entretanto, cada um ia roendo a sua parte do bolo, em calamitosa e progressiva demonstração de que mais do que os povos a quem se promete, todavia, fartura de papas e de bolos, o que se observa, nestes povos como o nosso - de iliteracia perfeitamente aproveitada pelos que lhes fazem as promessas - o que se observa, tal como nas esferas do globo supracitadas, é a generalização dos escândalos e das corrupções, seja nos políticos, nos administrativos bancários, judiciais e tutti quanti. E desemprego. E despedimentos. E fome. E desrespeito.
E chegou a vez de mais um homem sério prometendo fartura para os votos. Os apoiantes são muitos, uns já caturras, outros jovens, que ainda não sabem distinguir, ou que também já visionam hipóteses de boa sobrevivência futura, muitos os de punho cerrado, em suma. E os chefes, homens sérios, aproveitam a consternação geral instalada por um governo vaidosamente prepotente, para se indignarem contra os capitalismos gerais, apologistas que são da terra/bolo a quem os trabalha. E assim se enganam os tolos. De punho erguido.

domingo, 16 de novembro de 2008

avaliação na união

Escutei, com a devida atenção e respeito, a reportagem feita por uma companheira de trabalho de José R. dos Santos e em colaboração com este, sobre os sistemas de avaliação em alguns países da U.E.
Fiquei contente, porque vi que o nosso sistema é, de todos, o mais profuso em dados avaliadores. O finlandês, então – parece que era esse – é coisa que eles nem têm, avaliação. Fundamenta-se o critério deles, num ponto de vista bastante primário, parece-me, que deve partir duma qualquer fé nas competências de todos os ensinantes, os quais já deram provas suficientes como aprendentes. Entre as quais provas se conta, provavelmente, a confiança na honorabilidade de cada um, e no rigor de exigência a que estão habituados desde pequeninos, lá na Finlândia – exigência em comportamento, exigência em aplicação.
Nós não somos tão rigorosos, houve mesmo muita permissividade – laxismo, fraude – e agora chegou a hora dos castigos: pagam todos pelos erros passados, que muitos houve. Assiduidade, competência, pontualidade, muitas vezes foram letra morta, eu sei.
Por isso é bom que paguem os inocentes pelos pecadores.
É preciso, pois, apoiar o Primeiro Ministro que diz que também é avaliado, coitado, embora não mostre as suas fichas de avaliação.
É preciso apoiar a Ministra da Educação, embora também ela não mostre, coitada.
É certo que nem um nem outro escutam o que todos lhes dizem – que os avaliadores foram escolhidos com critérios arbitrários, e que a grande reforma que se está a fazer –que parece mergulhar, embora eles também não o digam, em questões de economia à custa do sangue de vítimas inesperadas – a grande reforma, repito, terá consequências funestas sobre as competências dos jovens que um dia hão-de levar por diante este país.
Embora haja professores que defendem muito bem pontos de vista mais inteligentes, como ouvi ontem na manifestação em frente a São Bento. O meu bem-haja a estes. Apesar dos Ministros.

O espírito de Manuela Ferreira Leite

Extraordinária a reacção, neste nosso país de sol e de touradas, a uma frase de Manuela Ferreira Leite sobre a dificuldade de impor reformas em democracia, alvitrando, em seguida, e com vivo gesto de mãos afunilante, sobre a necessidade de se impor ditadura por seis meses para as reformas que depois, feitas estas, poderíamos já continuar em democracia libertária e “reformada”.
A nossa gargalhada ao ouvi-la foi imediata, e resultou do prazer de escutar uma afirmação feita em voz suave mas cheia de intenção sardónica, como que pedindo desculpa da garotice. Bravo, Drª Manuela, estávamos a precisar dela, na angústia em que vivemos a contemplar o progressivo deslizar pelo despenhadeiro das actuais políticas, e assim nos despenhando também, a perspectivar tragédias futuras de irracional perda de identidade e valores nacionais...
Julgámos que a glória do dito irónico viesse coroar a bela cabeça da dirigente partidária, mas no país de sol e de touradas, a reacção imediata levou o dito a sério, e desancaram-na. PS, PSD, e não sei se mais alguns, rivalizaram nas bordoadas.
Esperamos que Manuela Ferreira Leite se não aflija com as picadas. E não acredite nesses dizeres de inconveniente falta de graça. Os que a entenderam e sentiram como intencional para eles, refutaram-na em auto-defesa. Os que talvez a não tivessem entendido – a subtileza não é para todos, hélas! – superlativaram-na em grotescas exibições de seriedade manhosa, sem importância de maior.
Continue, Drª Manuela, a defender os seus pontos de vista com a seriedade honesta que lhe conhecemos, ou com a graça ligeira que gostámos de conhecer. E não acredite no que alguns dizem, que não sabe fazer humor. Isso seria negar o humor sério do Jacques Tati, no “Mon Oncle”, ou as façanhas, fonte de riso eterno, do circunspecto D. Quixote...

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Os Seniores

A Ministra da Educação disse, nas entrevistas que deu, no sábado da manifestação, que a titularidade dos professores, segundo a reforma, fora bem entregue aos professores seniores que são, pela idade e experiência, os mais competentes para avaliar os professores juniores. Mas a Srª Ministra não disse a verdade e não houve quem desfizesse a afirmação falsa e melifluamente transmitida, que nenhum entrevistador rebateu. Também ela não deixou, que não está ali para ouvir mas para ditar a sua própria lição, há muito decorada e sempre igual.
De facto, não só têm vindo a lume casos que não se enquadram nesses dizeres falsos, com os “mais” juniores a tomar o lugar dos “mais” seniores, como não é sempre verdadeira a competência trazida pela idade e a Srª Ministra sabe-o bem, que todo este processo de avaliação foi intencionalmente cozinhado para liquidar classificações, tempo de serviço, etc, àqueles dos seniores, por bons que fossem, em assiduidade, pontualidade, empenhamento, mas que limitaram as suas carreiras à sua docência em função dos seus discentes.
A Sª Ministra sabe que neste país os seniores depressa ficam nas prateleiras, ultrapassados por avalanchas dos juniores – sejam actores, cantores, servidores de qualquer função.
Por isso os professores, para continuarem nas suas carreiras, com bom aproveitamento, terão que dispender longas horas das suas vidas diárias mergulhados em burocracias, reuniões e papeladas em torno da avaliação – deles e dos seus alunos.
Que também há que prestar contas dos sucessos escolares junto da U.E. Mesmo com artifícios manhosos, que assim se descobriu a panaceia do insucesso, para orgulho da Srª Ministra, que tem que apresentar os números, ainda que forjados a trouxe-mouxe. O que é certo é que este processo de avaliação deixa pouco tempo para o estudo, mas a Srª Ministra da Educação nem se rala. Até refere com prazer o sacrifício dos professores deste país, no “processo” que alguns acham “kafkiano”, embora com as mãos postas, bem à nossa maneira.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Ensino e Reformas

Ensino e Reformas
O texto que segue, precedido da carta a um qualquer jornal para onde foi enviado, foi escrito em 1989. Dezanove anos passados, parece ter perfeita actualidade, no que concerne às reformas pedagógicas que desde a revolução de 1974 não pararam de realizar-se, e sempre dentro do lema de uma falsa afectividade, tendente a transformar a escola num jardim celeste, ou espaço lúdico para os alunos, condenados a um estreitamento de responsabilidades e interesses culturais, nessa atmosfera de laxismo e impunidade com, certamente, consequências catastróficas para si próprios e para o país de mentecaptos progressivamente em evidência.
Para os professores, pelo contrário, um espaço de receio e frustração, para os realmente empenhados em transmitir os ensinamentos da sua esfera de competências, paralisados à partida por sobrecarga de normas e burocracias cada vez mais sinistras, se não ridículas e desmotivantes - se não para todos, (há sempre a imagem do professor camarada, que alinha, em apelo ao voto, sem se preocupar com a eficiência, nem com o país, nem com o material humano que deveria ajudar a formar), pelo menos para a maioria, que continuo a julgar responsável e desejosa de obter êxito no seu trabalho formativo.
Quero crer que, felizmente, haverá sempre quem avance, na floresta perigosa, de não um mas múltiplos lobos maus que os perseguem, em truques de prestidigitação, de que os “magalhães”, nas classes primeiras, constituem barreira contra os objectivos de bem ensinar a ler, escrever e contar, e a profusão de alunos deficientes nas escolas, exigindo competências docentes, decerto que miraculosamente atamancadas e espinhosamente difundidas, constituem barreira insuperável, só satisfazendo as doutrinas da nossa caridadezinha educativa, exigida pelo nosso Ministério da Educação.
A esses professores que conseguem vencer os obstáculos contra a autenticidade educativa, sujeitando-se ao amontoado de exigências despóticas, insensatas e punidoras, e apesar disso procurando a exigência cultural para a transmitir, mesmo à custa da saúde e da família, o meu sincero apreço.

Eis os textos de 1989 (in “Anuário – Memórias Soltas”):
Exmo. Sr. Director do Jornal...
“O assunto do texto em anexo – “Percurso de um Professor Secundário” sobre as questões da “Formação Contínua” dos professores e da “Avaliação” dos alunos, segundo a Nova Reforma, é, por demais, candente para merecer a atenção de V. Exª. Embora o discurso tenha saído em tom pessoal, devo explicar que ele pretende retratar, acima de tudo, um perfil esteriotipo do professor consciente e com o brio profissional que me parece ser comum a grande parte dos professores.
Vejo-os demasiado passivos a uma ridícula imposição provinda do Ministério, de apresentação de Currículos ou Relatórios para poderem mudar de escalão, sinto o crescendo de agressividade nas relações entre os colegas – os que se pretendem com mais “carisma” pondo mesquinhamente em acção atitudes acusatórias contra a actuação dos colegas, num propósito de relevo pessoal pouco ético, vejo a tensão que de repente se apoderou da maioria dos professores, sobretudo os mais jovens, a quem uma longa carreira espera ainda de estágio permanente, sob o olho pesquisador de colegas zelosos – para além da cada vez maior violência da sua própria missão docente – e daí o ter desejado escrever um texto que defendesse um ponto de vista menos draconiano.
Como orientadora de estágio que já fui, sei quanto esse aspecto contribuiu para uma actualização de conceitos, mas sei também quanto devo a todo um longo percurso de estudo e autoformação, que me conduziu a uma escolha consciente de opções, e a compreender quanto determinados conceitos têm empobrecido cada vez mais o panorama do nosso ensino.
O assunto é vasto, e não é minha intenção fazer-lhe perder mais tempo. Agradeço a V. Exª a publicação, no seu Jornal, se possível, do texto que segue:

Percurso de um Professor Secundário
Um curso superior coroaria esforços que se projectaram – devo dizer que sempre com garra e empenho – numa carreira de transmissão das matérias naquele colhidas e a qual o estudo e preparação de aulas fortaleceria, de acordo com a evolução das matérias de ensino e das metodologias para as veicular. Mantendo, embora, conceitos menos flexíveis sobre a pedagogia de alarde afectivo há uns anos instaurada para incremento do desrespeito e da violência na escola, sou, actualmente, um professor trabalhador e assíduo que alcançou, penso, o estatuto de competência – relativa, naturalmente, como tudo o que define qualquer posicionamento neste mundo sublunar.
Verifico, todavia, que as provas prestadas em cada dia que passa, de aquisição constante, e tantas vezes de desgaste físico e psicológico, consequência da doutrina da permissividade que as pedagogias impõem, apesar de defenderem, enfaticamente e capciosamente, os valores da responsabilização, em nada contribuem para a progressão na minha carreira: novas provas e exames me esperam, se quiser ascender a escalões a que o estudo, a assiduidade e o empenhamento demonstrados me pareciam dar direito.
Se jogo com o factor da assiduidade, respondem-me que tolo fui eu em não ter beneficiado das faltas a que tinha direito. Quanto à competência e empenhamento – quem conhece os alunos que ajudei a formar? – de quem espero, aliás, não o atributo de apreço mas, se isso os favorecer na sua carreira, a indiferença ardilosa ou mesmo a rivalidade acintosa que os elevará mais depressa ao topo, em detrimento do ex-professor, renitente ao espalhafato efusivo e pouco educado de uma pseudo-formação contínua, tão expressivo da idiossincrasia de um povo materialmente e intelectualmente pobre e sentimentalmente mesquinho, que da tal democracia apenas retirou o direito à liberdade de se assumir alvarmente, sem respeito nem grandeza.
Quando, por outro lado, assisto ao desenrolar de um processo de avaliação dos alunos segundo a nova Reforma, que acentua o carácter mistificatório de um ensino que põe à prova, farfalhudamente, jeitos de cooperação e actuação, mais do que as exigências de uma real aprendizagem, baseada em aquisições do foro cognitivo e que, com a autonomia que se concede aos alunos, cada vez mais os afasta do desenvolvimento mental, apanágio aparente da escola, e em que o professor, quaisquer que sejam os comportamentos e os resultados observados, se limitará a deixá-los passivamente vencer anos até à barreira selectiva do 9º, interrogo-me sobre o significado de um ensino que cada vez mais retira as bases necessárias, mas que exigirá, no secundário e seguintes, domínios de conhecimento que o aluno por si só nunca mais alcançará.
Na sua vida futura, todavia, outras exigências lhe serão impostas, já sem afectividade nem respeito, que só aparentemente – ou cinicamente – se observam para com a criança, não por ser frágil ou desamparada, mas porque nessa altura não causa ainda sombra a ninguém. Quando mais tarde, na vida prática, lhe forem impostas normas e exigência de competências que hipocritamente lhe haviam sido retiradas para colmatar índices de insucesso escolar desprestigiante perante as nações culturalmente mais bem artilhadas, o então adulto sentir-se-á defraudado, se tiver a inteligência necessária para se aperceber do logro: se for esperto e sem escrúpulos, usará a manha ou o encosto ou o atropelo, para vencer. Se for honrado, as hipóteses são menos tranquilizantes.
Esta, a sociedade que preparamos e, como professor cônscio dos valores indispensáveis ao desenvolvimento intelectual dos alunos, mau grado a enxurrada de acefalia e contradição das propostas educativas ministeriais, recuso-me a pactuar com elas.
Mas tal posição, que naturalmente resulta da competência relativa que julgo ter alcançado com a minha autoformação contínua, não me é favorável nas pretensões de acesso aos escalões. Nem o meu empenhamento, nem a minha assiduidade: tudo isso é nada – é fado, segundo alguns mais passadistas. – pois outros me avaliarão, sem nada conhecerem de mim nem eu deles.
Se me mostrar demasiado radical nas afirmações – a flexibilidade da espinha e das ideias está, provavelmente, na razão inversa da idade e da reflexão – não haverá contemplações para com o meu natural desejo de ascensão na carreira.
E toda a gente sabe quanto depende essa ascensão, tantas vezes, da empatia que provoca, ou da gravata que o distingue.
Professor Secundário

terça-feira, 14 de outubro de 2008

"A Mula do Papa"


É uma história cheia de humor, esta das “Lettres de mon Moulin” de Alphonse Daudet, “La Mule du Pape”, que nos inspira reflexão, no sabor da sua leitura prazenteira. Trata-se de uma muito amada mula papal, pertencente ao não menos amado Papa Bonifácio de Avignon, no tempo em que a Cristandade resolvera cindir-se em dois chefes espirituais, o que seria gorado posteriormente, que todos os chefes preferem sempre governar sozinhos.
Em Avignon, todavia, por esse tempo, tudo corria pelo melhor, o Papa cavalgando a sua mula e atravessando a ponte, ao som da charanga e da alegria geral e seguido do seu cabido, até ao recanto preferido – uma pequena vinha, nos arredores de Avignon, onde se deliciavam com o vinho da sua lavra – o futuro vinho Château-Neuf des Papes. E à noite, era o próprio Bonifácio que ia amimar a mula com uma tigela cheia do bom licor papal que tanto a deliciava. E todos viviam felizes.
Mas um dia apareceu um moço bem safardana no caminho do passeio papal, Tristet Védène, o qual, de tal modo lhe elogiou a mula, que o Papa Bonifácio, rendido, o convidou para seu servidor no palácio. Que a mula era, naquela época, a cunha mais eficaz para as promoções no Papado. Porém à noite, quem passou a substituir o Papa no transporte da malga de vinho para a mula, passou a ser o velhaco do Tristet Védène, devido à confiança grata e ao cansaço do velho Papa Bonifácio. Tudo se acaba, infelizmente para os prazeres, felizmente para as desgraças. Para a mula papal foi o desastre. Que Tristet Védène era um fingido, um relapso, que diante do Papa amimava a mula, e à noite, com os camaradas de estúrdia, a maltratava e escarnecia, levando-a a cheirar os odores do vinho, apenas, porque os que o bebiam eram eles, para em seguida lhe puxarem a cauda e as orelhas, em brincadeiras de péssimo gosto. E o rancor da mula foi crescendo, crescendo, embora comedido, à espera de oportunidade para uma justa vingança. Mas as patifarias do Tristet Védène também aumentaram, a ponto de a levar à sorrelfa, pela escadaria em caracol até à torre do campanário, e querer convencer o Papa, estarrecido, - que desde então passou a desconfiar da sanidade mental da sua mula – de que a mula se passara e subira sozinha, numa de mula de circo. Foi indescritível a aflição humilhada da pobre mula. Mas, tirada a custo do campanário, em triste espectáculo degradante, inesquecível para uma orgulhosa mula papal, quando quis vingar-se de Tristet Védène, já este vogava para a corte de Nápoles, a fim de se aperfeiçoar nos estudos diplomáticos e sociais, que contemplavam procedimentos de respeito por todos os seres da criação.
Sete anos passaram e Tristet Védène voltou, para mimar a mula e obter novo cargo, o qual lhe foi concedido devido ao enternecimento do velho Papa Bonifácio. Mas quando se aprestava a assinar a sua tomada de posse, com as palavras usuais: “Juro solenemente pela minha honra que respeitarei...”, foi interrompido com uns coices da mula, de alcance fortalecido por sete anos de espera, de tal modo que de Tristet Védène só restou a lembrança da sua participação no provérbio a respeito dos rancores vingativos: “Ser-se como a mula do Papa que levou sete anos para mandar o coice...”.
É certo que a história e a ficção mundiais estão impregnadas de episódios assim, de “vendettas” mais ou menos ilustres e duradoiras, a começar pela de Aquiles que ia tramando a causa dos Aqueus na destruição de Tróia, recusando-se a participar na guerra, movido por ódio vingativo contra Agamémnon, por lhe ter roubado a escrava Briseida, muito amada. Felizmente para o poema “Ilíada”, a morte do seu grande amigo Pátroclo fê-lo arripiar caminho e o destino de Tróia cumpriu-se, com a participação de Aquiles, embora funesta para si.
Mas vinganças e retaliações são mais que muitas, senão nem tínhamos o nosso Romeiro a tramar o Manuel de Sousa Coutinho e família, nem o Simão Botelho alvo de perseguição, ou o João da Cruz morto a tiro de bacamarte. O próprio “Mário” do Silva Gaio é um alfobre de forças destas, e os escritores do século passado também contaram muitos casos, com o Miguel Torga na vanguarda da escrita meritória.
Não faltam casos também, hoje em dia, mesmo no nosso país de valentes heróis do mar. A imprensa diária, a televisão, a rádio, a internet, o telefone, as bisbilhotices entre amigos fartam-se de os referir – pessoas que denunciam outras com quem viveram em livros de muita aceitação pelo nosso público, pessoas que matam familiares, ou sócios, devido a descobertas infamantes, ou aqueles que invejam outros por serem mais ricos até em petróleo, em suma, todos os que retaliam por se julgarem com mais qualidades ou direitos.
E como tudo se processa com maior velocidade, já não há quem espere os sete anos que esperou a mula do Papa para mandar o coice. Mas isso também se deve ao progresso.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Deixai vir a mim as criancinhas - Provas de recuperação

Está divulgado em blogue.
Trata-se do ofício-circular nº 14 enviado a 11/9 a todos os estabelecimentos de ensino abrangidos pela DRELVT (Direcção Regional de Lisboa e Vale do Tejo), os do resto do país regendo-se, com certeza, por ofícios idênticos. Mas a ministra é nossa, é cá do Tejo, que foi donde partiram as naus para os descobrimentos marítimos, mais especificamente da praia do Restelo, de lágrimas para os que se iam, terra de prazer para os que se vinham. Por isso o ofício 14 irá ter o merecido êxito junto da UE.
A ministra põe as mãos, ou abre os braços protectores para as criancinhas, a quem dá muitas oportunidades de alcançarem a medalha da instrução. Se os meninos faltam demasiado, lá têm a possibilidade de recuperação pelas provas. Provas fáceis, de acordo com as competências, ou seja, de acordo com a situação específica do aluno faltoso. As provas são puramente um bónus, não têm importância de maior, servem apenas para estabelecer critérios de responsabilização para o aluno habituado a faltar. Se os resultados forem negativos, é outra questão. Trata-se de mostrar uma estatística decente junto dos órgãos competentes da UE relativamente ao nosso absentismo e consequente abandono escolar. Competência é outra coisa, o aluno faltoso pode perfeitamente instruir-se fora da escola, actualmente existem bons meios para isso. Não importa também que o professor esteja ali para servir os alunos faltosos, construindo testes suplementares, tantos quantos eles forem, em roda-viva de trabalho eficiente mergulhado em papéis, computadores e reuniões instrutivas. É prática, aliás, já antiga, do ensino recorrente, primitivamente chamado “Unidades Capitalizáveis”, que se revelou nulo.
Mas como aconselha o texto do blogue, os professores que colaborem na política da estatística envergonhada do M.E. recusando-se a marcar faltas, que só lhes darão trabalho a eles. E depressões. O resultado é o mesmo na questão da medalha.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Máscaras na Internet


Foi Arthur Rimbaud um caso notável de precocidade literária, pela criação, entre os dezasseis e os dezanove anos, de uma poesia alucinante, feita de intransigência, de ruptura com a tradição poética, de exploração de novos ritmos, de utilização hábil de palavras e referências culturais, uma poesia mágica de egocentrismo e vidência, com transfigurações da realidade, e em prodigioso desregramento dos sentidos.
Impossível não descobrir, nos poemas estilizados e egocêntricos de Mário de Sá Carneiro, a influência literária deste mágico revolucionário, não ver em Fernando Pessoa, assumindo, qual Proteu, metamorfoses que resultaram nas diversas máscaras da sua heteronimia, tantas das violências e transfigurações alucinantes da natureza, nos versos do extraordinário e efémero poeta rebelde do século XIX francês.
De natureza profundamente intelectual e maquiavelicamente hábil em transmutações, Fernando Pessoa chegou ao ponto de criar enredos biográficos para os seus heterónimos mais conhecidos, como se se reconhecesse capacidades mediúnicas ou poderes transcendentais de “emissário de um rei desconhecido” cumprindo “informes instruções d’ além”. Todavia, bastas são as influências que sofreu, nas suas viagens literárias, que não excluem clássicos e modernos, o “Fausto” incluído, na descrição dos mundos e das figuras que na roda dos tempos se fundem, Nietzsche e os poetas futuristas, os surrealistas, e simultaneamente a consciência da multiplicidade de eus em cada pessoa, segundo fórmula consabida de Pirandello - “uno, nessuno, centomila” - o que nos leva a pensar que tais experiências psicológicas mais não são do que a resultante de capacidades, realmente transcendentais, de inventar e aplicar toda a gama cultural em que se desdobra, nas mais diversas formas prosódicas e lexicais.
Hoje em dia, há, todavia, mais possibilidades de utilizar este e outros processos de sofismar a realidade, através, entre outros meios, da Internet. Mas, enquanto Pessoa assume as suas diversas personalidades, e nos enriquece a nós com a ostentação de uma multiplicidade de discursos segundo a figura em que se assumiu, com mais ou menos sinceridade, os bloggers inteligentes que contactam com incautos desconhecidos podem perfeitamente jogar jogos de escondidas, em propósito pouco honesto de troçar do pateta que caiu na esparrela, assumindo várias personalidades e pondo-as a dialogar entre si e com o pateta, numa prova de criatividade perfeitamente admirável, conquanto, evidentemente, pouco honesta e mesmo hipócrita, quais tartufos esfregando as mãos de contentes, enquanto exprimem voluptuoso arrependimento. Rendo-lhes homenagem.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Coveiros


Extraordinário, este nosso pobre país, extraordinário povo, este nobre pobre povo português! Fizeram uma revolução, aparentemente por amor aos portugueses oprimidos por uma ditadura que não dava liberdade para se “exprimirem” e agora que têm essa liberdade, e o mesmo poder dos governantes de outrora, tratam de “espremer”, em liberdade, o mesmo pobre país e o mesmo nobre pobre povo!
A coisa vem narrada nos jornais e nos folhetins noticiaristas televisivos, mas não se conta tudo. Espremem-no na economia, com os ministros, os deputados e o presidente com direito a acumular os vencimentos das várias funções das suas vidas públicas, com os banqueiros, juízes e C.ª abancando somas astronómicas para não se deixarem cair na tentação de acederem aos subornos (peitas) do nobre pobre povo com prática de subornar (peitar) para merecer, e de se humilhar para obter, retiram-se os direitos dos funcionários – tais os professores, arranjando-se à pressa, para uns, uma titularidade grotesca, atropeladora dos direitos - quer em competências quer em finanças - de outros com mais direitos... Espremem-no nos escrúpulos morais, que deixaram de existir, na impunidade do crime (mesmo da pedofilia) que até merece ser ressarcido e tantas vezes agraciado... Espremem-no nos vários direitos, com a criação de novas leis ou a flexibilidade das antigas, segundo as conveniências próprias ou dos amigos, fornecendo-se casas camarárias em detrimento dos não amigos, num Estado cada vez mais endividado, mais desordenado, mais desprotegido, mais desempregado...
Só não o espremem nas promessas e no alarde sobre as coisas feitas e nos “magalhães” fornecidos, puros ossos descarnados e atirados... E o nobre pobre povo aplaude e elege, enquanto os que podem vão espremendo e aforrando, nas suas “covas” tão fundas...

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Histórias fantásticas

Tais as histórias de fadas, de bruxedos ou de um mundo anímico em que os animais falavam e a natureza toda ela colaborava a favor ou contra os heróis ou as heroínas das acções, de proezas inextricáveis ou inconcebíveis, no conceito mais realista do universo adulto. Assim eram os contos da infância, que Perrault e os irmãos Grimm tão bem recriaram, partindo dos mitos da Antiguidade, como Eros e Psique, reproduzido no “Burro de Ouro” de Apuleio, ou o conto bretão “Tristão e Iseu” e outras lendas medievais da Távola Redonda, já aproveitadas na própria dramaturgia shakespeareana e que se projectariam no cinema animado de Walt Disney e cineastas afins. Fabulários, bestiários, mergulham longe as suas raízes, nos mitos da História Antiga, na Bíblia, nos poemas homéricos... Também as hagiografias dão a conhecer vidas milagrosas de santos, de tentações, sofrimentos e êxtases, em que o Diabo tem papel de relevo, como já manifestara com Cristo, segundo o Novo Testamento. O próprio “Don Juan” terá contas a prestar ao Diabo, devido às suas heresias e aos atropelos constantes para com o belo sexo...
O estranho é que este universo de incredibilidade seja aproveitado pelos escritores mais realistas, como diversão ou como libertação das frustrações em que uma literatura mais empenhada os mergulhara – Eça (1845/1900), n’“O Mandarim” (1880) ou nas suas “Lendas de Santos” – ou possibilitarem um maior entrosamento com outros universos culturais, como romances de tese – v.g. “O Retrato” (1841) de Nikolai Gogol (1809/1852) ou “O Retrato de Dorian Gray” (1890/91) de Óscar Wilde (1854/1900).
As Lendas de "S. Cristóvão", de "S. Frei Gil", de "Santo Onofre", de Eça de Queirós terão em Flaubert – “Lenda de S. Julião o Hospitaleiro”, “Lenda de Santo Antão” - a fonte principal de inspiração: S. Cristóvão e a gradual percepção para a luz, S. Frei Gil e a busca do saber com função altruísta, com vitória sobre o Demónio, à maneira do "Doutor Fausto", Santo Onofre e o misticismo interior na procura ascética mas egoísta da santidade, todos eles representativos de facetas do espírito e da condição humanas.
Quanto a “O Mandarim" parte, como os seus congéneres russo (ucraniano) e inglês (irlandês), de uma situação de carência e ambição – de dinheiro, poder ou permanência de beleza e juventude – que obtêm – no caso de Teodoro, (o enguiço, por alcunha de Madame Augusta Marques, a sua locatária, por ser exageradamente supersticioso), pelo toque de uma campainha que matará o pobre Ti-Chin-Fu, mandarim milionário, segundo informação de um livro comprado na Feira da Ladra, no capítulo “Brecha das Almas”; no caso de Tchartkov, pela compra de um retrato de uma estranha figura maléfica de velho, cuja moldura encerra mil moedas de ouro, providenciais ao endividado pintor; no caso de Dorian Gray, pela formulação de um desejo de manutenção, em troca da sua alma, da beleza e juventude contidas no seu retrato, pintado pelo seu amigo, o pintor Basil Hallword.
N’ “O Mandarim”, (dividido em seis capítulos), o tentador é representado, humoristicamente, por uma figura vestida de negro e com o guarda-chuva debaixo do braço, que acicata o desejo de Teodoro lembrando a injustiça da sua condição de amanuense pelintra, impossibilitado de aceder aos bens materiais fornecidos pela fortuna, incitando-o a tocar a campainha, que lhe facultará tudo isso. Ao sucesso que lhe advém das riquezas, seguem-se as lutas de consciência, o cruel arrependimento manifesto inicialmente numa devoção furiosa, bem aproveitada pela Igreja, que lhe sugere, blandiciosamente, a oferta de dádivas e mesmo a construção de uma catedral; seguidamente, vem o desejo de evasão, com viagens pela Europa, Egipto, a procura inútil e desastrosa, pela China, da família do mandarim, para a compensar e legitimar a sua herança, o retorno à pátria, sempre perseguido pela figura do mandarim, o desprezo social pelo falhado honesto que se dispõe a desprezar a riqueza e a retomar o emprego e a pensão da D. Augusta, a reviravolta do mesmo, assumindo novamente as suas riquezas e o seu prestígio social, o que lhe provoca um “desprezo pela Humanidade tão largo – que se estendeu ao Deus que a criou” - mas com o mandarim sempre acompanhando-o com o seu papagaio, e o apelo inútil ao homem vestido de preto para que ressuscite o mandarim e o livre da fortuna, e com ela, do sofrimento do remorso.
A filosofia da honestidade e do comportamento segundo os valores da moral, são a conclusão irónica do conto, logo desmistificado sardonicamente com a atribuição, a todo o homem, de um gesto igual ao seu, de, em iguais circunstâncias, tocar a campainha para matar o mandarim, que assume, assim, a dimensão simbólica, embora à escala humana, do Bem obtido através do Mal, o Bem representando o poder da riqueza, o Mal, a corrupção e o crime. Daí, a perfeita actualidade do conto. Eis o remate: “Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele lego os meus milhões ao demónio; pertencem-lhe; ele que os reclame e os reparta... E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras: “Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o mandarim!” E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta ideia: que do norte ao sul e do oeste a leste, desde a Grande Muralha da Tartária até às ondas do mar Amarelo, em todo o vasto império da China, nenhum mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!”
N’ “O Retrato” de Gogol (dividido em duas partes), é o próprio retrato feito por um pintor desconhecido (só na II Parte ele será identificado) que exerce um poder maléfico sobre o carácter e a vida do seu possuidor, que, cada vez mais ambicioso de fama e riqueza, descura a sua técnica pictural, para produzir quadros convencionais, sem alma, fechando-se malevolamente ao mundo, invejando os verdadeiros pintores, terminando no maior sofrimento, após ter gasto a sua fortuna na compra de obras primas de pintura, não para as contemplar mas para as destruir, em violências de louco, movido pela inveja que nele despertara um quadro de um ex-colega de ofício. Para além de especificar, pois, como características principais para a criação artística, o trabalho e o estudo, o conto desenvolve, assim, uma tese sobre o valor da fama em contradição com a autenticidade do génio artístico. Eis alguns passos comprovativos:
Tchartkov tornou-se um pintor da moda em todos os sentidos. Começou a ir a almoços, a acompanhar senhoras às galerias e até em passeios, vestia-se de forma elegante e afirmava publicamente que o pintor devia pertencer à alta sociedade, que era preciso manter a sua dignidade, que os pintores se vestiam como sapateiros, não sabiam conduzir-se adequadamente, não respeitavam o bom-tom e não tinham qualquer instrução. Em sua casa e no estúdio, impôs uma limpeza incrível, contratou dois criados magníficos, tomou aprendizes janotas, mudava de roupa várias vezes ao dia, frisava o cabelo, dedicava-se a aperfeiçoar várias formas de receber os visitantes, ocupava-se a embelezar por todos os meios possíveis a sua aparência, para causar boa impressão às senhoras; em suma, em pouco tempo tornara-se de todo impossível reconhecer nele o modesto pintor que trabalhara outrora no anonimato no seu cubículo na ilha Vassilievski. Exprimia-se agora com palavras bruscas sobre os pintores e a arte: assegurava que já se atribuía demasiado mérito aos pintores antigos, que todos eles, antes de Rafael, não pintavam figuras mas arenques, que era apenas na imaginação dos observadores que existia a ideia de se ver neles algo sagrado; que até o próprio Rafael não pintava assim tão bem e que a fama de muitas das suas obras perdurava apenas por tradição; que Miguel Ângelo era um fanfarrão, porque queria apenas exibir os seus conhecimentos de anatomia, que não havia nele nenhuma graciosidade e que o verdadeiro esplendor, força do pincel e colorido era preciso buscá-los agora, no presente século. Aqui, naturalmente, como que por acaso, começava a falar de si: “... A pessoa que mergulha durante meses num quadro, na minha opinião, é um artesão, e não um pintor... este retrato pintei-o em dois dias....” “... A sua glória era cada vez maior, os trabalhos e encomendas aumentavam. Já começavam a aborrecê-lo sempre os mesmos retratos e rostos, cujas poses e posturas já sabia de cor. Já os pintava sem grande vontade, esboçando apenas a cabeça de qualquer maneira, e dando o resto aos aprendizes para acabar... A vida de distracções e a alta sociedade, onde procurava desempenhar o papel de um homem do mundo, tudo isso o levara para longe do trabalho e do pensamento. O seu pincel tornara-se frio e embotado, encerrara-se insensivelmente em formas rotineiras, fixas, há muito gastas... E aqueles que tinham conhecido Tchartkov noutros tempos não conseguiam compreender como podia ter-se evaporado o seu talento... Contudo, o enleado pintor não ouvia estes comentários.... Nos jornais já lia os adjectivos “o nosso respeitável Andrei Petrovitch” e “o nosso emérito Andrei Petrovitch”. Já começava a ser convidado para cargos honoríficos...” “Em suma, a sua vida já chegara àquela idade em que tudo o que respirava entusiasmo se encolhe no homem... em que todos os sentimentos embotados se tornam mais sensíveis ao som do ouro... Assim, todos os sentimentos e impulsos de Tchartkov se dirigiam para o ouro...Os maços de notas cresciam nas suas arcas... transformou-se num avaro sem motivo, que poupava sem qualquer finalidade, pronto para se tornar numa daquelas estranhas criaturas tão frequentes no nosso mundo insensível, que são olhadas com horror pelo homem que tem vida e coração...
N’ “O Retrato de Dorian Gray” (dividido em vinte capítulos), será Lord Henry Wotton que lançará o veneno no espírito do jovem Dorian, por meio dos seus paradoxos e epigramas destrutivos da moral convencional deste, que se regia pelos ditames da burguesia inglesa. Tais discursos epigramáticos, tão comuns também nas peças de teatro de Óscar Wilde, remetem-nos para a graça maliciosa de João da Ega, personagem d’ “Os Maias”, de espírito cintilante e acutilante, sem criar a sensação da sobrecarga que impregna os conceitos filosóficos de Lord Henry, que, todavia, exprimem uma admirável honestidade de pensamento humanístico e liberdade na sua expressão. Citamos alguns exemplos, do I e II capítulos: “A naturalidade não passa de uma pose, é a pose mais irritante que conheço”, em resposta a Basil, que o acusara do seu “cinismo de pose”; “Creio que sou capaz de acreditar em tudo, desde que seja perfeitamente inacreditável”; “A consciência e a cobardia são uma e a mesma coisa, Basil”; “Todo o cuidado é pouco na escolha dos nossos inimigos”; “As pessoas fiéis só conhecem o lado trivial do amor. São os infiéis que conhecem as tragédias do amor”; “Só as pessoas frívolas é que não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível”; “A única diferença entre um capricho e uma paixão eterna é que o capricho dura mais tempo;” “Eu adoro os prazeres simples. São o último refúgio das pessoas complexas.” “O pecado é na verdade o único elemento colorido que nos resta na vida moderna”; “Há algo de extremamente mórbido na simpatia moderna pelo sofrimento. Devíamos simpatizar com a cor, a beleza, a alegria da vida.”... Este último conceito, do capítulo III, aponta bem para a filosofia de fruição da vida, que está na base da estrutura do enredo narrativo, que, pelo elogio da juventude e da beleza do corpo, deforma o espírito do jovem retratado – Dorian Gray - levando-o a ambicionar para si a permanência de tal beleza e tal juventude manifestas no retrato, do qual tem ciúmes, em troca da sua alma.
Outros aforismos, de conteúdo cínico, constituem, igualmente, expressões de uma concisão e elegância de pensamento de que não resistimos a evidenciar alguns: “Os filhos começam por amar os pais; ao crescerem, tendem a julgá-los; por vezes, perdoam-lhes.” (c. V). Segundo Lord Henry, (C. VI), “a verdadeira razão por que todos nós pensamos tão bem dos outros é que todos temos medo de nós próprios. A base do optimismo é o puro terror. Julgamos que somos generosos porque atribuímos ao nosso vizinho a posse daquelas virtudes que pensamos poderem vir a beneficiar-nos. Louvamos o banqueiro para podermos exceder o nosso crédito, e encontramos bons princípios no assaltante na esperança de que nos poupe as carteiras.” Todo o capítulo VI , em que os três amigos – Basil, Henry e Dorian – discutem os inocentes amores deste último, é, aliás, um repositório de tiradas cínicas de lord Henry, contra as quais se opõe, em vão, o sensato Basil.
Quanto à sequência da história queirosiana, ela mostra-nos um Teodoro não mais enguiço da Madame Marques, nem bacharel suspiroso pelas regalias da vida, mas rico e poderoso, perante quem a sociedade se prostra subservientemente, começando, todavia, a ter pavorosas lutas de conciência, por se gozar de um bem que usurpara, e a ser perseguido pela figura bojuda do mandarim fulminado, espojado na sua cama, vestido de seda amarela e com um papagaio de papel nos braços. Na de Dorian Gray, a descoberta, por este, de que os seus erros e perversões vão transformando o retrato da autoria de Basil, enquanto o seu modelo permanece belo e jovem, como desejara. N’ “O Retrato”, também Tchartkov viverá na magnificência e no apreço de todos os concidadãos que dantes o desconheciam, continuando a pintar para a alta sociedade, numa pintura cada vez mais desligada do estudo e do realismo em que dantes tanto se empenhara, indiferente a modas e procurando somente a originalidade.
A revelação da verdadeira pintura, através de um quadro de um ex-companheiro de arte, “despertou toda a sua essência viva” que, de repente, o faz desejar voltar aos tempos em que buscava idêntica perfeição: “Via-se que, tudo o que o pintor fora beber ao mundo exterior interiorizara inicialmente na sua alma, o transformara num canto harmonioso e solene. Tornava-se evidente até aos olhos dos profanos o insuperável abismo que existia entre a criação e a simples cópia da natureza.” Todavia, as suas tentativas de atingir a qualidade que invejava no quadro do ex-amigo são goradas, por há muito se ter afastado, na pressa da fama e da fortuna, do trabalho aturado que tal arte subentendia. Ao olhar para o “retrato” causador do seu infortúnio actual, pela transformação que sofreu, quer desfazer-se dele. A fúria e a inveja pelo verdadeiro talento, leva-o a comprar todas as obras de arte autênticas, para as destruir raivosamente. E é nos paroxismos da loucura, cada vez mais frequentes, que morre na miséria.
Cada uma das obras propõe-se, pois, fazer crítica social relativamente aos respectivos países ou cidades: Gogol, num rigor de traço realista, revelando toda uma cidade capital – S. Petersburgo - de contrastes, entre as classes ricas e snobes e as mais miseráveis de condição difícil, em todo o caso não destituídas de interesses culturais (ao contrário do atraso cultural português, como tema frequentemente abordado por Eça, na sua aplicação, por exemplo, à “mesmice” apática de um quotidiano pátrio indelevelmente estagnado e repetitivo - n’ “Os Maias), pois a história inicia-se com uma lojinha de quadros e gravuras, estampas, visitada por observadores numerosos e curiosos, os mujiques “apontando o dedo”, os cavalheiros observando “com rostos graves”, “os moços de recados e jovens aprendizes” apontando “caricaturas, rindo e troçando uns dos outros; os velhos criados de capotes de frisa” olhando “apenas para terem com que pasmar; e as vendedeiras, jovens camponesas russas”, apressando-se, “por instinto a ver para que olha a multidão e escutar sobre o que se fala”.
É nessa lojinha que o pintor Tchartkov adquire o retrato de olhos maléficos que irá transformar a sua vida. Na segunda parte, de espaço cronológico anterior ao da primeira, (como justificação da existência e identificação do retrato), iniciada por um leilão de quadros, entre os quais se encontra o retrato que fez a fortuna e a desgraça do protagonista da primeira, Tchartkov, o narrador apresenta, contudo, um descritivo mais incisivo e pontuado sobre a sociedade russa e alguns dos seus costumes, do que na primeira parte, mais debruçada sobre a evolução psicológica do protagonista, derradeira vítima do retrato maldito. Eis alguns parágrafos, demonstrativos do tom mordaz do seu discurso de observação pormenorizada e viva:
Estacionavam numerosas carruagens, coches e caleches em frente a um edifício no qual se realizava o leilão de um desses ricos amantes das artes que passam a sua vida imersos em sonhos de Zéfiros e Amores, que com ares de inocência se faziam passar por mecenas e dissipavam nisto milhões acumulados pelos seus sensatos antepassados e muitas vezes até o seu próprio trabalho.”... “ O longo salão estava repleto da mais variada multidão de visitantes, como aves de rapina a atacar um cadáver abandonado. Encontrava-se ali toda a horda de comerciantes russos de Gostini Dvor e até da feira da ladra, de sobrecasas azuis à alemã. Aqui o seu ar e a expressão dos seus rostos eram firmes, mais independentes, sem aquela obsequiosidade adocicada, tão característica do vendedor russo, quando se encontra perante um comprador. Aqui não se faziam quaisquer cerimónias, apesar de nesta mesma sala se encontrarem muitos aristocratas, a quem noutro lugar estariam prontos a varrer com vénias o pó das botas. Aqui tornavam-se atrevidos, palpavam sem cerimónias livros e quadros para avaliar a qualidade do artigo, e cobriam audazmente os lanços dos condes conhecedores. Encontravam-se ali muitos dos obrigatórios visitantes de leilões, que todos os dias os frequentavam em vez do pequeno almoço; aristocratas entendidos, que achavam sua obrigação não perder a ocasião de aumentar as suas colecções, além de não terem outra ocupação das 12 à 1; e por fim aqueles fidalgos de traje e bolsa miserável que compareciam diariamente sem qualquer objectivo interesseiro, apenas para observar quem levava o quê, quem dava mais e quem dava menos, quem cobria o lanço de quem e quem arrematava o quê.” ....
Um espectador do leilão justificará a sua pretensão ao retrato licitado e prestes a ser vendido, iniciando uma longa história, que a seu pai atribui a pintura daquele quadro, representativo de um usurário malévolo e com o estranho condão de desgraçar todos aqueles a quem emprestava dinheiro, tendo-o seu pai retratado como o espírito das trevas, e exigindo do filho que o recuperasse um dia, assim que o reconhecesse – o que não virá a acontecer no leilão, por entretanto o retrato ter desaparecido, enquanto todos estavam pendentes do seu discurso. Eis o seu longo intróito descritivo, detalhado e sombrio sobre a sociedade de Kolomna:
“- Conhecem com certeza a parte da cidade que se chama Kolomna. ... Tudo ali é diferente das outras zonas de S. Petersburgo, como se não fosse bem nem capital nem província; parece que, ao atravessar as ruas de Kolomna, nos abandonam todos os desejos e impulsos da juventude. O futuro não passa ali, tudo é silêncio e resignação, tudo o que se afastou do movimento da capital. É para lá que se mudam os funcionários reformados, as viúvas, gente modesta, que se envolveram com o Senado e por isso se exilam ali quase para toda a vida; antigas cozinheiras, que passam todo o dia nos mercados, tagarelam disparates com o mujique da venda e compram todos os dias café a cinco copeques e açúcar a quatro, e, finalmente, todo aquele tipo de gente a que, numa palavra, se pode chamar cinzenta – gente que pela roupa, pela cara, pelo cabelo e pelos olhos tem uma aparência turva, cinza, como os dias em que no céu não há nem tempestade, nem sol, e nem acontece nem uma coisa nem outra: planta-se uma neblina que priva os objectos de qualquer nitidez. Pode incluir-se aqui os camaroteiros de teatro reformados, os conselheiros titulares reformados, os pupilos de Marte reformados, com um olho vazado e um lábio inchado. Estas pessoas são completamente apáticas: andam sem olhar para nada, calam-se sem pensar em nada. Nos seus quartos não há muitas posses; por vezes simplesmente uma garrafa de pura vodka russa, que sugam monotonamente todo o dia sem sentir aquele afluxo forte à cabeça, a recepção potente com que gosta habitualmente de se mudar aos domingos o jovem trabalhador alemão, esse trabalhador da rua Mechánskaia, único ocupante de todo o passeio quando já passa da meia-noite.
“A vida em Kolomna é terrivelmente solitária: raramente se vêem carruagens, excepto aquelas em que se deslocam os actores, que com o seu ribombar, barulho e estrondo perturbam o silêncio geral. Ali todos andam a pé, e o cocheiro arrasta-se frequentemente sem passageiros, transportando apenas forragem para a sua barbuda pileca. É possível encontrar um apartamento por cinco rublos ao mês, com o café da manhã incluído. As viúvas que recebem pensões constituem a aristocracia local; comportam-se, varrem frequentemente o quarto, conversam com as amigas sobre o elevado custo da carne de vaca e das couves. É frequente terem uma filha jovem, criatura taciturna, silenciosa, às vezes bem parecida, um rafeiro nojento e um relógio de parede com o pêndulo a bater tristemente. Seguem-se depois os actores, a quem os honorários não permitem abandonar Kolomna, gente livre, como todos os artistas que vivem para o prazer. Estes sentam-se nos seus roupões, consertando a sua pistola, fabricam em cartão coisinhas úteis para a casa, jogam damas e cartas com o amigo que as visita, e assim passam a manhã, fazendo quase o mesmo à tarde, acrescentando de vez em quando ponche. Depois destes figurões e aristocratas de Kolomna vem a invulgar arraia-miúda. É tão difícil enumerá-los como contar os insectos que nascem em vinagre velho. Há velhinhas que rezam; velhinhas que bebem; velhinhas que rezam e bebem; velhinhas que sobrevivem por meios inconcebíveis, como as formigas: arrastam consigo velhos trapos e roupa branca desde a ponte Kalínkin até à feira da ladra, para lá os venderem a quinze copeques; em suma, são frequentemente o mais miserável refugo da humanidade, a quem nem um economista político cheio de boas intenções encontraria meios de melhorar a situação.
“Mencionei-os para vos mostrar com que frequência esta gente se encontra na necessidade de procurar uma ajuda urgente, temporária, de recorrer a empréstimos; e instala-se então no seu seio um tipo particular de usurários, que fornecem pequenas quantias sob penhor e a altos juros. Estes pequenos usurários são muito mais implacáveis do que os grandes, porque surgem claramente no meio da pobreza e dos miseráveis esfarrapados, coisa que o usurário rico, que negoceia apenas com clientes que chegam de carruagem, não vê nunca. E é por isso que lhes perecem demasiado cedo nas almas quaisquer sentimentos de humanidade. (Entre estes usurários havia um...” –
o do retrato causador de desgraça).
Também Óscar Wilde terá a oportunidade de descrever a sociedade inglesa, quer através do narrador satírico, quer do comentário epigramático ou displicente de Lord Henry, geralmente imbuído de elegantes conceitos destrutivos da moral tradicional, porque marcando, à maneira clássica, o sentido da fugacidade da vida e apelando para os valores hedonistas do “carpe diem” horaciano, sem preconceitos moralistas, quer do próprio Dorian Gray.
O primeiro almoço (capítulo III) em casa da tia de lord Henry, Agatha, que reunirá Lord Henry e Dorian Gray, iniciando aquele o seu processo de fascínio corruptor sobre o seu pupilo, evidencia o sentido da ironia de Óscar Wilde nos traços dos figurantes snobes, que fazem evocar também o mundo hilariante da sociedade queirosiana, com a intemporalidade de uma perpétua actualidade:
Tinha, à direita, Sir Thomas Burdon, um membro radical do Parlamento, que seguia o seu líder na vida pública e os melhores cozinheiros na vida privada, jantando com os tories e pensando com os liberais, conforme um sábio e bem conhecido ditame. A cadeira à esquerda da duquesa era ocupada por Mr. Erskine de Treadley, um velho cavalheiro com algum encanto e cultura que todavia cedera ao mau hábito do silêncio, visto que, como explicara a Lady Agatha, já dissera o que tinha a dizer antes dos trinta. Ao lado de Lord Henry sentava-se Mrs. Vandeleur, uma das mais antigas amigas da sua tia, uma santa entre as mulheres, mas tão descuidada na sua aparência que parecia um livro de salmos mal encadernado. Felizmente para ele, o outro parceiro de Mrs. Vandeleur era Lord Faudele, homem de meia idade de uma inteligentíssima mediocridade, tão calvo quanto um discurso ministerial na Câmara dos Comuns...”
O próprio Dorian Gray (capítulo IV), na sua ingénua confissão a Lord Henry sobre a paixão recente – e “eterna” – por uma actriz (Sybil), faz uns comentários picarescos sobre a sociedade londrina e sobre a figura de um judeu servil, que lembra igualmente o judeu vendedor de antiguidades n’ “Os Maias”: “... Tu imbuíste-me do estranho desejo de saber tudo da vida. Durante dias depois de te conhecer, algo parecia vibrar-me nas veias. Quando deambulava pelo Parque ou passeava pela Avenida Piccadilly, costumava olhar para toda a gente que por mim passava, e interrogar-me, com uma curiosidade mórbida, sobre o tipo de vida que teriam. Alguns deles fascinavam-me. Outros amedrontavam-me. Pairava no ar um subtil veneno. Eu desenvolvera a paixão pelas sensações... Bem, uma certa noite, depois das sete horas, decidi sair em busca de uma aventura. Senti que esta nossa cinzenta e monstruosa Londres, com as suas miríades de gente, os seus sórdidos pecadores e os seus tremendos pecados, segundo as tuas próprias palavras, me reservava certamente qualquer coisa de especial. .... Não sei do que estava à espera e vagueei para leste, e não tardei a perder-me num labirinto de ruas sujas e pracetas escuras e sem relva. Cerca das oito e meia, passei por um teatrinho ridículo, iluminado a bicos de gás e forrado de cartazes berrantes. À entrada, estava um judeu hediondo, com o colete mais espantoso que alguma vez vi, fumando um charuto reles. Tinha um cabelo oleoso aos caracóis e no peitilho da sua camisa suja reluzia um enorme diamante. “Quer um camarote, meu Lorde?”, disse ele, quando deu por mim, e tirou o chapéu com ar de ostensivo servilismo. Havia qualquer coisa nele que me divertia, Harry, de tal modo era monstruoso....”
Na véspera do 38º aniversário de Dorian Gray (capítulo XVIII), no encontro fatal deste com Basil Hallward, que o critica pela vida pecaminosa que leva – “Acho bem que saibas que em Londres se contam sobre ti as coisas mais hediondas” – eis um comentário de Dorian sobre a sociedade inglesa, que Óscar Wilde parece impregnar do veneno do seu pessimismo virulento, em autodefesa e retaliação contra a condenação social que o atingiu tão rudemente: “Eu sei o que as pessoas gostam de mexericos em Inglaterra. A classe média alardeia os seus preconceitos morais nos seus jantares ordinários, e segredam uns com os outros sobre o que apodam de libertinagem naqueles que lhes são superiores, para fingirem que pertencem à alta sociedade e fazerem-se íntimos das pessoas que caluniam. Neste país basta um homem ter classe e inteligência para que todas as línguas vulgares o difamem. E que tipo de vida levam essas pessoas que fazem julgamentos morais? Meu caro amigo, esqueces-te que vivemos na pátria dos hipócritas.” “ – Dorian – gritou Hallward, não é isso que está em causa. Bem sei que a Inglaterra é bastante má e que a sociedade inglesa está completamente pervertida. É por isso que eu quero que tu sejas bom...”
É igualmente negativa a opinião de James Vane, irmão de Sybil, sobre Londres “Não me parece que volte a ver esta horrível Londres”, ao desejar, ameaçadoramente, afastá-la, do “Príncipe Encantado”, como ela apelidava o seu apaixonado Dorian Gray (capítulo V).
Quanto ao descritivo dos costumes, por nos recordar idêntico espaço de colorido e som, duas vezes percorrido, do musical de George Cukor “My Fair Lady”, transcrevemos o quadro matinal do movimento pictórico do mercado, perto do Convent Garden, atravessado por Dorian Gray, destroçado, após a ruptura com Sybil, (por esta, toda entregue à paixão pelo seu Príncipe Encantado, que a beijara, ter representado mal o seu papel de Julieta (capítulo VII)): “Ao raiar do dia, encontrou-se perto de Convent Garden. As trevas dissiparam-se e, ruborizado por débeis fogos, o céu encovou-se numa pérola perfeita. Grandes carroças cheias de lírios vacilantes rodavam lentamente pela rua vazia e limpa.O ar impregnava-se do perfume das flores e a sua beleza trazia-lhe um antídoto para a dor que sentia. Seguiu para o mercado e contemplou os homens descarregando os carros. Um carreteiro de bata branca ofereceu-lhe umas cerejas. Agradeceu-lhe e espantou-se de o homem se recusar a aceitar dinheiro por elas (ao contrário das tentativas de Elisa Doolittle de impingir as suas flores) começando a comê-las distraidamente. Tinham sido colhidas à meia noite e a frieza do luar penetrara-as. Uma imensa fila de rapazes carregando grades de tulipas desfolhadas e de rosas amarelas e vermelhas desfilou diante dele, abrindo caminho por entre as altas colunas de vegetais de verde jade. Sob o pórtico, com os seus pilares cinzentos caiados pelo sol, arrastava-se um bando de mulheres desleixadas e de cabeças descobertas, aguardando que terminasse a lota. Outras apinhavam-se de roda das portas giratórias do café da Plazza. Os enormes cavalos das carroças tropeçavam nas pedras toscas, e pisavam-nas, agitando os seus sinos e arreios. Alguns dos carroceiros dormiam sobre uma pilha de sacas. De papos irisados e patas róseas, os pombos voltejavam debicando grãos.”
A crítica social n’ “O Mandarim” está, naturalmente impregnada da graça malandra da sátira costumeira de Eça de Queirós, iniciada com a autocaricatura do narrador-personagem Teodoro, ofuscado com a fortuna que milagrosamente o bafeja. Todo um discurso de exagero, dinamismo e sonoridade, onde a palavra sintética “ouro” soa como um tiro e as imagens decorrem no visualismo hiperbólico denunciador de avidez e bestialidade, insensível a conselhos de moderação, mas também de uma riqueza demasiado recente para poder destacar já a necessária distância e altivez perante o chefe, embora insensível com a pobreza pedinte (capítulo II): “Aí, arremessei para cima do balcão um papel sobre o Banco de Inglaterra de mil libras, e soltei esta deliciosa palavra! “ - Ouro!” Um caixeiro sugeriu-me com doçura: “ – Talvez lhe fosse mais cómodo em notas...” Repeti secamente: “- Ouro!” “Atulhei as algibeiras, devagar, aos punhados: e na rua, ajoujado, icei-me para uma caleche. Sentia-me gordo, sentia-me obeso; tinha na boca um sabor de ouro, uma secura de pó de ouro na pele das mãos; as paredes das casas pareciam-me faiscar como longas lâminas de ouro: e dentro do cérebro ia-me um rumor surdo onde retilintavam metais – como o movimento de um oceano que nas vagas rolasse barras de ouro.” “Abandonando-me à oscilação das molas, rebolante como um odre mal firme, deixava cair sobre a rua, sobre a gente, o olhar turvo e tedioso do ser repleto. Enfim, atirando o chapéu para a nuca, estirando a perna, empinando o ventre, arrotei formidavelmente de flatulência ricaça...” “Muito tempo rolei assim pela cidade, bestializado num gozo de nababo.” “Subitamente um brusco apetite de gastar, de dissipar ouro, veio-me enfunar o peito como uma rajada que incha uma vela.” “ A parelha estacou. Procurei em redor com a pálpebra meio cerrada alguma coisa para comprar – jóia de rainha ou consciência de estadista; nada vi; precipitei-me então para um estanco:” “ – Charutos! De tostão! De cruzado! Mais caros! De dez tostões!” “- Quantos?... perguntou-me servilmente o homem.” “- Todos! - respondi com brutalidade. “À porta, uma pobre toda de luto, com o filho encolhido ao seio, estendeu-me a mão transparente. Incomodava-me procurar os trocos de cobre por entre os meus punhados de ouro. Repeli-a, impaciente: e, de chapéu sobre o olho, encarei friamente a turba.” “ Foi então que avistei, adiantando-se, o vulto ponderoso do meu director-geral: imediatamente achei-me com o dorso curvado em arco e o chapéu cumprimentador roçando as lajes. Era o hábito da dependência: os meus milhões não me tinham dado ainda a verticalidade à espinha...”
Espaços de ostentação e requinte (evidenciando o conhecimento de Eça nos variados domínios da arte e da cultura), surgem seguidamente (capítulo III), de mistura com os novos hábitos de ricaço, já reverenciado pela turba que dantes o desprezava, na sua insignificância de amanuense. O seu nome corre fronteiras pelo mundo inteiro. Mas as personagens caricaturadas, são agora tomadas na abstracção das classes sociais, tirando Madame Marques que, desde que o sabia rico, o tratava a arroz doce, enquanto não saiu de sua casa, para o palacete amarelo, ao Loreto. Uma desastrosa paixão por uma Cândida pequenina e loura, que lhe chamava “o seu anjo Totó”, recebendo-lhe as notas com timidez e escrevendo a um “alferes da vizinhança”, “de dedinho no ar”, servirá à sua experiência sobre a traição feminina: “Desarraiguei logo esse sentimento do meu peito, como uma planta venenosa. Descri para sempre dos anjos louros, que conservavam no olhar azul o reflexo dos céus atravessados; de cima do meu ouro deixei cair sobre a Inocência, o Pudor e outras idealizações funestas, a ácida gargalhada de Mefistófeles: e organizei friamente uma existência animal, grandiosa e cínica.”
Ao bater do meio dia entrava na minha tina de mármore cor-de-rosa, onde os perfumes derramados davam à água um tom opaco de leite; depois pajens tenros, de mão macia, friccionavam-me com o cerimonial de quem celebra um culto: e embrulhado num robe de chambre de seda da Índia, através da galeria, dando aqui e além um olhar aos meus Fortunys e aos meus Corots, entre alas silenciosas de lacaios, dirigia-me ao bife à inglesa, servido em Sèvres azul e ouro.” “O resto da manhã, se havia calor, passava-o sobre coxins de cetim cor de pérola, num boudoir em que a mobília era de porcelana fina de Dresda e as flores faziam um jardim de Armida; aí saboreava o Diário de Notícias, enquanto lindas raparigas, vestidas à japonesa refrescavam o ar, agitando leques de plumas.” “De tarde ia dar uma volta a pé, até ao Pote das Almas: era a hora mais pesada do dia: encostado à bengala, arrastando as pernas moles, abria bocejos de fera saciada – e a turba abjecta parava a contemplar, em êxtases, o nababo enfastiado!” ... “Ao começo da noite um criado, para anunciar o jantar, fazia soar pelos corredores na sua tuba de prata, à moda gótica, uma harmonia solene. Eu erguia-me e ia comer, majestoso e solitário. Uma populaça de lacaios, de librés de seda negra, servia, num silêncio de sombras que resvalam, as vitualhas raras, vinhos do preço de jóias: toda a mesa era um esplendor de flores, luzes, cristais, cintilações de ouro: - e enrolando-se pelas pirâmides de frutos, misturando-se ao vapor dos pratos, errava, como uma névoa subtil, um tédio inenarrável...” “Depois, apopléctico, atirava-me para o fundo do cupé – e lá ia às Janelas Verdes onde nutria, num jardim de serralho, entre requintes muçulmanos, um viveiro de fêmeas: revestiam-me duma túnica de seda fresca e perfumada – e eu abandonava-me a delírios abomináveis... Traziam-me semimorto para casa, ao primeiro alvor da manhã: fazia maquinalmente o meu sinal da cruz, e daí a pouco roncava de ventre ao ar, lívido e com um suor frio, como um Tibério exausto.”
“Entretanto Lisboa rojava-se a meus pés. O pátio do palacete estava constantemente invadido por uma turba: olhando-a enfastiado das janelas da galeria, eu via lá branquejar os peitilhos da Aristocracia, negrejar a sotaina do Clero, e luzir o suor da plebe: todos vinham suplicar, de lábio abjecto, a honra do meu sorriso e uma participação no meu ouro. Às vezes consentia em receber algum velho de título histórico: - ele adiantava-se pela sala, quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações; e imediatamente, espalmando sobre o peito a mão de fortes veias onde corria um sangue de três séculos, oferecia-me uma filha bem-amada para esposa ou para concubina.” “Todos os cidadãos me traziam presentes como a um ídolo sobre o altar – uns odes votivas, outros o meu monograma bordado a cabelo, alguns chinelos ou boquilhas, cada um a sua consciência. Se o meu olhar amortecido fixava, por acaso, na rua, uma mulher – era logo ao outro dia uma carta em que a criatura, esposa ou prostituta, me ofertava a sua nudez, o seu amor, e todas as complacências da lascívia.” “Os jornalistas esporeavam a imaginação para achar adjectivos dignos da minha grandeza; fui o sublime Sr. Teodoro, cheguei a ser o celeste Sr. Teodoro; então, desvairada, a Gazeta dos Locais chamou-me o extraceleste Sr. Teodoro! Diante de mim nenhuma cabeça ficou jamais coberta – ou usasse a coroa ou o coco. Todos os dias me era oferecida uma presidência de ministério ou uma direcção de confraria. Recusei sempre, com nojo.” “ Pouco a pouco o rumor das minhas riquezas foi passando os confins da monarquia. O Fígaro, cortesão, em cada número falou de mim, preferindo-me a Henrique V; o grotesco imortal, que assina Saint-Genest, dirigiu-me apóstrofes convulsivas, pedindo-me para salvar a França; e foi então que as as Ilustrações estrangeiras publicaram, a cores, as cenas do meu viver. Recebi de todas as princesas da Europa envelopes, com selos heráldicos, expondo-me, por fotografias, por documentos, a forma dos seus corpos e a antiguidade das suas genealogias. Duas pilhérias que soltei durante esse ano foram telegrafadas ao Universo pelos fios da Agência Havas; e fui considerado mais espirituoso que Voltaire, Rochefort, e que esse fino entendimento que se chama Todo-o-Mundo. Quando o meu intestino se aliviava com estampido – a humanidade sabia-o pelas gazetas. Fiz empréstimos aos reis, subsidiei guerras civis – e fui caloteado por todas as repúblicas latinas que orlam o golfo do México.” “E eu, no entanto, vivia triste...”
A dimensão verdadeiramente orgiástica das referências às adulações e subserviências oportunistas, embora de expressão caricaturalmente hiperbólica, não deixa de apresentar, para lá da pilhéria e do conhecimento humano que traduz, uma absoluta veracidade e actualidade permanente, como verificamos a cada passo, nesta era de poderosíssimos meios de expressão audiovisual, em que multidões se rojam aos pés dos ídolos milionários, ou outros.
O apodo de orgiástico, à maneira, igualmente, do Fausto de Goethe, que com Mefistófeles parte em busca do absoluto saber, através das mais incríveis experiências de todos os domínios do saber, parece apropriado também a todo o capítulo XI de “O Retrato de Dorian Gray”, como síntese da evolução espiritual e vivencial do protagonista, dependente das teorias de um livro oferecido por Lord Henry, que considerava a esterilidade dos sistemas especulativos e se apoiava na experiência, como factor dominante de aprendizagem. Cultivando a beleza e a juventude sem mancha que permanecia no seu corpo, em contraste com as horríveis transfigurações do seu retrato escondido, “a violência do contraste tornava-lhe mais agudo o seu sentimento de prazer. Cada vez se enamorava mais da sua própria beleza, cada vez se interessava mais pela corrupção da sua própria alma...” ...“Quanto mais sabia mais desejava saber. Tinha apetites loucos que se tornavam mais vorazes se os saciava”. Era igualmente admirado e adulado pela sociedade que frequentava e que recebia em casa, em jantares íntimos organizados por Lord Henry, “tão famosos pela criteriosa selecção e disposição estratégica dos convidados, como pelo gosto requintado da decoração da mesa, com os seus arranjos sinfónicos de flores exóticas, e toalhas bordadas, e baixela antiga de ouro e prata...”
Assim, no sentido de obter os seus conhecimentos pela experiência, Dorian Gray, por muito que sentisse interesse momentâneo pelas teorias místicas ou filosóficas, “todas as teorias da vida lhe pareciam insignificantes comparadas com a própria vida. Estudou os perfumes, na sua relação com a vida sensual, mais tarde dedicou-se à música, dando curiosos concertos em que misturava instrumentos e músicos diversos pertencentes aos mais diversos povos, modernos e antigos. “As fantásticas características destes instrumentos fascinavam-no e comprazia-se na ideia de que a Arte, tal como a Natureza, tem também os seus monstros, coisas de forma bestial e vozes hediondas. Contudo, passado algum tempo, cansou-se deles, e passou a sentar-se no seu camarim na Ópera, sozinho ou com Lorde Henry, ouvindo com arrebatado prazer o Tannauser, e vendo no prelúdio da grande obra de arte a exposição da tragédia da sua própria alma.
Veio depois a paixão pelas jóias, com riquíssimas colecções e o seu estudo, com os exemplos da história : “Que requintada fora a vida de outrora! Que magnífico o seu esplendor e ornamentação! Era maravilhosa a simples leitura dos luxos a que se entregavam os mortos.”
Então voltou-se para os bordados e as tapeçarias que substituíam os frescos nas salas frias dos países nórdicos europeus. Ao investigar o assunto – e tinha sempre uma extraordinária capacidade para se embrenhar completamente nos temas que o ocupavam em determinado momento – lamentou profundamente o reflexo da ruína que o Tempo provoca nas coisas belas e maravilhosas. Ele, pelo menos, conseguira escapar a essa degradação...” E através da história interrogou-se sobre o paradeiro dos inúmeros exemplos de bordados e tapeçarias oferecidos pelos reis e outros nobres, procurando, “durante um ano inteiro, acumular os mais requintados exemplares de lavores têxteis e bordados que pudesse encontrar...”, seguindo-se a citação profusa dessas maravilhas. O mesmo se dirá do relato de paramentos eclesiásticos que guardava nos “grandes baús de cedro que forravam a galeria oeste das sua casa...”
Todos esses tesouros representavam para ele formas de esquecimento do permanente terror em que vivia mergulhado, sobretudo quando contemplava a “hedionda imagem” do retrato, que cobrira com uma “colcha púrpura e dourada” num “quarto solitário e trancado a sete chaves”. Começa uma vida dupla, cada vez mais desregrada, de uma vida social requintada mas, a ocultas desta, a vida degradada e criminosa em que chafurdava, nos bairros mais recônditos, equiparando-se aos exemplos dos grandes vultos da História, de cujas biografias se rodeava à saciedade, como justificação dos seus próprios actos.
Todo este capítulo XI, revelador da extraordinária qualidade cultural de Óscar Wilde, constitui, pois, a síntese de uma filosofia hedonista, que põe a tónica no gozo dos prazeres, na experiência vivida, na libertação dos conceitos teóricos que não sejam fundamentados através da vivência, sem os preconceitos dualistas do Bem ou do Mal, segundo os ensinamentos do seu mentor Lord Henry.
O desenlace (Cap. XX), revela um protagonista cada vez mais transtornado com a vida dupla que leva, desejando regressar à pureza primitiva, reconhecendo nos traços hediondos do outrora belo retrato feito por Basil (que ele assassinara), a hediondez da sua alma que o seu corpo preservara e a impossibilidade de retomar tal pureza. Com a faca com que apunhalara Basil, rasgou o retrato daquele, soltando gritos pavorosos. Mas foi o seu corpo hediondo – tal como o de Tchartkov – que foi descoberto, e o quadro de Basil mantendo todo o esplendor da sua beleza.
As três obras, de escritores posicionados em igual século XIX e igual escola literária – o realismo – embora em espaços limítrofes da Europa bastante divergentes, revelam, pois, dentro da especificidade dos estilos e intenções – mais sério, moralista, e até didáctico o de Gogol, mais risonho - sátira prazenteira - o de Eça, de um conceito anti-burguês mais contundente e destrutivo, o de Óscar Wilde - revelam, digo, na aliança entre o descritivo do fantástico e da realidade contemporânea e universal, uma extrema capacidade de análise e de humor, mas sobretudo um grande conhecimento da psicologia humana e da tragédia a que o excesso de ambição conduz invariavelmente o ser humano, Ícaro de asas de cera, despenhado.
Daí que recorramos, em síntese globalizante, ao soneto de António Botto (1897/1959), que funcionará ainda como homenagem aos três grandes escritores e suas obras ficcionais do estudo feito:
Homem que vens de humanas desventuras
Que te prendes à vida, te enamoras,
Que tudo sabes mas que tudo ignoras
Vencido herói de todas as loucuras.
“Que te ajoelhas pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras
E na ambição das causas mais impuras
És grande simplesmente quando choras.
“Que prometes cumprir para esquecer
E trocando a virtude no pecado
Ficas brutal se ele não der prazer.
“Arquitecto do sonho e da ilusão
Ridículo palhaço articulado,
Eu sou teu companheiro, teu irmão.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O saber de experiências feito

Coisas que eu teria preferido nunca ter aprendido na escola” é o título da “Carta Aberta” do Comendador Marques de Correia, de 20/9 da Revista Única que li, como sempre, em primeiro lugar, para sentir o prazer da graça sadia forjadora da gargalhada sem atritos, pois nos livra, embora só momentaneamente, da tristeza que outras crónicas ou outras notícias mais sérias nos transportam diariamente ou semanalmente. A graça do destemor com que aponta o erro, tantas vezes através da mistificação e do absurdo dos seus discursos sempre elegantes, contudo, sem a contundência usual em tantas outras crónicas, talvez mais ricas de conteúdo mas mais pesadas de intenção.
Todavia, não entendi o texto desta última carta aberta, que me pareceu contraditória. Ao valorizar alguns saberes da escola antiga, como as equivalências do metro cúbico, ao destacar a ignorância aritmética dos actuais alunos incapazes de somar, sem computador, dois mais dois, parece defender as exigências da escola antiga. Ao pôr a ridículo a memorização das linhas férreas portuguesas ou dos rios moçambicanos e quejandos, como coisas inócuas, inúteis à formação do aluno, parece atacá-la.
A verdade é que, se não tivesse aprendido as terras atravessadas pelo ramal de Viseu ou pela linha do Norte (a que faltou Paialvo e Pombal, da minha memória), não teria feito humor com elas. Nem António Gedeão usaria as suas ensaboadelas de química e física nos seus poemas originais. Nem Rui Knopfli em “Hidrografia” de “Reino Submarino” faria a extraordinária apologia dos tais rios de Moçambique, nem Goethe faria viajar o Dr. Fausto na busca do saber absoluto, nem Óscar Wilde, na esteira daquele, faria o seu Dorian Gray rodear-se da ciência das jóias e dos perfumes, e dos quadros e das músicas universais, para arrebatamento permanenente dos seus sentidos... Nem eu teria sentido o prazer que senti quando, de retorno de África, subi pela primeira vez a Rua do Alecrim, evocada por Cesário Verde...

terça-feira, 16 de setembro de 2008

That is the question


Luís Filipe Meneses tinha desistido da liderança do PSD quando possibilitou as novas eleições, ganhas, com pouca margem, todavia, por Manuela Ferreira Leite que prometera, primeiro que tudo, iniciar uma nova era de coesão e dignificação do seu partido, há muito desfeito nas lideranças vaidosas e provincianas dos chefes anteriores.
Mas Manuela Ferreira Leite, ao contrário dos seus antecessores, bem-falantes e altissonantes, mas sempre atacantes convictos, está a dar nas vistas com o seu silêncio. Não abre o jogo, o que leva os pessimistas a formular hipóteses de inexistência de um jogo para abrir. Entre eles destaca-se Luís Filipe Meneses que afinal parece não ter desistido da cena política, comparando-se e ao seu “entourage”, a um elegante Porsche, contra o Fiat 5oo do “entourage” da chefe actual. Criticado, na deselegância e insensatez do comentário tolo, entre outros, por Marcelo Rebelo de Sousa, deseja vir de novo à televisão defender a sua musa, e de caminho, possivelmente, segundo o costume, lavar alguma roupa suja, no seu ar untuoso e fradesco, salientando conhecimentos, em voz baixa e avisada, de quem, sem bem se enxergar, se considera imprescindível.
Mas, o que parece evidente, é que ele não quer mesmo perder a liderança do partido, e para isso apressa-se a pôr em cheque a figura digna da sua actual dirigente, arranjando pretextos para a derrotar, desejoso de se afirmar e sempre sem elevar a voz.
No partido sem coesão, muitos são os que esfrangalham na sombra, indiferentes ao povo que pretendem defender futuramente, porque só interessados numa qualquer saliência interesseira. Apesar da sua estatura de dignidade e do apoio dos muitos amigos inteligentes e leais, Manuela Ferreira Leite não terá grande capacidade para se impor à turba dos maledicentes desse seu partido. Não é culpa sua. A culpa é toda nossa, de povo que nunca soube de educação nem civismo, e que sempre ignorou a divisa que distinguiu outros: “Um por todos e todos por um”.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

O anti-racismo da nossa modernidade

Fala-se muito em assaltos. Toda a espécie de assaltos: aos velhos isolados, aos bancos protegidos, às bombas dos combustíveis, aos lugares onde se julga existir dinheiro. Fala-se em aumento da “onda de criminalidade” mas o governo diz que não, com o auxílio da estatística. Ouve-se dizer que muitos dos assaltantes que agora andam a monte, já estiveram presos por crimes diversos, antes de serem libertos. A libertação dos presos deve-se a factores vários, entre os quais os seus casos não estarem contidos na Constituição. Ou talvez as nossas cadeias não oferecerem condições de habitabilidade. Mas eu julgo que é sobretudo porque gostamos de mostrar que somos generosos e não somos racistas. Porque temos um governo humanista. Humanista significa que ama os homens (as mulheres inclusas). Dantes significava que conhecia os clássicos, as suas obras literárias, as suas “litterae humaniores” que dilataram o conhecimento do homem (a mulher inclusa). Os nossos governantes alimentam-se de outras razões, mais amplas ainda, e generosas, as que reconhecem a igualdade em direitos de todos os homens. É bonito isso. Só que igualdade nunca há. O que impera é o direito da força, das armas ou outras. Porque o velhote que é morto pelo assaltante não teve o direito de resposta.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A matemática de Laurinda Alves

Deve ser por defender o estudo matemático apoiado em concretização do abstracto por meio de variedade de exemplos da realidade simples, mais do que em memorização de regras e repetitividade de exercícios (que, indiscutivelmente conduzem ao desenvolvimento da inteligência – oh! os Palma Fernandes de antanho, como seriam úteis "ogano"!), que se justifica o estranho título de Laurinda Alves “Atitude Xis”. Tivera feito mais exercícios do Palma Fernandes, veria, L. A., que o Xis remete para variedade de incógnitas, o que não acontece com o título do seu livro.
Com efeito, a leitura deste livro aponta para uma única solução, neste seu olhar positivo sobre a vida: a solução da paz íntima, do bem-estar espiritual, do amor, da felicidade causada pela contemplação da natureza, mesmo outonal, sejam quais forem os motivos para que se apresente negativo o nosso olhar face aos desmandos no país e no mundo: a passividade e inércia portuguesas em contraste com o garbo alheio, bem visível na “caminha” do atleta olímpico para justificar o seu falhanço, o desemprego nacional e seus problemas, a corrupção e suas consequências, a mediocridade geral contrastante com o aproveitamento que dela fazem os políticos argutos... E lá fora as guerras, a violência, os tribalismos, a fome, a prepotência, os fundamentalismos das nossas limitações...
Atitude Xis”? Os bonitos entardeceres, os amores e os amantes, as perspectivas felizes , o gostar do mundo...
A banalização dos sentimentos nesta constante visão optimista, ao falsear a realidade geral, neste sério ditar de regras de bem-estar, centrado numa “auto-estima”, cliché actual de significado vazio, gerado numa vaidosa auto-convicção de capacidade, naturalmente que subjectiva e inane.
Quando Voltaire escreve “Candide ou O Optimismo”, é a visão irónica que dá dimensão ao conto. “Atitude Xis”? Não, apenas essa, sem variantes, nem a dimensão que o Xis implica...

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Os referentes

Isto de, a torto e a direito, nos servirmos de referentes literários ou outros, devia acabar, diz-se. Parece que não temos suficiente confiança nos nossos próprios méritos e vai daí, toca a servir-nos dos méritos alheios para enriquecer o que escrevemos. Há mesmo quem use o plágio despudorado, o que é feio. Só o Homero é que não teve por onde copiasse aquelas histórias célebres, que tantos depois glosaram, mas talvez por isso acharam que ele não existiu e que os seus cantos vieram das mentes do povo, como se fossem as trovas do nosso.
O que é certo é que, como disse Mallarmé, “Mais ou menos todos os livros contêm, medida, a fusão de qualquer repetição”, citação contida no texto “Estratégia da Forma” em “Poétique, Intertextualidades” de Laurent Jenny (Livraria Almedina). Por isso não podemos estranhar as influências, que resultam das nossas leituras e experiências, enriquecendo-as com as referências que venham a talhe de foice. O Platão que o diga, que se serviu do Sócrates para lhe aplicar a doutrina, mas escrupulosamente o pôs sempre como mentor nos seus Diálogos.
Clássicos ou Modernos, todos imitaram e citaram. Era higiénico lembrar os greco-latinos, e o Garrett, por muito romântico que fosse, não deixou de os usar também. E o querido Eça, meu Deus! Mas como foram grandes e originais! O “Rei Lear” do Shakespeare já se lia nas lendas medievais. A história da Helena de Tróia, por exemplo, quantas obras descomunais originou! A peça dramática “La Guerre de Troie n’aura pas lieu” do Giraudoux, o romance humorístico de John Erskine “A Vida Privada de Helena de Tróia”, que espanto, que graça, que encanto! E as variantes da “Antígona”! Como foi feliz Jean Anouilh glosando Sófocles!
Por isso devemos ser gratos a todos esses grandes que serviram à nossa formação e que não morreram, nem os seus heróis, porque são imortais, enquanto o sol nos aquecer.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Na terra tanta guerra 2

Foi Camões que o disse, mas o “bicho da terra” a cada passo o demonstra, nas famílias, nos clãs, nas estradas, nos bancos, nos países, na Bíblia, na História, nos matagais africanos e sulamericanos, em cada um de nós... Mais recentemente, na Geórgia...
É preciso paciência. A Guerra de Tróia deu brado, para mais de origem divina e muito feminina, mas as guerras propriamente humanas foram por demais também. Júlio César até escreveu sobre as suas conquistas na Gália, e o Napoleão foi um triunfador e peras. Enquanto foi.
Nada, é certo, como nestes nossos séculos XIX e XX em que cada guerra é responsável na irradiação das matanças. Dantes a coisa fazia-se mais cara a cara, praticavam-se heroísmos gostosos. Que o diga Roland e o nosso Nun’Álvares. Agora está-se mais desprevenido, morre-se assim à matroca, atabalhoadamente, conforme apetece aos chefes, que estão sempre a salvo, pois podem impor a guerra de cátedra. É nos fornos crematórios dos campos de concentração, é nos trabalhos forçados dos campos siberianos, é com bombas atómicas, é, mais actualmente, com as armas nucleares ou biológicas, um fartote de meios requintados para os genocídios, não falando nos terroristas, que estes limitam-se às explosões, embora de grande alcance já, e não se importam de se suicidarem, desde que possam liquidar com fartura.
É por isso que, em atenção aos recentemente sacrificados georgianos, gostaria de prestar homenagem aos seus mortos, e a minha solidariedade aos seus vivos, em pânico, por meio de textos consagrados de grandes escritores portugueses que assim definiram a guerra e os seus heróis – Vieira (1608/1697), e o texto “É a guerra”, in “Sermão Histórico e Panegírico”, Nicolau Tolentino (1741/1811), e a sátira “A Guerra”, Reinaldo Ferreira (1922/1959), - “Receita para fazer um herói” in “Poemas”.
Mas o alerta dos pensadores de nada serve, tudo isto vai continuar até à consumação dos tempos, cada vez mais sem travão, de retorno ao caos do início...

terça-feira, 12 de agosto de 2008

“Na terra tanta guerra...”

Foi Camões que disse, mas o “bicho da terra” a cada passo o demonstra, nas famílias, nos clãs, nas estradas, nos bancos, nos países, na Bíblia, na História, nos matagais africanos e sulamericanos, em cada um de nós... Mais recentemente, na Geórgia...
É preciso paciência. A Guerra de Tróia deu brado, para mais de origem divina e muito feminina, mas as humanas foram por demais também. Júlio César até escreveu sobre as suas conquistas na Gália, e o Napoleão foi um triunfador e peras. Enquanto foi.
Mas nada como nestes séculos XIX e XX em que cada guerra é responsável na irradiação das matanças. Dantes era mais cara a cara, praticavam-se heroísmos gostosos. Que o diga Roland e o nosso Nun’Álvares. Agora está-se mais desprevenido, morre-se assim à matroca, atabalhoadamente, conforme apetece aos chefes, que estão sempre a salvo, pois podem impor a guerra de cátedra. É nos fornos crematórios dos campos de concentração, é nos trabalhos forçados dos campos siberianos, é com bombas atómicas, é, mais actualmente, com as armas nucleares ou biológicas, um fartote de meios requintados para os genocídios, não falando nos terroristas, que estes limitam-se às explosões embora de grande alcance já, e não se importam de se suicidarem, desde que possam liquidar com fartura.
É por isso que, em atenção aos recentemente sacrificados georgianos, não resisto a prestar homenagem aos seus mortos, por meio de textos consagrados de escritores portugueses que assim definiram a guerra e os seus heróis:

Do Padre António Vieira (1608/1697), in “Sermão Histórico e Panegírico”:
É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vidas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta por todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça ou se não tema: nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus, nos templos e nos sacrários, não está seguro.

De Nicolau Tolentino de Almeida (1741/1811), “Excertos da sátira “A GUERRA” ( 15 de 48 quintilhas):
«“Musa...”

“Deixa equipar Inglaterra / Com naus de alterosa popa, / Deixa regar sangue a terra; / Que te importa que na Europa / Haja paz ou haja guerra? “ ....

“Que tens tu que ornada história / Diga que peitos ferinos / Em sanguinosa vitória, / Inumanos, assassinos, / São do mundo a honra e a glória?”
“As guerras precisas são, / Nelas a paz se assegura; / Não metas em tudo a mão, / Musa louca; porventura / Encomendaram-te o sermão?”
“Deixa que roto taful, / A quem na pátria foi mal, / Vá cruzar de norte a sul; / Cubram-lhe o corpo venal / Três palmos de pano azul.”
“Deixa que em tarimba estreita / O desperte a aurora ingrata; / Que o duro cabo que o espreita / O faça ao som da chibata, / Virar à esquerda e à direita.”
“Deixa-lhe em sangue envolver / Duro pão que lhe dá Marte; / E para poder viver, / Deixa-lhe aprender esta arte / De matar e de morrer.” ....

“Dizes que uma guerra acesa / É teatro de impiedade / Chamas-lhe uma fereza, / Flagelo da humanidade, / Triste honra da natureza.” ...

“Entre horrorosos troféus, / O general desumano / Manda falso incenso aos céus / E de espalhar sangue humano / Vai dando louvores a Deus.” ...
“Tirando então consequências, / Zombar dos homens procuras, / E das suas vãs ciências; / Sempre cheias de loucuras, / E cheias de incoerências;”
“Se a paz, em dias felizes, / À cara pátria os conduz, / Dizes que estes infelizes / Mostram, rindo, os peitos nus, / Cortados de cicatrizes;
Que este reconta aos parentes / Como em perigoso passo, / Zunindo balas ardentes, / Uma lhe quebrou o braço, / Outra lhe levou os dentes; “
“Que outro, da perna cortada / Abençoa a horrível chaga, / Porque ao peito pendurada / Trará algum dia em paga, / Inútil fita encarnada;” ....

“Se os homens se não matassem, / E impunemente crescessem, / Pode ser que não achassem / Nem fontes de que bebessem / Nem campos que semeassem.” ...

“Sabe-se que mil males faz / A mole tranquilidade / E que em seu seio nos traz / Brando luxo e ociosidade, / Danosos filhos da paz;” ...

“ Deixa, pois, haver queixumes; / Metam-se armadas no fundo, / Acenda a guerra os seus lumes; / Que assim tornará ao mundo / A inocência dos costumes;” ...

De Reinaldo Ferreira (1922/1959), in “Poemas”: “Receita para fazer um herói”
Tome-se um homem, / Feito de nada, como nós, / E em tamanho natural. / Embeba-se-lhe a carne, / Lentamente, / Duma certeza aguda, irracional, / Intensa como o ódio ou como a fome. / Depois, perto do fim, / Agite-se um pendão / E toque-se um clarim.
Serve-se morto.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

A mulher pecadora 2

As mulheres foram sempre muito mal vistas na sociedade, atribuindo-se-lhes pacto com o diabo. Também houve damas espiritualizadas, mas só no lirismo de fonte mariânica, pois a maioria foi maltratada e mesmo as bruxas arderam nas piras eclesiásticas. Hoje já não se põe o problema, mais permissiva a sociedade, pelas conquistas dos direitos femininos. Mas se Madalena se livrou de pedradas, foi só graças a Cristo, que assim inocentou muitos desmandos do seu clero.
Contudo, a sociedade descrita pelos escritores revela facetas de menor justiça com as mulheres, que até a si se condenam quando pecadoras – caso da Phèdre que, além do seu ciúme que leva à morte o amado Hipólito, seu enteado, se mata de vergonha e remorso, punível o crime de incesto, como já demonstrara Sófocles, fazendo Jocasta enforcar-se, e Édipo só cegar-se. Se, no romantismo francês, há uma pérfida Milady, ela será punida pelos mosqueteiros. Quanto à Dama das Camélias, a doença a condenará pelos seus pecados, não podendo ficar impune quem tanto pecou, embora amando tão devotadamente. Jane Eyre, heroína que muito sofreu em criança às mãos da madrasta e no colégio interno, dirigido por impiedoso tartufo, será excepção, no livro de C. Bronte. A própria Madame Bovary se condenou, suicidando-se. Pecou muito, na opinião do meio medíocre ou prepotente de que quis fugir, iludida com os arremedos de felicidade da sua imaginação inquieta. O mesmo sucederia com Thérèse Desqueyroux, cuja exacerbação pela chateza em que vivia, a leva, sem convicção, a um gorado assassínio do marido, sendo condenada pelo desprezo dos familiares e auto-anulamento imposto por aquele. Os livros que ficcionam amores livres como “O Amante de Lady Chatterley”, de Lawrence são censurados e até retirados da circulação por uma sociedade machista, mais aberta às perversões dos homens, até do marquês de Sade. Mas a mulher superou grandemente esses ostracismos. Simone de Beauvoir bem o desmascara, e a original Françoise Sagan...


Versão reduzida ( 1999 caracteres com espaços) do texto anterior (3943 com espaços), a pedido da Revista JN, para onde fora enviado.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A Mulher pecadora

As mulheres foram sempre muito mal vistas na sociedade, houve até quem lhes atribuísse pactos com o demónio. É claro que sempre houve damas espiritualizadas mas só no lirismo medieval e clássico (para além das Escrituras, é certo, onde a Virgem Maria é a mulher espiritual, a eleita de Deus), mas a par dessas também houve as tratadas sem consideração e as próprias bruxas passaram mal e chegaram a arder nas fogueiras por conta da Igreja, salvo se conseguissem escapar cavalgando a vassoura.
Felizmente que já não se põe o problema nos dias de hoje, de sociedade mais aberta e permissiva, consequente das conquistas dos seus direitos pelas feministas e pelos escritores que trouxeram o problema para a ribalta política e social.
De resto, já a própria Madalena não chegou a levar as pedradas dos justiceiros judeus, e isso graças a um Cristo piedoso e compreensivo, que assim desculpabilizou muitos dos desmandos passados e actuais, do seu clero.
Mas a sociedade que nos é descrita pela pena dos homens ou das mulheres revela facetas de uma menor justiça para com as mulheres, que aliás se condenam a si próprias quando se sentem pecadoras – caso da heroína Phèdre do Racine, apaixonada pelo enteado que, além do ciúme que a leva ao desvario de condenar Hipólito, se mata de vergonha e remorso, o crime de incesto sendo altamente punível, como já fora demonstrado por Sófocles, que fez enforcar-se Jocasta, enquanto só furou os olhos de Édipo, em autopunição, o qual ainda teve hipótese de passear por Colona acompanhado da filha Antígona, nimbado de uma aura toda espiritual.
No romantismo francês, se existe uma pérfida Milady bastante livre, ela será justiçada sem remissão pelos três mosqueteiros e por D’Artagnan, cheios de razões de queixa, e com o apoio, certamente, dos leitores do livro. Quanto à Margarida Gautier, a dama das camélias, será a doença que a condenará pelos seus pecados, pois não poderia ficar impune quem tanto pecou, embora tivesse amado Armando Duval com tanto espírito de sacrifício.
Mas já Jane Eyre, heroína inglesa, disciplinada e de moral rígida, que muito sofreu em criança, às mãos da má madrasta e dos pseudo-irmãos despóticos e mais tarde no colégio interno dirigido com mão de ferro por quem usava muito hipocritamente a religião de Cristo, é, todavia, destinada a viver a sua grande paixão, feita de dedicação total, no livro romântico de Charlote Bronte, que ainda hoje poderia servir de modelo aos nossos jovens, os quais mergulham depressa demais nos amores adultos, sem preparação para assumirem os encargos ou as generosidades que aqueles pressupõem.
Madame Bovary também foi condenada e ela própria se condenou, suicidando-se. Pecou, realmente, muito, na opinião daquele meio medíocre ou prepotente em que vivia e de que quis fugir, sempre iludida com os arremedos de felicidade da sua imaginação insatisfeita e inquieta. O mesmo sucederia com a Thérèse Desqueyroux, do Mauriac, cuja exacerbação pela chateza em que vivia, a leva, sem muita convicção, a um gorado assassínio do marido, escapando à condenação do tribunal para ser condenada posteriormente pelo desprezo dos familiares e imposição de auto-anulamento e auto-mudez pelo marido, que felizmente, por fim a libertou.
Os livros que ficcionam amores livres como “O Amante de Lady Chatterley”, de David H. Lawrence são condenados e até retirados da circulação, por alguns anos, por uma sociedade amiga dos bons costumes. Sociedade machista e condenatória, mais aberta às perversões dos homens, do próprio marquês de Sade. Mas a mulher hoje em dia superou grandemente esses ostracismos. Simone de Beauvoir bem o desmascara, e a original Françoise Sagan.
Entre nós, “O Livro das Três Marias” também deu escândalo pela ousadia. E temos sempre Lili Caneças, como exemplo da mulher livre e desinibida, Deus a conserve, que tem a simpatia dos nossos homens e até mesmo das nossas mulheres que dela falam nas tertúlias sentimentais.